Princesa Esquecida
Se eu te perguntasse agora, nesse exato momento, o que é a coisa mais importante pra você... o que você responderia? Família? Dinheiro? Deus? Amigos? Talvez você dissesse algo nobre, sentimental ou espiritualmente elevado, achando que eu me comoveria com a resposta. Mas a verdade? Eu só riria da sua cara e, se tivesse paciência, te daria um chute bem dado pra ver se acorda. Porque aqui, nesse mundo podre onde eu vivo, a coisa mais importante não é nada disso. A coisa mais importante — o maior luxo, o maior privilégio — é simplesmente viver.
Pode soar óbvio, até idiota. Viver é o básico, não é? O primeiro passo pra qualquer outra coisa. Mas veja bem... pra nós, isso não é um direito. É um prêmio. Um milagre. E, quase sempre, uma tortura. No meu mundo, viver custa caro. Custa sangue, custa carne, custa alma. Custa ver os olhos do seu irmão mais novo se apagarem de fome, custa enterrar sua mãe com as próprias mãos porque não há padre, não há cemitério, não há ninguém que se importe. Viver aqui é pra quem aprendeu a rastejar como verme, se esgueirando entre escombros e sombras, fingindo que ainda tem algum resto de esperança.
A maioria das pessoas nesse reino... elas não vivem. Sobrevivem. São deixadas à própria sorte, jogadas como lixo para fora das muralhas douradas da capital. Lá dentro, os nobres brindam com vinho caro, discutem frivolidades, fingem que não ouvem os gritos, que não sentem o cheiro da morte que sopra do lado de fora. Eles se escondem atrás de seus muros altos e suas leis seletivas, sorrindo com dentes brancos enquanto milhares apodrecem na lama, morrendo de fome, envenenados pela água podre, dilacerados por monstros que ninguém se dá ao trabalho de conter.
Os cavaleiros mágicos? Ah, sim, eles existem. Altos, imponentes, com capas esvoaçantes e espadas encantadas. Mas são cães bem treinados que só protegem quem pode pagar. Para nós, camponeses, órfãos, viúvas, doentes... restam os mercenários. Homens e mulheres que arriscam a pele por moedas sujas, caçando as feras que escapam das florestas e esgotos. Mas não se engane — esses também servem aos ricos. Suas espadas só são desembainhadas por ordem de um senhor feudal com medo de perder sua plantação de uvas ou sua filha mimada.
Enquanto isso, os vilarejos ruem. Um a um, como castelos de areia tragados pela maré. As pessoas se desesperam. As que não enlouquecem, se matam. Outras, as mais fortes ou as mais azaradas, sobrevivem de formas que fariam qualquer alma decente vomitar. Eu vi mães se prostituírem enquanto seus filhos esperavam do lado de fora da barraca, chorando. Vi pais cortarem gargantas por um pedaço de pão duro. Vi crianças vendidas como mercadoria, jogadas aos porcos quando não serviam mais.
Viver aqui... é um crime. E eu cansei de ser punida por tentar. Por isso, fiz o que fiz. E não me arrependo. Nem por um segundo. Quando arranquei aquelas cabeças — aquelas cabeças coroadas de ouro e podridão — eu não tremi. Eles quebraram as regras. Não as escritas em pergaminhos ou sussurradas nos salões reais... mas as regras silenciosas, aquelas que até a lama entende: não se brinca com a dor de quem não tem nada. Não se cospe na ferida de quem sangra todo dia.
A vida deles não valia nada. Menos que nada. E se você discordar... é porque ainda nunca teve que lutar pra viver. De verdade.
Mas é claro que eu não nasci assim. Ninguém nasce monstro, por mais que seja conveniente pintar a gente como um. Eu tive uma família — de verdade. Gente boa, simples, que acreditava no bem, na justiça, nas malditas promessas da coroa. A gente vivia em uma área pouco afetada, afastada das rotas dos monstros e dos surtos de praga. Era uma vida dura, mas digna. Eu ria. Eu sonhava. Eu queria aprender a ler, queria ter um gato, queria ver o mar. Mas o mundo não dá a mínima pros seus sonhos quando você nasce do lado errado da muralha. E o mundo me fez assim. Não, melhor dizendo: o descaso da porra do governo me fez assim.
E olha, não vou bancar a mártir santa, não. Teve escolha errada no caminho, sim. Escolha que hoje eu olho e penso: puta que pariu, se eu tivesse virado à esquerda ao invés de à direita.... Mas a verdade é que não importa. Porque as cartas já estavam marcadas. Não tinha saída limpa pra quem nasceu como eu. E se alguém disser o contrário, ou é idiota ou nunca teve que roubar comida pra não ver a irmã morrer.
Eu posso te contar tintim por tintim como cheguei aqui. Como escorreguei do ouro pra lama e da lama pro poder. E vou te contar uma coisa que ninguém gosta de admitir: o poder fede. Fede a sangue, a medo, a silêncio. Mas também é quente, é pesado, e quando você o segura nas mãos, mesmo que por um instante, você entende por que tantos se vendem por ele.
A magia... ela tá em tudo. Em todos. No vento, na terra, na gente. Mas como tudo nesse maldito reino, ela também foi sequestrada. Os ricos são fortes porque roubam a magia dos pobres. Usam rituais, pactos, artefatos roubados de tribos antigas, de povos que confiaram neles e foram traídos, massacrados. Enquanto isso, a plebe sangra, rasteja e ainda agradece por um pedaço de pão mofado.
Quando o inferno se abriu e tudo foi atacado — monstros, pragas, demônios — o governo cagou nas calças. Não conseguiu proteger nem os próprios castelos, quem dirá os campos. E as pessoas... bom, elas correram. Não pro rei, não pros cavaleiros, não pros templos. Correram pra mim. Pra mim. A fodida que um dia foi só mais uma camponesa. A criminosa. A amaldiçoada. Correram pro monstro que virou lenda. E eu as recebi. Com meus braços feridos, com meus soldados improvisados, com muralhas feitas de barro e sangue. Eu lutei por cada um deles.
E é por isso — pelas vidas que eu salvei, pelos gritos que calei, pelos monstros que esmaguei com as próprias mãos — que eu posso morrer agora sem arrependimento. Sem medo.
Meu corpo está em pé, enterrado na lama até os tornozelos. Sangrando. O cheiro de ferro e carne queimada no ar. Soldados jazem mortos aos meus pés. Os demônios que sobraram me cercam, hesitantes, como se soubessem que mesmo morrendo, eu ainda sou perigosa. Minha mão, a única que me resta, pressiona o buraco aberto no meu peito, tentando segurar o sangue que insiste em sair. O resto do meu corpo é só dor e cansaço. Mas a cabeça continua erguida. E mesmo com a visão turva, mesmo com o mundo girando e o frio da morte lambendo minha espinha... eu ainda tô de pé.
E eu vou morrer assim. Em pé. Orgulhosa. Como uma maldita rainha da lama.
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Comments
Marsane
Pai nosso que capítulo intenso, tenso demais…
2025-04-22
0
GG
foda
2025-04-24
0