O nome dela era Liora. Significava “luz” — e era isso que ela foi, mesmo quando tudo ao nosso redor começou a escurecer. Tinha olhos grandes e castanhos, e um sorriso cheio de covinhas que iluminava até os cantos mais tristes da casa. Era pequena, delicada como as flores bordadas pela nossa mãe, mas com um coração gigante. Quando a fome apertava, era Liora quem me empurrava o último pedaço de pão com um olhar travesso, fingindo que já estava satisfeita. Mesmo febril, ainda tentava me fazer rir com suas historinhas inventadas, como se o riso pudesse curar a morte iminente.
Mas a doença não teve piedade dela.
Começou com uma tosse seca, que podia ser ignorada nos primeiros dias. “É só o ar frio da noite”, dizia nossa mãe, tentando convencer a si mesma mais do que a nós. Mas logo a febre veio, ardendo como brasa. A pele dela queimava sob os lençóis remendados, o corpo tremia, e os olhos perdiam o foco. Ela chorava sem forças, com os lábios rachados e as mãos apertando a minha num fio desesperado de consciência. A cada dia, sua voz ficava mais baixa, seu peito mais pesado, e a casa... a casa foi perdendo a cor junto com ela.
Nossa mãe tentava de tudo. Usava ervas secas que guardava como tesouro, fervia raízes, sussurrava preces em voz trêmula enquanto aplicava compressas. Meu pai passava as noites sem dormir, sentado no chão ao lado da cama, segurando um prato de mingau que ela não conseguia engolir. Mas sabíamos. No fundo, todos nós sabíamos que não havia nada a fazer. A doença era cruel e sorrateira. Já levara outras crianças da vila, e nenhuma voltara. Era como se a própria terra tivesse sido envenenada. Como se os deuses tivessem virado o rosto.
E ainda assim, a coroa nada fez.
Nenhum curandeiro chegou à vila. Nenhum cavaleiro atravessou os campos para ver a morte crescendo nas portas humildes. As mensagens enviadas pelos anciãos foram ignoradas. Diziam que “os recursos estavam sendo priorizados para a capital”, onde os nobres podiam pagar por cura com ouro, e onde um arranhão num dedo era tratado como uma urgência sagrada. Víamos carruagens passando ao longe, levando os melhores médicos para as mansões de mármore, enquanto nossas crianças morriam em colchões de palha. Era um mundo onde a vida pesava menos quando nascia em cabanas como a nossa.
No quarto dia, Liora parou de comer. Os olhos estavam fundos, cercados por olheiras escuras. Sua respiração vinha curta, como se o próprio ar se recusasse a entrar. Sentei ao lado dela, tentando esconder o medo, mas ela me olhou como se já soubesse.
— Você vai ver o mar por nós duas... — sussurrou com dificuldade, a voz fina como um fio prestes a romper. — Promete?
Aquilo me rasgou. Porque o mar era nosso sonho de infância. Um lugar que só conhecíamos pelas histórias de viajantes e pelos desenhos borrados nos livros velhos da escola. Nós prometemos, uma à outra, que um dia juntaríamos moedas suficientes para fugir daquela vila e correr até ver o horizonte azul e sem fim. Íamos mergulhar até os pés doerem de tanto nadar. Íamos rir com o gosto do sal nos lábios. Íamos ser livres.
E agora, ela mal conseguia respirar.
— Eu prometo, Liora... — sussurrei, com lágrimas quentes escorrendo pelo rosto. — Eu vou por nós duas. Você vai ver o mar pelos meus olhos.
Ela sorriu, pequeno, quase imperceptível. E depois... simplesmente fechou os olhos. Não foi dramático. Não houve último suspiro alto. Só o silêncio. O tipo de silêncio que não pesa apenas no ar, mas dentro de você. Um vazio que não passa.
Minha mãe caiu de joelhos, gritando como se o som pudesse trazê-la de volta. Meu pai chorou em silêncio, com o rosto enterrado nas mãos. Nunca o vi quebrar daquele jeito. Era um homem forte, calejado, mas naquele momento ele era só dor, só falha, só um pai que não conseguiu salvar sua filha. Passamos a noite velando Liora com uma vela acesa e um lenço branco cobrindo seu rosto. Eu segurei sua mão até o último segundo, como se o calor do meu toque pudesse impedir que a morte a levasse de vez.
Enterramos Liora no campo atrás da casa, debaixo do único salgueiro que ainda resistia ao solo seco. Minha mãe plantou flores ao redor, mesmo sabendo que elas não iriam crescer.
Depois disso, a casa ficou mais fria. Mais silenciosa. As paredes que antes pareciam estreitas por causa das risadas e histórias noturnas agora pareciam enormes, vazias. Minha mãe passou dias sem falar. Só costurava, compulsivamente, como se cada ponto fosse um grito abafado. Meu pai bebia a água turva do poço como se fosse veneno, e voltava para a mata todos os dias sem dizer se voltaria. E eu... eu me sentava ao lado da cama vazia, tentando lembrar do som da voz da minha irmã.
Mas mesmo isso estava começando a desaparecer.
O mundo continuava, indiferente à nossa dor. Os monstros ainda vinham à noite. A fome ainda rondava. E os nobres... os nobres ainda banhavam seus salões com vinho enquanto diziam que “a situação estava sendo controlada”.
Mas eu sabia a verdade. A verdade era que, para eles, Liora nunca existiu.
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