Vicente Salazar caminhava pelos corredores do escritório com passos calmos e firmes. A maioria dos funcionários sabia que ele era o pai do chefe, mas evitavam cruzar olhares ou puxar conversa. Havia algo em seu semblante — na postura ereta, no olhar atento, na forma como silenciava ambientes apenas com sua presença — que fazia as pessoas engolirem as palavras.
Ele não vinha sempre. Mas quando aparecia, era como se avaliasse cada canto da empresa com olhos de ex-juiz ainda em exercício.
Foi quando passou pela copa que parou, disfarçadamente, ao lado da porta entreaberta. Lá dentro, viu Hyeon-woo e a nova auxiliar — Isadora.
Ela estava rindo. Não alto, nem escandalosamente, mas com uma leveza que não combinava com os olhos sempre baixos que ele havia notado dias atrás.
Vicente franziu o cenho. Observou com atenção a forma como ela escutava o rapaz, os gestos contidos, o modo como suas mãos mexiam no guardanapo como se escondessem nervosismo — ou culpa.
Mas não foi nela que ele fixou o olhar. Foi em Hyeon-woo.
— Interessante... — murmurou para si, antes de seguir em frente como se nada tivesse acontecido.
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No fim da tarde, Vicente parou na sala de Rafael antes de ir embora.
— Está gostando da nova auxiliar? — perguntou casualmente, enquanto ajeitava os punhos da camisa.
Rafael, sem tirar os olhos da tela, respondeu:
— Está indo bem. É discreta, eficiente. Por quê?
Vicente deu um meio sorriso.
— Só curioso. Ela me lembra alguém.
Rafael levantou os olhos, mas não disse nada.
Vicente virou-se para sair, e antes de fechar a porta atrás de si, murmurou:
— E o menino do setor de contratos... está perto demais. Às vezes, o que parece leve demais é o que deixa marcas mais profundas.
E então, desapareceu no corredor.
A porta se fechou suavemente, mas o eco da frase de Vicente parecia ter ficado pairando na sala.
"Às vezes, o que parece leve demais é o que deixa marcas mais profundas."
Rafael recostou-se na cadeira, os olhos presos à tela do computador, mas sem enxergar de fato o que estava ali. A caneta que segurava entre os dedos girava lentamente, num tique nervoso que ele nem percebia.
Hyeon-woo e Isadora. Ele nunca havia realmente reparado nos dois juntos, mas agora... a imagem da nova auxiliar rindo discretamente ao lado do jovem colega surgia na mente com nitidez. Não era ciúme, não. Era... algo mais próximo de inquietação.
Isadora era eficiente, sim. Cordial, educada, sempre correta. Mas havia nela um tipo de ausência estranha. Como se algo estivesse constantemente desalinhado. E por mais que ele tentasse ignorar, isso o incomodava.
E então, havia Clara. Ou melhor, a mulher com quem dividia a vida. A mulher que dizia ser Clara.
Rafael fechou os olhos por um instante. Respirou fundo. Aquilo tudo vinha se repetindo na sua mente com mais frequência do que gostaria. Uma sensação inquietante — como se uma peça do quebra-cabeça estivesse faltando, ou pior: estivesse ali o tempo todo, no lugar errado.
Vicente podia ser cético, até duro demais às vezes, mas Rafael aprendera a respeitar seus instintos. E se até ele estava incomodado...
Soltou a caneta sobre a mesa, pegou o celular e quase ligou para Clara. Mas não o fez. Ao invés disso, abriu a gaveta inferior e puxou um pequeno caderno preto, com anotações antigas. Passou algumas páginas, encontrou uma data rabiscada de meses atrás. O dia do acidente. O dia em que tudo mudou.
Ele olhou para aquele número como quem encara uma ferida ainda aberta.
"E se tudo o que eu sei... estiver errado?"
A pergunta ecoou silenciosa, e Rafael a engoliu com um nó na garganta.
Rafael desceu as escadas do prédio com passos decididos. Sabia exatamente onde encontraria Vicente àquela hora: no saguão do prédio, perto da saída, tomando seu café preto sem açúcar, como fazia todos os dias antes de voltar para casa.
Lá estava ele. Sentado em uma das poltronas de couro, impecável em seu blazer cinza, olhos atentos como se observasse mais do que fingia ler no jornal dobrado ao meio.
Rafael não disse nada de imediato. Sentou-se à sua frente, apoiou os cotovelos nos joelhos e ficou em silêncio por alguns segundos.
Vicente ergueu os olhos por sobre os óculos.
— Veio fazer companhia ou cobrar as entrelinhas?
Rafael soltou um suspiro curto.
— Eu vim pedir que fale claro, pai. Desde que aquela garota entrou aqui, você anda jogando indiretas como se estivesse escrevendo um enigma. O que exatamente você acha que está errado?
Vicente pousou o jornal no colo, cruzou as pernas com calma.
— Eu não "acho", Rafael. Eu observo. E o que vejo... não combina com as certezas que vocês estão aceitando como verdades.
Rafael o encarou.
— Está falando da Clara?
Vicente arqueou uma sobrancelha.
— Estou falando das duas. A mulher que você chama de esposa e a garota que contratou como auxiliar. Há algo ali que não fecha. E antes que pense que estou delirando, eu pergunto: você realmente conhece a Clara que dorme ao seu lado?
Rafael sentiu um desconforto crescer no peito. Respondeu mais seco do que pretendia:
— O que você está sugerindo?
— Que talvez você esteja vivendo com a mulher errada, e que a certa esteja nesse escritório todos os dias sem saber quem é. — Vicente apoiou os cotovelos na poltrona, a voz baixa, firme. — O rosto muda, Rafael. Mas o olhar... o olhar entrega até os segredos que a memória esconde.
Silêncio.
Rafael desviou os olhos por um segundo. Aquilo era absurdo demais. Mas... e se não fosse?
— Você tem alguma prova? — perguntou por fim.
— Ainda não — respondeu Vicente, sem hesitar. — Mas já passei a vida inteira vendo pessoas mentirem com convicção. E quando vejo a sua “Clara”... sinto como se estivesse diante de uma excelente atriz. Já a nova auxiliar... carrega uma tristeza que ninguém finge.
Rafael passou a mão no rosto, exausto.
— Isso é loucura...
— Talvez. Ou talvez você só esteja com medo do que vai encontrar se procurar demais.
Vicente se levantou com calma, ajeitando o paletó.
— A verdade, Rafael, não se esconde pra sempre. E às vezes, ela bate na nossa porta com o mesmo rosto... só que com um nome diferente.
E saiu.
Rafael ficou ali, com o coração pesado. Pela primeira vez, começou a se perguntar se aquela dor que não sabia de onde vinha... era o aviso que ele tanto evitava ouvir.
A porta do apartamento se fechou com um clique seco. Rafael largou as chaves na mesinha de entrada e passou direto pela sala, sem acender as luzes. A penumbra do fim de tarde pintava sombras nas paredes, mas ele não se importava.
As palavras de Vicente continuavam ecoando como um tambor no peito.
“A verdade, Rafael, não se esconde pra sempre. E às vezes, ela bate na nossa porta com o mesmo rosto... só que com um nome diferente.”
“Clara” estava na cozinha, mexendo algo em uma panela. O aroma de comida caseira invadia o ambiente, como sempre fazia quando ela queria agradá-lo. Ele parou na porta, observando-a por um instante.
— Oi, amor — ela disse, sorrindo ao vê-lo. — Chegou mais cedo hoje?
Ele assentiu, encostando no batente. Pela primeira vez, não respondeu com um beijo ou um toque. Apenas observou.
— Teve um dia difícil? — ela insistiu, virando-se com a colher ainda na mão.
— Um pouco — respondeu, a voz mais baixa do que gostaria.
Ela se aproximou, como sempre fazia. Tocou seu braço com leveza.
— Quer falar sobre isso?
Ele hesitou. Por um segundo, pensou em dizer tudo. A dúvida. A conversa com o pai. O receio absurdo que começava a se formar. Mas então, olhou para ela. Os olhos doces. O rosto — tão familiar e ainda assim... algo nele parecia deslocado.
— Não. Não é nada — murmurou.
Ela assentiu, voltando para o fogão. Mas algo em sua expressão vacilou. Talvez fosse impressão dele. Ou talvez não.
Rafael caminhou até o quarto. Sentou-se na beira da cama e apoiou os cotovelos nos joelhos, a cabeça entre as mãos.
E se Vicente estivesse certo?
E se aquela mulher, com quem dividia a vida há tempos, não fosse quem ele acreditava?
Ou pior... e se, lá no fundo, ele sempre soube, mas nunca quis ver?
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