Capítulo 3

Vicente Salazar nunca confiava cegamente em primeiras impressões. Mas raramente ignorava sua intuição.

Na manhã seguinte, chegou ao escritório do filho mais cedo que o habitual. Rafael não estava — provavelmente preso no trânsito ou em alguma ligação — e a recepção estava vazia. A moça nova, Isadora, ainda não havia chegado.

Ele se aproximou da mesa onde ela costumava se sentar. Discretamente, como quem observa o ambiente por puro tédio, passou os olhos pelos objetos: uma caneca com marcas de batom, um bloquinho de anotações meticulosamente organizado por cor, e... uma folha mal dobrada parcialmente escondida entre as páginas.

Vicente não era o tipo que violava privacidade sem um bom motivo. Mas aquela folha parecia esquecida, não escondida. Ele a puxou com cuidado.

Era um esboço. Um desenho tosco de um rosto. O mesmo rosto repetido várias vezes, com variações sutis. Um nariz mais fino. A boca mais curva. Os olhos mais claros. Todos pareciam tentativas — como se a desenhista estivesse tentando lembrar alguém.

— Tentando se lembrar de quem, senhorita Isadora? — murmurou para si, guardando o esboço novamente.

Ouviu passos. Guardou as mãos nos bolsos e fingiu examinar um porta-retratos na estante quando a porta da frente se abriu.

— Bom dia — disse Isadora, tirando o cachecol encharcado. Estava ofegante da corrida contra o relógio e a garoa.

Vicente a observou por um segundo a mais que o necessário.

— Bom dia, menina. Dormiu bem?

Ela hesitou. Por um instante, a pergunta comum pareceu estranha. Como se ele esperasse uma resposta diferente da habitual.

— Dormi, sim. Um pouco — disse, tentando sorrir.

— Você se parece muito com alguém que conheci, sabia?

Isadora engoliu em seco. Forçou-se a rir, desviando o olhar.

— Já me disseram isso antes.

Vicente assentiu, como quem armazena uma informação. Não insistiu. Mas viu: o leve tremor nas mãos dela ao tirar os papéis da bolsa, o cuidado excessivo ao sentar, o olhar que evitava o seu.

No caminho para a sala de Rafael, ele já havia decidido. Aquela história tinha mais camadas do que aparentava. E ele não era mais juiz, mas o faro... esse nunca se aposentava.

Mais tarde, de volta ao seu apartamento, Vicente foi até uma antiga caixa de documentos, trancada a chave. Retirou um álbum de fotos empoeirado e folheou até encontrar o que procurava.

Ali estavam: Clara e Isadora. Crianças. Gêmeas idênticas, mas com brilhos diferentes no olhar.

— Então é isso — murmurou, olhando para o sorriso de uma delas. — Mas qual de vocês eu conheci... e qual está agora naquele escritório?

Fechou o álbum com cuidado. Seu próximo passo seria fazer perguntas discretas. Observar reações. Testar lembranças.

E principalmente, proteger o filho — mesmo que ele ainda não soubesse que precisava.

A chaleira elétrica apitava suavemente na copa do pequeno escritório. Isadora empilhava alguns papéis na recepção, concentrada, os fones no ouvido abafando o som do mundo exterior. Desde que começou ali, seus dias se resumiam a atender telefonemas, organizar documentos e tentar não chamar atenção.

Na sala ao lado, a porta se abriu e Vicente Salazar saiu, apoiando-se levemente na bengala. Rafael acompanhava o pai com passos curtos, segurando uma pasta de couro.

— Isadora — chamou Rafael com um tom prático —, prepare os contratos que deixei sobre a mesa da cópia. E, por favor, ligue para o senhor Yamada e confirme a reunião de amanhã às 10h.

Ela assentiu prontamente.

— Sim, senhor.

— Obrigado — disse ele, já se virando. Nada em seu tom sugeria intimidade ou interesse. Apenas a polidez formal de um chefe com sua funcionária.

Vicente, por outro lado, não deixou de encará-la enquanto vestia o casaco. Seus olhos atentos pareciam pesá-la em silêncio, como se tentasse decifrar algo que estava logo ali... mas ainda fora de alcance.

— Você é nova por aqui, não? — perguntou ele, casual, ajeitando os botões.

— Sim, senhor. Comecei essa semana.

— Vicente — corrigiu ele com um sorriso brando. — Apenas Vicente.

Ela sorriu de volta, educada.

— Claro... Vicente.

— De onde você é?

— De muitos lugares. Meu pai se mudava bastante. Não tenho raízes em nenhum canto específico.

— E sua mãe?

— Morreu quando eu era criança.

— E irmãos?

Ela negou com a cabeça, sem hesitar.

— Não. Sou filha única.

Vicente continuou observando por mais um instante, em silêncio. Depois apenas assentiu.

— Bem... seja bem-vinda.

Assim que ele e Rafael saíram, Isadora soltou o ar lentamente. Aquela conversa havia sido simples. Mas havia algo no olhar de Vicente que a deixava inquieta — como se ele soubesse mais do que deixava transparecer.

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Naquela noite, em seu pequeno quarto alugado, ela se desfez do uniforme e foi direto ao espelho do banheiro. Tirou a maquiagem devagar, como quem remove camadas de uma história que não é sua.

O rosto que via era o que conhecia por anos. Mas às vezes — só às vezes — ela sentia como se estivesse dentro de uma máscara. Como se por trás daquela pele houvesse outra pessoa gritando por ar.

Ela se aproximou do espelho, tocando levemente o próprio rosto.

— Quem é você de verdade? — murmurou.

O reflexo não respondeu. Mas o desconforto era cada vez mais difícil de ignorar.

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