Capítulo 4

A festa já dava sinais de cansaço. As luzes piscavam com menos vigor, a música alternava entre batidas eletrônicas e sucessos dos anos 2000, e até o cheiro de bebida barata parecia mais fraco — ou talvez Ethan tivesse simplesmente se acostumado.

Ele estava encostado numa parede, braços cruzados, olhando para o nada. Ou melhor, tentando parecer que olhava para o nada, porque seus olhos, mais uma vez, procuravam por ela.

E então... lá estava.

A garota ruiva

Ela saía pela porta dos fundos da casa com uma amiga ao lado — uma morena baixinha, de olhos ferozes. Ela mexeu nos cabelos ruivos, jogando-os para trás com um charme involuntário, enquanto ria de algo que a amiga dizia. Ethan sentiu o peito apertar.

Era isso. Tinha perdido a chance. De novo.

— Você viu, né? — disse Daniel, surgindo como um fantasma ao seu lado.

Ethan nem precisou responder. A expressão de frustração falava por ele.

— Parabéns. Você deixou a chance passar... outra vez. — Daniel deu dois tapinhas nas costas dele, como quem consola um cachorro que perdeu o osso.

— Eu quero ir embora. — disse Ethan, seco.

Daniel revirou os olhos e estendeu as chaves do carro.

— Vai lá, robô do amor. Espera no carro que eu só vou me despedir da galera. Prometo não demorar. — disse ele, piscando.

Ethan pegou as chaves e saiu pela lateral da casa. O ar fresco da noite bateu em seu rosto como um tapa bem-vindo. Ele se encostou no carro, suspirou alto e passou as mãos no rosto.

— Que palhaçada... — murmurou. — Eu nem sei o nome dela...

Um miado fino interrompeu o lamento.

— Hã?

Ethan olhou para baixo e viu um gatinho cinza, minúsculo, saindo debaixo do carro.

— Vem cá, bichano...

Mas o gato, claramente avesso a humanos desajeitados, correu em disparada entre os carros estacionados. Ethan, determinado a ter algum tipo de vitória naquela noite, seguiu atrás dele, agachado, como um ninja descoordenado.

Foi então que, ao se esgueirar entre dois carros, deu de cara com um par de pernas longas e perfeitas, vestidas por uma saia delicada. Ele levantou o olhar lentamente, e...

THUMP!

Uma bolsada certeira explodiu no meio da sua cara.

— AÍ, SEU TARADO!!! — gritou uma voz furiosa.

Ethan caiu sentado no asfalto, tentando entender o que tinha acontecido. Diante dele, uma garota de cabelos castanhos e cacheados o encarava como se fosse arrancar a alma dele pela orelha.

— EU SABIA QUE ERA QUESTÃO DE TEMPO! VI VOCÊ OLHANDO PRA MINHA AMIGA A NOITE TODA! — ela brandia a bolsa como uma espada de guerra.

Ela garota ruiva estava ali ao lado, claramente assustada, olhando de Ethan para a amiga.

— Calma! Não é isso! Eu juro! — tentou dizer Ethan, se encolhendo.

— AH, NÃO É? ENTÃO O QUE DIABOS VOCÊ TAVA FAZENDO AGACHADO AQUI, HMM? OLHANDO PRA CALCINHA DELA?! — berrou a castanha.

— Não! Eu... eu tava atrás de um gato!

— UM GATO?! ESSA É NOVA! — gritou ela, desferindo mais uma bolsada.

— PÁRA! PÁRA! PELO AMOR DE DEUS! — a voz veio correndo: era Daniel.

Ele apareceu bufando, com o cabelo bagunçado e expressão de “cheguei tarde demais para salvar esse idiota”.

— Gabriela! Ele não é tarado, juro! — disse Daniel, ofegante.

A garota, agora identificada como Gabriela, parou no meio do golpe e olhou surpresa para Daniel.

— Você conhece esse cara?

— Infelizmente. Ele é meu amigo.

— Bom, seu amigo tava quase deitado pra ver a calcinha da Emily. — respondeu ela, apontando indignada.

— EU NÃO TAVA! — Ethan gritou do chão, desesperado.

E então, como se fosse um personagem de desenho animado bem ensaiado, o gato cinza passou entre as pernas de Emily, miando baixinho.

Todos olharam para ele. Ethan apontou.

— É ESSE GATO! EU TAVA ATRÁS DELE!

Gabriela cruzou os braços, desconfiada, mas agora um pouco menos agressiva.

— Tá... digamos que eu acredite nisso. Mas e o fato de você ter passado a festa INTEIRA olhando pra Emily como se ela fosse um pudim de leite condensado?

Ethan ficou em silêncio. Não tinha defesa. Era verdade. E, pior ainda, todo mundo sabia disso agora.

Daniel riu, sem o menor senso de timing.

— Ele só tava admirando a cor do cabelo dela. Sabe como é... engenheiro civil. Vê beleza em estruturas bem feitas.

Emily finalmente riu de verdade. Um riso leve, tímido, mas sincero. Deu um passo à frente, estendeu a mão para Ethan e disse:

— Desculpa pelo mal-entendido... Eu sou a Emily.

A voz dela era como ele imaginava: doce e gentil. Quase como um alívio depois de um vendaval.

Ethan pegou a mão dela, levantando-se devagar.

— Ethan. E... desculpa mesmo por tudo isso. Eu não queria te assustar. Eu só... sou péssimo com festas. E com gente. E com gatos, aparentemente.

Emily riu de novo e disse, coçando a nuca:

— Eu saí mais cedo porque... bom, vi você olhando muito. Achei estranho. Não sabia o que pensar.

— Ah, sim. Isso... É. Foi estranho. Eu não sou bom em... parecer normal.

Gabriela, agora mais tranquila, bufou e completou:

— Bom, pelo menos você não é um pervertido. Só um pouco... sem noção.

— Isso é um elogio, vindo dela. — comentou Daniel, dando uma piscadela para Ethan.

E enquanto o gato sumia no escuro da rua, algo no ar tinha mudado. Ethan ainda estava constrangido, claro. Mas agora ele sabia o nome dela. E ela sabia o dele. E isso, para uma noite caótica, já era uma vitória e tanto.

****

A segunda-feira chegou como um balde de água fria. Ethan ainda sentia os reflexos da bolsa assassina de Gabriela e do encontro mais embaraçoso da sua vida. Mas, pra sua surpresa, depois daquele caos todo, as coisas pareciam estar melhorando.

Emily agora sabia seu nome. E ele sabia o dela. Mais do que isso, eles se cumprimentavam com frequência nos corredores da faculdade. De vez em quando, sentavam-se na mesma mesa no refeitório durante os intervalos. Tudo isso, claro, graças à intervenção do palhaço do Daniel, que não perdia uma chance de tirar sarro de Ethan.

— E aí, Robô dos Sentimentos, já atualizou o sistema pra conseguir dizer "oi" sem travar? — ele perguntava, rindo, enquanto Ethan revirava os olhos.

Gabriela, por outro lado, ainda parecia nutrir um leve (ou nem tão leve) ranço de Ethan. Ela lançava uns olhares esquisitos, do tipo "se você respirar perto dela, eu te atropelo com um unicórnio". Mesmo assim, tudo estava indo bem. Quase normal.

Certa noite, Daniel estava no alojamento de Ethan, sentado de pernas cruzadas no chão, devorando batatas chips como se fosse uma missão de vida.

— Ok, momento sério agora. Quando você vai chamar a Emily pra sair?

Ethan, que comia um hambúrguer como se estivesse resolvendo equações de três variáveis, respondeu de boca cheia:

— Eu não vou. Tô de boa assim...

— Ah, claro. Tô de boa. Tô tranquilo. Tô só apaixonado, sonhando com cabelo ruivo, mas tô de boa.

— Cala a boca, Daniel.

Daniel apontou o pacotinho de chips como se fosse uma arma de verdade.

— Se você não se declarar, vai perder a chance. E depois vai ficar chorando abraçado num travesseiro assistindo comédia romântica.

Ethan encarou o hambúrguer com tristeza. Até ele parecia julgá-lo.

No dia seguinte, Emily passou pelo corredor como sempre. Ela fazia faculdade de Literatura e tinha aquele estilo indie adorável: botas vintage, suéter largo com desenho de gato e uma mochila cheia de pins de bandas que Ethan nunca tinha ouvido falar.

Ela sorriu ao vê-lo.

— Oi, Ethan!

— Oi! — ele respondeu, sentindo seu cérebro dar uma tela azul.

Ele já sabia algumas coisinhas sobre ela. Tinha irmãs, a família morava em uma cidade afastada, e sua mãe era do tipo que ligava três vezes ao dia pra saber se ela tinha tomado água. Ela reclamava disso no refeitório, mas Ethan percebia que no fundo havia carinho naquelas queixas. Era como se dissesse: "minha mãe me ama tanto que às vezes me irrita".

E aquilo deixava Ethan ainda mais encantado. Ele adorava ouvir a risada dela, ver o jeito que os olhos verdes brilhavam quando falava de livros ou quando contava sobre um cachorro que viu no caminho. Emily era um tipo de caos que deixava o mundo mais leve. E agora, tudo o que ele queria era encontrar coragem pra convidá-la pra um café. Ou um sorvete. Ou talvez... pra qualquer coisa onde não tivesse uma Gabriela com uma bolsa por perto.

Num dia aparentemente normal no refeitório, Emily apareceu sozinha, sem Gabriela. Ethan estava com Daniel, devorando um salgado suspeito com mais óleo que a franja de um roqueiro dos anos 80. Daniel logo percebeu a ausência da guarda-costas e lançou um olhar malignamente estratégico.

— Cadê a sua sombra, quer dizer, a Gabriela? — perguntou Daniel.

— Tá gripada, coitada. Mal conseguiu sair da cama hoje — respondeu Emily.

Os olhos de Daniel brilharam como se tivesse encontrado a chave de um cofre.

— Que pena… Bom, então vocês querem ver um filme hoje à noite? Eu, você e o Ethan. Uma coisa light, com pipoca e risadas. — Daniel sorriu como quem oferecia uma armadilha coberta de chocolate.

Emily hesitou.

— Só nós três? Não sei... estranho sem a Gabi.

— Ah, imagina. Com certeza a Gabriela gostaria que você fosse. Ela aprovaria. Tipo um... encontro supervisionado espiritualmente — disse ele, já inventando regras do além.

Emily riu, um pouco desconfiada, mas no fim, aceitou.

Mais tarde, Ethan chegou ao local marcado achando que seria uma noite casual entre amigos. Mas quando viu Emily sozinha, com os cabelos presos em tranças frouxas, vestindo uma calça cargo retrô e um suéter cheio de flores bordadas — uma verdadeira explosão do universo "cringe fashion indie tumblr girl" — ele congelou.

— Oi, Emily. Cadê o... Daniel? — perguntou, já sentindo as mãos começarem a suar.

— Ainda não chegou. — Ela sorriu.

Eles esperaram um pouco, conversando sobre trivialidades. Até que o celular de Ethan tocou. Era Daniel.

— E aí, Romeu! Tá rolando o clima? — disse ele rindo.

— Como assim? Cadê você? — perguntou Ethan, confuso.

— Eu? Tô em casa, deitado. Essa missão agora é sua. Se vira, Casanova. Beija logo a garota, confessa, faz algo! — E desligou.

Ethan ficou parado, olhando para o celular como se ele tivesse cuspido fogo.

— Aconteceu alguma coisa? — perguntou Emily.

— Hã... Nada. Só... trote. — Ele tentou sorrir, mas parecia que estava tendo um derrame leve.

Mesmo sem Daniel, eles decidiram assistir ao filme juntos. Ethan ficou tão tenso o tempo todo que mal prestou atenção na história. Parecia que a cadeira era feita de lava. No final, ele tentou parecer casual:

— Quer tomar um sorvete?

Emily sorriu e aceitou. Caminharam até uma praça próxima e se sentaram num banco.

— Sabe, eu fiquei meio nervosa em aceitar vir hoje — disse ela, tomando uma colherada do sorvete.

— Por quê?

— Ah... Sei lá. Três pessoas juntas, uma segurando vela. é uma pena que o Daniel não pôde vir. e você teve que ficar comigo

Ethan quase engasgou com o sorvete quando ela completou:

— Mesmo que eu saiba que você preferia estar com seu namorado.

— O quê?! — tossiu Ethan, arregalando os olhos.

— O Daniel! — disse Emily, como se fosse óbvio. — Gabriela me contou que vocês dois estão juntos. Só não assumem por medo do que as pessoas vão pensar. Mas fica tranquilo, eu não tenho preconceito!

— NÃÃÃÃÃO! — Ethan gritou, atraindo olhares de dois pombos e um cachorro que passava.

Ele se levantou.

— Eu... eu não sou gay! E o Daniel também não é meu namorado! Quer dizer, não que tenha problema! Mas... eu gosto de você, Emily! Como eu seria gay se eu tô apaixonado por você?!

Ela arregalou os olhos, surpresa. Ethan continuou.

— Tudo isso foi um plano idiota do Daniel pra eu te chamar pra sair, mas eu não sabia que ele ia sumir assim... por isso eu tava estranho, nervoso e... e falando um monte de bobagem.

Emily olhou pra ele por alguns segundos. Então, sorriu.

— Bom... quando achei que você era gay, fiquei meio triste. Porque... eu já tava interessada em você.

Entao o clima ficou meio tenso e rolou aquele suspense eles se olharam profundamente em silêncio e Ethan, com a confiança de alguém que já foi golpeado por uma bolsa na cara, respirou fundo e a beijou.

Foi um beijo meio atrapalhado, com sabor de sorvete e nervosismo. Mas ainda assim, um beijo.

Daniel, claro, mandaria uma chuva de mensagens quando soubesse. Mas por agora, Ethan só conseguia pensar em como tudo deu certo — apesar de absolutamente tudo ter dado errado.

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