Lilith

À medida que eu crescia, o mundo ao meu redor não mudava. Continuava escuro, frio e silencioso — um silêncio que doía mais que qualquer grito. Meus primeiros anos de vida foram envoltos em sombras, atrás das paredes mofadas daquele barraco nos fundos do palácio. Ninguém sorria para mim. Ninguém estendia os braços para me acolher. Eu não entendia por quê. Eu apenas sentia.

Meus primeiros passos aconteceram no chão duro, com farpas de madeira entrando nos pés descalços. Eu caía muitas vezes, chorava baixinho, porque aprendera que fazer barulho só trazia broncas ou tapas. Não havia mãos para me levantar. Eu me apoiava em paredes frias, tremendo, tentando manter o equilíbrio sozinha. Não havia brinquedos. Nem voz alguma que me ensinasse palavras. Quando tentei balbuciar sons, eles morreram no ar. Ninguém respondia. Ninguém falava comigo. Cresci com a língua presa na solidão. Por muito tempo, eu não sabia dizer meu nome — e talvez nem tivesse um.

As servas que vinham me alimentar faziam isso como quem alimenta um animal sujo. Empurravam tigelas com papas frias, sempre de longe, com nojo visível no olhar. Algumas vezes, viravam o rosto quando eu tentava tocá-las. Outras vezes, se enojavam se minha mão — suja de febre ou sangue — encostava nelas. Uma chegou a me bater com a colher quando estendi os braços. Não queriam que eu me aproximasse. Eu aprendi a comer sozinha, sentada no chão, lambendo os restos da tigela como uma pequena besta faminta. Nenhuma delas olhava nos meus olhos — porque meus olhos eram proibidos.

Quando eu fiz cinco anos, o rei mandou que meus olhos fossem cobertos. Disse que eram “aterrorizantes”. Mandou amarrar uma faixa escura sobre meu rosto. Eu enxergava. Enxergava tudo. Mas o mundo escolheu se cegar para mim. Se eu ousasse tirar a venda, mesmo por um segundo, a punição era brutal. Chicotes cortavam minhas costas como línguas de fogo. Era o rei quem mandava. Às vezes, era ele mesmo quem vinha. Outras vezes, eram os servos. Sim, os próprios servos. Aqueles que me alimentavam com nojo agora me batiam com fúria. Usavam varas, correias, cinto. Eu apanhava até perder os sentidos, até o sangue se misturar às lágrimas, até minha boca gritar por um alívio que nunca vinha.

Meu corpo era fraco. Muito fraco. A maldição que me marcaram ao nascer crescia comigo como algo vivo, e cruel. A cada lua cheia, eu era engolida pela dor. Febres altíssimas me faziam delirar. Meu corpo tremia, minha pele queimava como se pegasse fogo por dentro. Eu vomitava — um líquido espesso, negro, amargo como ferro — até minha garganta arder e meu estômago se revirar em agonia. Às vezes, desmaiava sozinha no canto. Outras, rastejava para tentar alcançar água, e me arrastava pelas tábuas como um animal ferido. Ninguém vinha. Ninguém cuidava. Apenas passavam, olhavam de longe e sussurravam: "a aberração está morrendo de novo".

Mas eu não morria. Sobrevivia. De algum jeito, sempre sobrevivendo à dor, ao desprezo, ao castigo. E a cada vez que voltava à consciência, me perguntava o porquê. Por que eu? Por que fui feita assim? Por que todos me odeiam, se eu sequer pedi para existir?

Eu não era uma criança. Eu era uma maldição viva. Uma coisa que respirava por teimosia. Crescia em silêncio, no escuro, esperando por algo que nunca vinha: amor, perdão... ou ao menos, um olhar que não me temesse.

Me chamaram de Lilith.

Não porque fosse bonito. Não porque significasse algo doce ou amado. Me deram esse nome como se colassem uma sentença em minha testa. Como se até a palavra que me chamava tivesse que doer.

Eu descobri cedo que meu nome não era como o das outras crianças — porque as outras crianças sequer tinham permissão de chegar perto de mim. Ninguém me chamava com alegria. Não havia braços me esperando, nem vozes suaves dizendo "vem cá, Lilith". Meu nome era um sussurro no corredor. Um aviso. Um sibilo de medo. Um sinônimo de praga.

Ouvi as criadas cochichando: “Só poderia ter esse nome mesmo.”

“Nome de demônio.”

“Trouxe má sorte desde o nascimento.”

Eu não sabia o que “demônio” era, não de verdade. Mas entendi, mesmo pequena, que era algo ruim. Algo nojento. Algo que ninguém queria por perto. Algo que só existia para ser evitado… ou exterminado.

E eu era isso.

Lilith.

Eu só fui entender o que significava com o tempo. No começo, era apenas o som que vinham gritar quando algo dava errado. Quando a comida queimava, quando o vento quebrava janelas, quando um servo tropeçava. “É culpa da Lilith.”

Sempre era culpa minha.

Meu nome virou sinônimo de azar, de tragédia. De tudo que não deveria existir.

Ninguém me explicou o que ele queria dizer — eu ouvi sozinha, pelos cantos, quando pensavam que eu não entendia. Uma mulher amaldiçoada, que foi expulsa do paraíso. A primeira mulher, que ousou dizer “não”. Que virou demônio. Que virou praga.

E eu me perguntei tantas vezes: por que dar esse nome a um bebê? Por que marcar uma criança com algo que carrega tanto ódio?

Eu não escolhi nascer. Não escolhi os olhos que tenho, nem a marca que brilha no meu peito. Não escolhi essa maldição que me rasga por dentro a cada lua cheia. Mas mesmo assim, me deram esse nome. Como se quisessem deixar claro, desde o início, que eu não era uma de verdade. Que eu era uma coisa. Um erro.

Dói.

Dói toda vez que alguém o pronuncia com repulsa. Toda vez que ouço alguém se afastar só por sussurrá-lo. Dói quando tento dizê-lo sozinha, baixinho, com esperança de que talvez — só talvez — ele possa ser meu de outra forma.

Mas ele nunca foi.

Lilith é o nome que carreguei nos ombros fracos de criança, enquanto tropeçava nos primeiros passos, caía e ninguém me levantava. Enquanto aprendia a falar sozinha, sem resposta, repetindo palavras no vazio. Enquanto crescia entre olhares que me evitavam, mãos que me empurravam, e vozes que diziam que eu jamais deveria ter sido.

Me chamaram de Lilith.

Não para me dar identidade.

Mas para me lembrar, todos os dias, que eu era indesejada.

E eu…

eu nunca consegui esquecer.

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