A noite caía com um frio cortante, e o caminho até em casa parecia mais longo do que nunca. As pernas vacilavam sob o peso das pancadas, e o sangue já seco na lateral do rosto começava a coçar como se quisesse lembrar cada segundo do espancamento. Meus dedos estavam inchados, o lábio partido, o estômago vazio há dois dias. Mas ainda assim, eu andava. Porque precisava voltar pra casa. Porque sabia que, por mais quebrada que eu estivesse, era pior se eles me vissem sangrando sozinha no meio da estrada. Precisava parecer forte, mesmo quando tudo dentro de mim estava desmoronando.
A fumaça fraca da chaminé foi a primeira coisa que vi ao me aproximar da casa. Um fio tênue no céu escuro, um sinal de que, ao menos, havia calor ali dentro. A porta de madeira estava encostada, como sempre, porque a tranca já não funcionava direito desde o último inverno. Empurrei devagar, tentando não fazer barulho.
Mas foi inútil.
— Filha?
A voz da minha mãe veio baixa, mas carregada de alívio e medo. Ela se levantou rápido da beirada da cama onde estava costurando algo com as mãos trêmulas. Quando me viu na penumbra da porta, o pano caiu no chão. A expressão no rosto dela se partiu. A mão foi à boca num reflexo. Os olhos se encheram de lágrimas antes que qualquer palavra saísse.
Ela correu até mim.
— O que…? O que aconteceu com você?!
Eu tentei responder, mas a garganta doía. Era como se as palavras estivessem presas num nó sufocante.
— Eles… me pegaram… — foi tudo que consegui dizer.
Ela me puxou com cuidado pra dentro, me deitando no banco acolchoado junto ao fogo, examinando cada ferida com dedos tremendo. Chorava enquanto passava o pano molhado nas costelas roxas, murmurando palavras que eu não ouvia direito. Os olhos dela estavam inchados, exaustos. A doença ainda não tinha dado sinais nela — não claramente —, mas o cansaço morava nos ombros, no jeito que ela respirava, como se estivesse sempre se arrastando para o próximo dia.
Foi então que meu pai chegou.
Ele entrou empurrando a porta com o ombro, carregando um saco de batatas miúdas e algumas raízes secas. O rosto, endurecido pelo tempo e pela vida, relaxou por um segundo ao nos ver. Mas quando viu o sangue no meu rosto, o saco caiu no chão com um som surdo. Ele atravessou a casa em três passos largos, ajoelhando-se ao meu lado com uma urgência que eu não via há anos.
— Quem fez isso com você? — perguntou, com a voz baixa, mas carregada de uma fúria que ele raramente deixava transparecer.
Eu desviei o olhar.
— Tentei… pegar comida. De um nobre. Eles me viram.
Por um momento, só o estalo da lenha queimando se ouvia. Ele respirava fundo, tentando conter a raiva. Depois, sem dizer uma palavra, se levantou e foi até a prateleira mais alta da casa — onde guardava uma garrafa de algo forte, que só usava quando o desespero batia. Tomou um gole longo, apoiou as mãos na mesa e fechou os olhos. Quando voltou para perto de mim, ajoelhou-se novamente e segurou minha mão com firmeza.
— A culpa não é sua. Você tentou ajudar. Isso é mais do que aqueles bastardos jamais fariam.
Minha mãe chorava em silêncio, limpando meu rosto com um pano úmido. A noite passou devagar, como se o tempo se recusasse a seguir adiante. O calor da lareira era pouco diante do frio que começava a se espalhar dentro da casa.
E foi no dia seguinte que ela começou a tossir.
No começo, parecia apenas cansaço. Mas à tarde, ela já tinha febre. À noite, suava frio e mal conseguia se manter em pé. Meu pai tentou manter a calma, dizendo que podia ser só um resfriado. Mas eu sabia. Era a mesma tosse seca, o mesmo calor na pele, o mesmo olhar ausente que Liora teve antes de morrer. A mesma doença. E ninguém faria nada.
Enquanto minha mãe ardia de febre, a coroa enviava carruagens cheias de curandeiros para a mansão do duque da colina, porque o filho mais novo teve uma crise de soluço após comer demais. Enquanto ela delirava em cima da esteira de palha, curandeiros com capas bordadas em ouro desfilavam pelas ruas da capital curando arranhões, enquanto o povo morria a céu aberto.
Meu pai passou a dormir no chão ao lado dela, segurando sua mão todas as noites, e passava o dia vasculhando a floresta por ervas que pudessem aliviar a febre. Mas nada adiantava. O corpo dela se entregava lentamente, como se a dor acumulada de todos aqueles anos finalmente tivesse vencido.
Eu sabia que minha mãe estava morrendo. Cada dia era uma contagem regressiva silenciosa, e mesmo quando ela tentava sorrir pra mim ou dizer que estava melhor, dava pra ver nos olhos dela que não era verdade. A doença estava vencendo, como venceu com Liora. Só que desta vez… desta vez não seria igual. Seria pior.
A febre dela oscilava, mas o corpo já não reagia. Passava dias inteiros deitada, respirando com dificuldade, os olhos sempre avermelhados, os dedos tremendo. Papai fazia o possível — e o impossível — pra manter o fogo aceso, pra encontrar alguma erva que prestasse, pra cozinhar qualquer coisa que não fosse só água quente com raízes velhas. Mas o mundo já havia decidido nosso destino, e tudo o que nos restava era resistir mais um pouco.
Naquela noite, o frio era tanto que o gelo parecia ter se infiltrado nas paredes da casa. Dormíamos todos juntos, lado a lado, sobre cobertores finos que já não aqueciam, como se o calor dos nossos corpos pudesse, de algum modo, manter minha mãe viva. O pai de um lado, eu do outro, e ela no meio — frágil, com a pele pálida e a respiração falha.
Foi quando ouvimos.
Um som úmido, como carne sendo rasgada. Depois, o estalo de madeira sendo esmagada lá fora. Meu pai se ergueu de súbito, instinto despertando antes da razão. Meus olhos procuraram pela origem do som pela fresta da janela. E então eu vi.
A criatura era grande. Muito maior que qualquer monstro que já tínhamos ouvido falar. O corpo era distorcido, como se tivesse sido formado a partir de pedaços de outros seres. Tinha pele escura, mas esbranquiçada nas pontas, como carne apodrecida exposta ao gelo. As garras eram longas, finas e afiadas como lanças. E os olhos… os olhos não piscavam. Dois buracos brilhantes, fixos. E estavam olhando diretamente para mim.
— Corram! — meu pai gritou, empurrando uma cadeira contra a porta.
Mas era inútil. A coisa já estava dentro de casa.
A parede foi atravessada com um estrondo, tábuas voando em estilhaços. O frio entrou como uma tempestade viva, e com ele, o cheiro de sangue, podridão e medo. Meu pai gritou para que eu saísse pela parte de trás, mas o monstro não desviava o olhar de mim. Como se… como se me reconhecesse. Como se me quisesse.
Eu não tive tempo de reagir.
Um segundo depois, fui atingida.
A dor foi instantânea. Gélida. Como uma lâmina congelada atravessando meu ombro e depois rasgando até o osso. Senti meu braço se desprender com um estalo úmido, e tudo ao redor ficou branco por um momento. O grito ficou preso na minha garganta, e só consegui cair, com o corpo tremendo e o sangue se espalhando depressa sob mim.
O monstro me segurou com uma das garras como se eu fosse feita de trapos. Sacudia meu corpo como uma boneca quebrada, me jogando contra as paredes, o chão, qualquer superfície que tivesse por perto. Senti minhas costelas se partirem, meus ossos cederem. E no meio disso, eu ouvi a voz da minha mãe.
— Solta ela! Solta minha filha!
A imagem dela correndo em minha direção, mesmo doente, mesmo fraca, vai me assombrar pra sempre. Ela tentou afastar o monstro com as próprias mãos, com unhas, com gritos — com amor. E ele a matou como se ela fosse um inseto. Com um único golpe. Uma das garras atravessou o peito dela e a jogou contra mim. O corpo dela caiu sobre o meu, ainda quente, ainda tremendo.
O sangue dela se misturou ao meu. E eu me afoguei naquele momento.
Meu pai, desesperado, gritou meu nome antes de investir com o machado de lenha. Mas a fera era rápida demais. Ele teve o mesmo fim. Uma mordida. Um estalo. E depois, só o som dele caindo.
Ali, deitada sob o corpo sem vida da minha mãe, com metade do rosto coberto de sangue, com a respiração falha e o vazio tomando conta do meu peito, eu morri. Não fisicamente — ainda não. Mas algo dentro de mim morreu junto com eles.
A inocência, a esperança, a fé. Tudo foi arrancado como meu braço. Tudo foi esmagado como meu corpo.
A casa queimava ao fundo, o frio ainda entrava pelas janelas destruídas, mas o fogo que nascia dentro de mim era outro.
E ele não ia se apagar.
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