O semestre avançava sem pedir licença, e com ele chegou o temido — e aguardado — júri simulado da turma. O professor de Penal havia preparado o evento com todo o rigor de um tribunal real: banca avaliadora, toga simbólica, distribuição de papéis, um caso fictício baseado em um crime hediondo que exigia frieza, técnica e, acima de tudo, coragem.
Helena fora escolhida como promotora de acusação. Uma posição de destaque, de responsabilidade. Por um momento, pensou em recusar. Mas algo dentro dela — uma força nova e silenciosa — disse que não. Não mais.
O caso envolvia o assassinato brutal de uma mulher por um ex-companheiro. Havia provas, havia contradições, havia espaço para questionamentos. Mas, para Helena, havia algo maior: havia dor e justiça em jogo. E dessa vez, ela não era a vítima.
Seu grupo se mobilizou para montar a acusação. Na reta final dos preparativos, um impasse: falta de conhecimento técnico sobre o comportamento do réu em relação à legítima defesa da honra — argumento que o “advogado” da defesa pretendia utilizar no julgamento. Foi então que Anita, sem consultar Helena, disse:
— Acho que só o Miguel pode explicar isso pra gente do jeito que o professor quer.
Helena congelou por um segundo. O nome dele ainda provocava algo entre a tensão e a memória. Fazia meses que não trocavam uma palavra. Desde a festa, desde tudo.
— Eu posso tentar outra fonte — ela respondeu, rapidamente.
— Já chamei — Anita cortou, olhando para o celular. — Ele topou. Vai aparecer no plenário amanhã.
Helena queria gritar, recuar, desaparecer. Mas algo dentro dela se recusava. Ela não ia se dobrar. Não agora.
O dia do júri chegou.
O salão do júri simulado fora montado no auditório da faculdade. Cadeiras enfileiradas, alunos e professores assistindo, celulares gravando. Helena usava calça social preta, blazer e uma camisa branca. Cabelos presos, expressão sóbria. Os olhos dela estavam diferentes — firmes, alertas, preparados.
Miguel entrou no meio da sessão, trajando jeans escuros e camisa preta dobrada nos antebraços. Carregava uma pasta com os documentos que havia prometido levar. Parou ao ver Helena no centro da sala, de pé diante da banca e dos colegas, sustentando o olhar do “réu”.
Os olhos dos dois se encontraram, e por um segundo, o tempo pareceu hesitar.
Mas ela não abaixou a cabeça. Não desviou o olhar.
— Excelência, senhores jurados, hoje não julgamos apenas um crime — sua voz cortou o silêncio como lâmina firme —, julgamos um padrão que se repete, silenciosamente, em becos, em camas, em ruas, em festas. Julgamos um homem que acreditou ter o direito de decidir se uma mulher vivia ou morria, simplesmente por não aceitar sua liberdade.
Miguel permaneceu em pé no fundo da sala, escutando. Seu semblante era sério, atento. Havia algo nos olhos dele que Helena não soube decifrar — talvez surpresa, talvez respeito.
Ela continuou. Argumentou, rebateu, mostrou provas, falou de estatísticas de feminicídio, e, acima de tudo, defendeu com convicção a mulher morta que representava todas as outras que haviam sido silenciadas.
O julgamento simulado se estendeu por quase duas horas. Os argumentos iam e vinham, mas havia algo de magnético na forma como Helena conduzia a acusação. Não era apenas conhecimento técnico — era a fúria contida de quem conhecia por dentro o significado da palavra impunidade.
Ao final, o professor que presidia a sessão se levantou, assumindo o papel de juiz, e leu a sentença fictícia com um tom solene que arrepiou todos os presentes:
— Considerando a gravidade do crime, os elementos apresentados pela promotoria e a fragilidade da defesa quanto à tentativa de justificar o ato, este júri simulado condena o réu a vinte anos de prisão em regime fechado, por feminicídio qualificado.
Helena sentiu a garganta apertar. Não era real, ela sabia. Mas, de alguma forma, a condenação ecoou como uma pequena vitória pessoal. Um símbolo. Um lembrete de que sua voz ainda tinha força — e que justiça, ainda que simbólica, era possível.
A plateia aplaudiu novamente. Professores parabenizaram seu desempenho, colegas vinham até ela com sorrisos genuínos. Pela primeira vez em muito tempo, Helena sentiu algo que não sentia há meses: orgulho de si mesma.
Miguel ainda estava lá, de pé ao fundo da sala. Não sorriu. Não disse nada. Mas quando Helena cruzou novamente seu caminho na saída, ele falou, baixo, com uma seriedade incomum:
— Você foi brilhante hoje.
Ela apenas assentiu com a cabeça, sem parar de andar. Sabia que ele estava sendo sincero. Mas aquele elogio já não causava o mesmo efeito de antes. Ela não precisava mais disso.
O tempo passou, como sempre passa. Miguel formou-se antes dos demais, como previsto. A formatura dele foi comentada nos corredores por alguns dias, mas Helena se manteve distante. Não foi à colação, nem às festas que a turma organizou em sua homenagem. Ele saiu da universidade como entrou: com charme, com presença — mas agora, também com distância.
Helena, por sua vez, continuou firme no curso. Focada, discreta e disciplinada. Depois do júri simulado, tornou-se referência entre os professores. O brilho da garota que chegou encantada pelos ipês da Unifesspa voltava aos poucos, ainda que diferente — mais maduro, mais contido, mas ainda dela.
Foi nesse ritmo, já no quinto semestre, que Arthur Melo reapareceu.
O reencontro aconteceu de forma simples, numa troca de mensagens sobre uma matéria que ele viu Helena comentando nos stories. A conversa seguiu natural, escorregando de textos sobre política para lembranças da infância e, em pouco tempo, para declarações discretas de saudade. Ele estava diferente, mais maduro, com um olhar atento, gentil, e um sorriso que buscava sinceridade.
Helena, ainda em reconstrução, hesitou. Mas Arthur foi paciente, respeitoso, e soube esperar seu tempo. Quando a convidou para um café, ela aceitou. Quando segurou sua mão pela primeira vez, ela não recuou. E quando ele a pediu em namoro, alguns meses depois, Helena aceitou com um sorriso tímido, mas verdadeiro.
Arthur não sabia de tudo. Helena nunca contou.
Não por medo da reação dele, mas por não saber como nomear aquele episódio sem que a voz tremesse, sem que algo dentro dela se quebrasse de novo. Aquela noite estava trancada em um lugar fundo e escuro da sua memória — e abrir essa porta exigiria mais do que ela estava pronta para entregar.
Arthur sabia apenas que ela tinha mudado. E respeitava isso.
Ele era carinhoso, estava presente. Fazia piadas bobas só para ver Helena sorrir, mandava mensagens em manhãs de prova e insistia em levá-la em dates simples, com pipoca e serenidade. Aos poucos, Helena começou a acreditar que talvez o amor pudesse, sim, ser um lugar seguro.
Mas mesmo com o carinho de Arthur, o silêncio ainda morava nela. E ela se perguntava, às vezes, se um dia teria coragem de contar a verdade — não só a ele, mas a si mesma.
Por enquanto, o que ela podia fazer era seguir. E amá-lo do jeito que conseguia.
Um passo de cada vez.
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Atualizado até capítulo 38
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