humA noite seguinte chegou envolta em um silêncio que parecia esperar por algo. A cidade dormia preguiçosamente, e Celine caminhava pelas ruas com o coração mais calmo — e mais aberto. As palavras trocadas com Ethan ainda ecoavam em sua mente. Talvez as fissuras estivessem ali, mas elas também deixavam entrar luz.
Ela atravessou o portão do jardim abandonado e o encontrou encostado na antiga fonte de pedra, onde a água há muito não corria. Ele olhava para o céu como se cada estrela lhe contasse um segredo antigo.
— Você está diferente hoje — ela disse, sorrindo.
Ethan virou-se para ela e sorriu de volta. Um sorriso mais leve, menos carregado do peso da eternidade.
— Acho que ontem foi importante — respondeu ele.
— Foi — ela concordou. — E eu estou com fome.
Ele ergueu uma sobrancelha, surpreso com a mudança de assunto.
— Fome?
— Não literalmente — disse ela, rindo. — Fome de vida. De mais. De nós.
Ethan se aproximou, e a aura dele parecia menos contida, como se tivesse afrouxado as amarras que o prendiam por tanto tempo.
— Você não tem medo de mim?
— Já tive. Agora tenho medo de te perder.
E ele parou. Ficou olhando para ela por longos segundos antes de estender a mão. Ela a segurou, sem hesitação. Juntos, saíram do jardim e caminharam pelas ruas vazias da cidade. Ethan parecia mais relaxado, até curioso, como se redescobrisse o mundo pelos olhos dela.
Celine o levou até uma pequena praça escondida atrás da biblioteca municipal, onde uma sorveteria 24h mantinha as luzes acesas. A funcionária bocejou ao vê-los, mas os atendeu com simpatia.
— Você quer? — perguntou Celine, segurando o cardápio de sabores.
Ethan a olhou com uma expressão divertida.
— Acho que minha digestão não aprova mais isso.
— Então você vai me assistir comer sorvete de baunilha com calda quente de frutas vermelhas.
— Um prazer.
Sentaram-se em um banco de madeira enquanto ela saboreava o sorvete. A lua acima lançava um brilho suave sobre os dois. Ethan observava cada gesto dela com uma ternura silenciosa.
— Você sente falta disso? — ela perguntou. — Comer, sentir sabores, essas coisas simples?
— Às vezes. Mas com o tempo, essas memórias se tornam suaves, como névoa. O que sinto mais falta, na verdade, é da sensação de estar realmente cansado, depois de um longo dia. De dormir profundamente.
— Vampiros não dormem?
— Dormimos. Mas não como os humanos. É um estado entre a vigília e o esquecimento. Um descanso da mente, mais do que do corpo.
Celine ficou em silêncio por um momento.
— E sangue? — ela perguntou, hesitante.
Ethan não desviou o olhar. Não parecia envergonhado.
— Sim. Preciso. Não com frequência. Aprendi a me controlar. Há formas éticas. Bancos. Doações. Nada violento.
— Você nunca...
— Nunca machuquei ninguém. Não depois do primeiro ano. Lysandra me ensinou o controle. E depois que ela se foi, tornei isso uma regra.
Ela assentiu, aliviada.
— Posso te fazer uma pergunta estranha? — ela disse, encarando o restante do sorvete derretido.
— Com você, todas são bem-vindas.
— O sangue... tem sabor?
Ele sorriu, mas havia um traço de melancolia na expressão.
— Tem. Cada pessoa tem um gosto único. Uma essência. Mas não é só o físico. Há emoção no sangue. Medo, dor, amor, alegria. Sentimos tudo. Por isso é tão perigoso para nós. Vicia. Confunde. Pode quebrar até o mais forte dos nossos.
Celine o olhou por alguns segundos, depois pegou um guardanapo e limpou os dedos. Jogou o pote vazio no lixo e voltou para o banco, mais próxima dele.
— E se eu quisesse... te oferecer um pouco?
O olhar de Ethan se alterou. Não era fome, mas um alerta. Um brilho intenso que durou apenas um instante.
— Por que você faria isso?
— Porque quero entender. Sentir o que você sente. E porque confio em você.
Ethan ficou em silêncio. O ar entre eles ficou mais denso. Não era só sobre o ato. Era sobre intimidade. Entregar o próprio sangue não era apenas um gesto — era abrir a alma.
— Uma pequena gota — ele disse, baixando a voz. — Só para que você saiba. Eu nunca te machucaria.
Ela assentiu e estendeu o pulso. Ethan segurou com cuidado, como quem segura algo sagrado. Seus olhos se fecharam por um instante, como se estivesse se preparando.
Com um gesto delicado, ele encostou os lábios na pele dela e deixou os dentes tocarem de leve. A dor foi breve — como uma picada de agulha. Mas o que veio depois foi algo que ela jamais poderia ter descrito.
Ela sentiu uma onda de calor subindo pelo braço, depois por todo o corpo. Uma espécie de vertigem doce, como se estivesse flutuando dentro de si mesma. As memórias começaram a surgir — o cheiro do quarto de infância, a risada do pai no fim de tarde, a primeira vez que fotografou uma borboleta no parque. E então, os sentimentos. Amor. Tristeza. Desejo. Esperança. Tudo entrelaçado em uma única sensação: vida.
Ethan afastou-se rapidamente, respirando fundo como se estivesse se contendo. Celine sentiu o pulso latejar levemente, mas a sensação era de leveza.
— Você está bem? — ele perguntou, ofegante, os olhos mais escuros que nunca.
— Sim — ela respondeu, com um sorriso tênue. — Foi... lindo.
— Eu senti você inteira — disse ele. — Suas emoções, suas dores, seus sonhos. Você é feita de luz, Celine. Mesmo nas suas sombras.
Ela se aproximou e encostou a cabeça no ombro dele. Os dois ficaram assim, em silêncio, sob a luz fraca da praça, ouvindo os sussurros da noite.
A intimidade daquele momento havia criado algo novo entre eles. Algo que ia além das palavras. Além dos séculos. Era o início de algo que poderia, talvez, resistir ao tempo.
Ou se quebrar diante dele.
Mas por agora, só havia paz.
E o sabor da noite ainda permanecia em seus sentidos.
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Atualizado até capítulo 24
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