um passeio

Eu tinha dezessete anos quando saí da minha prisão pela primeira vez.

Não era um passeio autorizado — ninguém jamais me permitiria andar livremente. Mas naquele dia, uma distração, uma porta mal trancada, um sopro de vento e esperança… e meus pés decidiram por mim. Atravessei o portão dos fundos do palácio, enfaixada da cabeça aos pés, como sempre. Minhas mãos tremiam, meu peito doía, mas meu coração batia com uma força que eu nunca tinha sentido antes. Eu estava livre.

O mundo lá fora era enorme.

As árvores balançavam com uma graça silenciosa, e o cheiro do pão recém-assado dançava no ar. Os telhados das casas tinham cores vivas, as barracas exibiam frutas que eu só via jogadas no lixo do palácio. E as vozes — ah, as vozes — tantas, misturadas, vibrando por todos os cantos.

Meus pés pisavam no barro da rua com cuidado, como se o chão fosse sagrado. Cada passo era uma conquista. Olhava para os lados encantada, faminta por tudo. Uma menina — talvez da minha idade — passava rindo com sua mãe, segurando uma boneca. Eu sorri. Pela primeira vez em muito tempo, eu sorri.

Mas o encanto durou pouco.

Um garoto me viu primeiro. Seus olhos arregalaram. Ele cochichou algo no ouvido do pai. O homem virou o rosto, me encarou. Seus olhos se estreitaram. E então, como uma onda que cresce silenciosa até despencar com força, tudo mudou.

— “É ela. Aquela criatura. A amaldiçoada.”

Senti o primeiro olhar de nojo. O segundo veio como uma faca. O terceiro, como uma pedra.

Logo, havia um grupo em volta de mim. Cercando-me.

— “Por que ela tá aqui?”

— “Essa coisa devia estar trancada.”

— “Maldita! Vai embora, demônio!”

Tentei me explicar, mas as palavras não saíam. Eu não sabia como falar com pessoas. Minhas frases eram fragmentadas, confusas, a voz tremia, falhava. Cresci sozinha, com o silêncio como única companhia — minhas palavras nunca tiveram ouvidos.

Um menino pegou um punhado de terra e jogou em mim. A terra grudou nas faixas, no meu rosto, e eu levei a mão ao véu que cobria meus olhos, mas foi tarde demais. Ele caiu. Meus olhos vermelhos brilharam sob o sol.

Foi como acender um fósforo.

Gritos. Correria. Me empurraram. Um homem me deu um tapa tão forte que caí no chão. Chutes vieram depois. Rápidos, impiedosos. Tentava me proteger com os braços, mas batiam neles também. Senti o gosto de sangue. As rachaduras sob minha pele — aquelas que ardiam a cada lua cheia — começaram a pulsar. Era como se abrissem de novo, uma a uma. Cada golpe fazia meu corpo gritar de dentro pra fora.

— “Monstro!”

— “Filha do diabo!”

Me arrastei, cega de dor e poeira. Alguém puxou meu cabelo. Outro cuspiu em mim. Eu implorava com o olhar, mas ninguém via uma criança ali. Só viam a maldição.

Fugi. Correndo, tropeçando, chorando.

Voltei para a cabana velha como um animal ferido. Me joguei no chão duro e sujo, abracei minhas próprias pernas e deixei o choro vir. Um choro pesado, silencioso, sufocado — o tipo de choro que ninguém escuta, porque ninguém se importa.

Eu só queria ver o mundo.

Só queria ser uma menina comum.

Mas o mundo não me quis.

O mundo me mostrou, mais uma vez, quem eu era.

Lilith.

A indesejada.

A aberração.

E naquela noite, deitada entre as sombras, com as costelas doloridas, a pele ferida e o coração despedaçado… eu entendi que até sonhar era perigoso.

A dor ainda latejava em cada centímetro do meu corpo quando escutei os passos se aproximando da cabana.

Pesados. Determinados.

Eram muitos.

O medo me paralisou. Eu ainda estava no chão, encolhida em posição fetal, com as faixas sujas de sangue e terra. Meus ossos doíam. Minha pele queimava. Mas o pior não era nada disso. Era a voz. Aquela voz que eu reconheceria mesmo entre mil trovões.

— “Onde está a maldita?”

O rei.

Ele entrou como uma tempestade, acompanhado por dois guardas armados e um servo com o rosto cinzento de medo. A porta foi escancarada com tanta força que bateu na parede e quase caiu. Eu tentei me levantar, mas mal consegui ficar de joelhos. Quando olhei para cima, vi os olhos dele flamejando de ódio.

— “Você ousou sair?” — ele rosnou. — “Você... abominação maldita, foi vista pela cidade?”

Minhas mãos tremiam. Não consegui responder. Só balancei a cabeça, quase implorando por perdão com o olhar. Mas ele já havia se decidido. Não havia perdão para mim. Nunca houve.

— “Tirou o véu? Mostrou seus malditos olhos?!”

O primeiro tapa veio seco, estalando contra meu rosto. Minha cabeça virou com o impacto, e senti o gosto metálico do sangue imediatamente. Depois vieram os gritos.

— “Você trouxe desgraça à minha cidade! Fez as pessoas verem sua podridão! Você é um câncer, Lilith! Um câncer que nunca devia ter nascido!”

Ele arrancou o cinto de couro da cintura com um movimento raivoso. O som do couro deslizando pelas presilhas me fez congelar. Eu já conhecia aquele som. Conhecia muito bem.

— “Quer ver o mundo? Eu vou te mostrar o que o mundo faz com aberrações como você.”

O primeiro golpe do cinto atingiu minhas costas com força brutal. Senti a carne se abrir sob as faixas, o calor do sangue se misturando ao suor frio da febre que nunca me deixava. O segundo golpe veio rápido, certeiro, cortando o ar e me arrancando um grito que rasgou minha garganta. O terceiro... o quarto... eu perdi a conta. Caí no chão de novo, os braços tentando me proteger, mas ele não parava.

— “Seu lixo imundo! Você acha que pode andar entre as pessoas? Olhá-las com esses olhos malditos?” — ele berrava, com ódio puro na voz.

Então ele chutou meu estômago. O ar saiu dos meus pulmões de uma vez. Vomitei sangue. As rachaduras no meu corpo começaram a arder, como se estivessem vivas, reagindo à violência. Era como se a maldição gritasse comigo de dentro, dizendo que até ela se cansava da minha fraqueza.

— “Você devia ter morrido ao nascer!” — o rei cuspiu em mim.

Ele puxou meu cabelo, forçando meu rosto para cima. Suas mãos estavam tremendo de raiva. Eu não conseguia mais ver direito. Um dos meus olhos estava inchado, o outro ardia. Mas consegui dizer, com a voz mais fraca do mundo:

— “Desculpa...”

Ele me largou. Eu caí como um saco vazio, como algo que não importava. Ele virou de costas e cuspiu no chão.

— “Da próxima vez que sair, eu mesmo vou cortar seus pés.”

Saiu deixando a porta escancarada, o frio da noite entrando e me envolvendo como um abraço cruel. Os guardas o seguiram em silêncio. Ninguém disse uma palavra. Ninguém me olhou. Eu era menos que um animal.

Fiquei ali, respirando com dificuldade, o sangue se acumulando sob meu corpo, o mundo girando devagar. E mesmo assim... no meio da dor... uma parte de mim ainda desejava o impossível:

Ser amada.

Ser vista como gente.

Só por um instante.

Mas ali, naquele chão frio, com a pele cortada, os ossos vibrando em agonia e o coração completamente esvaziado... eu sabia.

Eu era Lilith.

E para o rei, para o mundo, eu nunca seria nada além de um erro vivo.

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