Capítulo 2

Vicente Salazar estava sentado na poltrona da sala do filho, observando o ambiente com aquela atenção silenciosa de quem já julgou muita gente pelo olhar. Rafael falava sobre reformas no escritório, mas Vicente ouvia apenas em partes. Desde que chegara, algo incomodava seus instintos aguçados.

A porta se abriu com uma leve batida.

— Com licença — disse a jovem, entrando com uma pasta nas mãos. — Os relatórios que o senhor pediu, doutor Rafael.

Rafael agradeceu com um aceno e apontou para a mesa.

— Pode deixar aí, Isadora. Obrigado.

Vicente levantou os olhos. Viu a moça atravessar a sala com passos contidos, um pouco curvada, como quem ainda não se acostumou a ocupar espaço. Havia algo nela... um traço familiar, uma expressão fugidia. Não conseguia definir. Era como um eco do passado.

Assim que ela saiu da sala, Vicente quebrou o silêncio:

— Nova auxiliar?

— Começou essa semana — disse Rafael, ajeitando papéis. — Calada, eficiente. Tímida, mas parece comprometida.

Vicente apoiou o queixo sobre a mão fechada, pensativo.

— Isadora, hein?

— Uhum.

Vicente não comentou mais. Mas por dentro, a dúvida se instalava. Aquele rosto... havia algo nele. Não era exatamente familiar, mas... próximo. Como se tivesse sido refeito com as peças erradas de um quebra-cabeça antigo.

Mais tarde, na recepção, Isadora sentou-se um instante, esperando a próxima tarefa. Havia um pequeno espelho de bolsa em sua mochila. Abriu, encarou o próprio reflexo.

Os olhos eram os mesmos, mas o contorno do rosto... o nariz, a boca... diferentes. Era como se olhasse para uma estranha com seus próprios olhos.

As lembranças do hospital vinham em fragmentos: as faixas, os tubos, o homem que ela agora chamava de pai dizendo que ela havia sobrevivido. Que seu nome era Isadora. Que a irmã não resistira.

Mas às vezes, à noite... o nome “Clara” pulsava na sua mente como um sussurro esquecido.

Ela fechou o espelho com força.

“Devo estar ficando louca”, pensou. Mas, no fundo, algo lhe dizia que a loucura talvez fosse o único caminho para a verdade.

Vicente permaneceu mais alguns minutos na sala de Rafael, fingindo estar imerso nas anotações que o filho lhe mostrava. Mas seus olhos, vez ou outra, desviavam-se para a porta por onde a moça saíra.

— Você tem o sobrenome dela? — perguntou, casualmente.

Rafael estranhou a pergunta, mas respondeu:

— Ainda não vi a ficha completa. Só sei que o nome dela é Isadora. Foi recomendada por um contato de um amigo, alguém que cuida de um orfanato. Por quê?

Vicente apenas balançou a cabeça, como quem pondera.

— Só curiosidade. Ela me pareceu... conhecida.

Rafael sorriu, descrente.

— Acho difícil, pai. Ela não é muito de aparecer por aí.

Vicente não respondeu. Mas em sua mente, a desconfiança crescia. Ele era um homem de detalhes, e havia algo nos olhos daquela garota que incomodava sua memória. Como se ela carregasse uma história que ainda não sabia contar.

---

Mais tarde, já no fim do expediente, Isadora saiu do prédio segurando a bolsa contra o corpo, os ombros curvados como se o peso da própria identidade a esmagasse. A cidade à sua volta seguia no ritmo habitual, indiferente às dores que ela escondia.

No ônibus, sentou-se junto à janela e ficou olhando os reflexos das luzes noturnas no vidro. E ali, naquela distorção líquida, percebeu-se fragmentada.

“Quem eu era antes do acidente?”

A pergunta vinha todos os dias. Mas naquele instante, ela pareceu gritar.

Chegando em casa, foi direto para o pequeno banheiro do quarto onde vivia com o homem que a adotara após o acidente — o “pai” que Isadora acreditava ser verdadeiro, mas que na verdade fora apenas mais uma peça comprada por sua irmã para completar a farsa.

Acendeu a luz amarelada. O espelho sobre a pia tinha uma rachadura discreta, bem no meio da testa de seu reflexo. Encarou-se ali por um tempo que pareceu eterno.

— Quem é você? — sussurrou.

Tocou o rosto com a ponta dos dedos. Ainda não se acostumara com a nova forma. Após o acidente, houvera cirurgias. Reconstruções. "Você foi a única sobrevivente", diziam. "Isadora", repetiam. E ela acreditou. Era mais fácil acreditar.

Mas havia momentos — como aquele — em que algo em seu corpo gritava que não era verdade.

No escuro, deitada, ouviu a porta do apartamento se fechar. O homem chegava. O suposto pai. Seus passos pesados ecoando pelo corredor, tão diferentes do calor de uma lembrança que ela não sabia nomear.

Ela fechou os olhos com força.

E foi ali, no silêncio e na escuridão, que se prometeu: um dia, descobriria quem realmente era.

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Comments

Salete Michels de Gracia

Salete Michels de Gracia

Poderia falar a idade deles e só pra saber ela não toma banho não?

2025-04-11

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