A chuva caía fina sobre os telhados do subúrbio carioca, tingindo o céu de cinza pálido. Do lado de dentro do hospital, o ambiente estava silencioso, exceto pelos sons habituais: bipes constantes, passos apressados, portas abrindo e fechando. Era uma segunda-feira comum para os funcionários da ala de neurologia, mas para a enfermeira Joyce, aquele dia ficaria marcado.
Desde que a jovem desconhecida havia sido trazida desacordada após o acidente, algo dentro de Joyce havia mudado. Talvez fosse o olhar perdido que ela viu quando a garota acordou, ou o modo como suas mãos tremiam ao tentar responder perguntas simples, como seu nome. Maria Luiza. Era assim que a chamavam agora. Joyce é quem havia escolhido esse nome, de forma espontânea, quase como um instinto.
— O café aqui continua péssimo — murmurou Joyce, colocando um copo de papel na mesinha ao lado da cama. — Mas pelo menos tá quente.
Maria Luiza sorriu com um canto da boca. Era um sorriso frágil, como se ainda testasse os músculos do rosto, como se ainda não tivesse certeza de que tinha o direito de sorrir.
— Obrigada… Joyce.
Era estranho dizer nomes que ela não lembrava ter aprendido. Estranho, e ao mesmo tempo reconfortante. Joyce havia se tornado sua âncora. Desde que acordara no hospital, não havia um dia em que a enfermeira não estivesse ali, com seu jeito prático, sua voz baixa e suas histórias sobre ônibus atrasados, vizinhos barulhentos e receitas que nunca davam certo.
— Dormiu bem? — perguntou Joyce, puxando uma cadeira e se sentando ao lado.
Maria Luiza assentiu.
— Mais ou menos. Sonhei com… nada.
— Nada?
— É. Só um monte de neblina. Mas foi mais calmo que antes. — Ela abaixou o olhar. — Eu odeio dormir. Sempre acordo com a sensação de que tô esquecendo algo importante.
Joyce não respondeu de imediato. Apenas pegou a mão da jovem e a segurou entre as suas. Era um gesto pequeno, mas que falava mais que palavras.
— Talvez esteja mesmo — disse ela, com honestidade. — Mas vai lembrar. Com o tempo. E até lá, você não vai estar sozinha.
Maria Luiza olhou para ela, com os olhos úmidos. Joyce não sabia o motivo, mas aquela jovem a tocava profundamente. Talvez fosse o fato de que, apesar de tudo, ela nunca pedia nada. Nunca reclamava. Apenas olhava o mundo como quem tenta montar um quebra-cabeça sem caixa de referência.
— A propósito — disse Joyce, se levantando —, hoje o doutor Roberto vai vir falar com você. É o neurologista responsável pela sua reabilitação. Um cara excelente. Já cuidou de muita gente em situação parecida. É sério, mas tem um coração enorme.
Poucos minutos depois, a porta se abriu com discrição, e um homem alto, de cabelos grisalhos e expressão centrada entrou no quarto. Usava óculos de armação fina, jaleco impecável e uma prancheta nas mãos.
— Bom dia — disse ele, aproximando-se da cama. — Você deve ser nossa paciente especial.
Maria Luiza tentou sorrir.
— Só especial porque ninguém sabe quem eu sou — murmurou.
O médico sorriu com gentileza.
— Isso é só um detalhe temporário. Eu sou o doutor Roberto Albuquerque, neurologista. E estarei acompanhando seu caso a partir de agora.
Ele puxou uma cadeira e se sentou ao lado da cama, abrindo a prancheta.
— A enfermeira Joyce me contou bastante sobre sua evolução nos últimos dias. Você tem respondido bem, está com os exames estáveis, . Parabéns por isso.
— Não tenho escolha. Apenas sobrevivi— ela respondeu.
Roberto observou o modo como ela falava, os olhos ligeiramente distantes, como se procurasse palavras escondidas em um dicionário invisível.
— Amnésia dissociativa com trauma físico e emocional — disse ele, quase para si mesmo. — Situação rara, mas não impossível. O acidente, a explosão, o choque... o cérebro reage tentando proteger a mente de algo que, por algum motivo, ainda não pode ser enfrentado.
— Você acha que vou lembrar? — perguntou Maria Luiza, sem rodeios.
Roberto olhou para ela com seriedade.
— Não posso prometer quando. Pode levar dias, semanas... até meses. Mas a boa notícia é: quanto mais tranquila e acompanhada você estiver, maiores são as chances de recuperação espontânea. Por isso, decidi que a enfermeira Joyce vai ser sua acompanhante principal durante todo o tratamento.
Joyce, que estava encostada à porta, ergueu as sobrancelhas surpresa.
— Eu?
— Sim — confirmou ele. — Você criou um vínculo forte com a paciente, e isso é fundamental nesse tipo de caso. Sua presença tem sido positiva, estabilizadora. Com sua permissão, é claro — completou, voltando-se para Maria Luiza.
Ela assentiu na hora. Joyce era tudo o que ela tinha. Uma ligação real. Algo sólido em meio ao caos.
— Claro. Eu... eu agradeço por isso.
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Naquela noite, Joyce saiu mais tarde do hospital. Voltou para seu pequeno apartamento no subúrbio, uma quitinete simples com paredes pintadas de azul claro e móveis antigos herdados da mãe. Colocou uma lasanha congelada no forno e sentou-se no sofá com as pernas cansadas esticadas.
Não conseguia parar de pensar em Maria Luiza.
Tinha algo naquela garota. Uma tristeza silenciosa, uma força não dita. Joyce se via nela. Em muitos momentos da vida, também havia se sentido perdida, sem saber quem era, sem direção. Só que, ao contrário de Maria Luiza, ela lembrava de tudo — até do que preferia esquecer.
Na manhã seguinte, Joyce chegou cedo ao hospital. Levou uma bolsa com um livro, uma escova de cabelo nova e um creme hidratante.
— Trouxe umas coisinhas pra você — disse, entrando no quarto de Maria Luiza, que já estava acordada, sentada na cama, com os cabelos bagunçados.
— Obrigada... você não precisava.
— Precisar, não precisava. Mas eu quis. Não é todo dia que a gente ganha uma irmã adotiva — brincou.
Maria Luiza sorriu, pela primeira vez com mais leveza.
— Irmã adotiva? Você sempre foi assim com todo mundo?
— Não. Só com quem merece — respondeu Joyce, piscando um olho.
Passaram a manhã juntas. Joyce escovou os cabelos de Maria Luiza com cuidado, como uma irmã mais velha faria. Leram trechos do livro em voz alta. Falaram sobre as plantas que Joyce cultivava no parapeito da janela. Riram de uma novela antiga que passava na TV do quarto.
Era um dia comum. Mas, para Maria Luiza, parecia o primeiro dia real desde que acordara naquele lugar. Pela primeira vez, sentiu algo diferente da confusão. Sentiu... pertencimento.
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Mais tarde, Roberto voltou para reavaliá-la. Fez testes simples de memória e coordenação, fez perguntas indiretas, buscando qualquer lampejo de lembrança. Mas não havia nada ainda. Nenhuma pista.
— Por enquanto, quero que se concentre em se fortalecer — disse ele. — Descansar, se alimentar bem, manter a mente ocupada com coisas boas. Se tiver sonhos, me conte. Se lembrar de cheiros, músicas, qualquer coisa... anote. Tudo pode ser uma pista.
Ela assentiu, determinada. Sentia que algo dentro dela começava a reagir. Devagar, sim. Mas reagir.
Quando Roberto saiu, ela olhou para Joyce, que a observava com carinho da poltrona ao lado.
— Você acredita que um dia eu vou lembrar quem eu sou de verdade?
Joyce sorriu.
— Eu acredito que você já é alguém de verdade. Só ainda não sabe o nome dessa pessoa.
Maria Luiza sorriu de volta. Pela primeira vez, não teve medo do vazio. Porque agora, no meio de toda aquela escuridão, havia uma luz.
E o nome dessa luz era Joyce.
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Atualizado até capítulo 74
Comments
Dulce Gama
eu acho que o noivo está com interesse pra ela assinar o documento talvez golpe sei lá 👍👍👍👍👍❤️❤️❤️❤️❤️🎁🎁🎁🎁🎁🎁🌹🌹🌹🌹🌹
2025-04-09
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