Cinzas da promessa

O cheiro de sangue ainda pairava no ar, espesso como fumaça de carvão. Eu sentia ele grudado na pele, entranhado nos cabelos, preso nas unhas. Mas era o cheiro do passado que mais me assombrava — aquele que sempre volta quando a dor se cala por um segundo. O cheiro de pão fresco na manhã da feira. De roupa recém-lavada no riacho. Da terra molhada depois da primeira chuva de verão. Cheiros que não existem mais... exceto na memória.

E foi assim que aconteceu. No exato momento em que o meu corpo, quebrado e prestes a tombar, cedeu à dor, minha mente fugiu para longe. Para antes. Para o começo de tudo.

Eu tinha nove anos. Ainda acreditava que o mundo podia mudar com boas ações e orações sussurradas à meia-noite. Minha mãe dizia que o bem voltava, sempre voltava, como um eco dos céus. Ela era costureira, mãos calejadas e voz doce, que bordava flores em vestidos desbotados com tanto amor que fazia até as roupas mais pobres parecerem vestes reais. Meu pai... bem, ele era um homem de poucas palavras e muitos erros. Mas quando sorria — nos raros dias em que sorria — parecia que o mundo se tornava menos cruel. Ele me chamava de “Estrelinha”. Disse que, quando eu nasci, foi a primeira vez que viu algo bonito nesse mundo.

Nossa casa era pequena, feita de barro, palha e esperança. Três cômodos apertados, mas cheios de vida. Eu dividia o colchão de feno com minha irmãzinha. Ela era um raio de sol: cabelos dourados, olhos curiosos, risada fácil. Eu prometi a ela que um dia a levaria pra ver o mar. Que a gente construiria castelos de verdade, de areia e conchas, e que ninguém nunca mais a faria chorar.

Acordávamos antes mesmo que o sol ousasse tocar as colinas. O frio era cortante, principalmente nos meses em que a geada pintava os campos com sua palidez cruel. Ainda assim, minha mãe sempre dizia que era melhor acordar com frio do que com medo — porque o frio, pelo menos, dava aviso. O medo, não. Ele surgia no escuro, sem passos, sem voz, só o bafo quente e pútrido de alguma criatura rondando a janela.

Nossa casa era frágil, feita com as mãos do meu pai e a fé da minha mãe. As paredes de barro secavam rachadas, e o teto de palha nunca segurava direito a chuva. Tínhamos apenas um lampião e uma manta grande que dividíamos entre nós quatro. Eu dormia encolhida ao lado da minha irmãzinha, e nas noites de vento forte, nos cobriam com sacos de estopa para impedir que o frio entrasse pelos buracos do telhado.

Apesar disso, havia calor. Não aquele que vem do fogo, mas o outro — o que nasce do amor simples e silencioso. Do jeito que minha mãe penteava meus cabelos com os dedos, mesmo quando não havia sabão. Do jeito que meu pai deixava um pedaço de pão maior para mim e dizia que já tinha comido no caminho, mesmo quando sua barriga roncava mais alto que a minha. Nós sabíamos a verdade, mas fingíamos juntos. Aquilo era tudo que tínhamos: um pacto de silêncios gentis.

A vida era um campo minado. Sempre foi. Nos arredores da vila, monstros rondavam. Criaturas deformadas pela magia corrompida, restos de rituais antigos, de pactos malfeitos que os nobres jamais limparam. Eram bestas de carne e osso, mas também de dor e sombra. Às vezes, vinham à noite, arranhavam as portas, derrubavam cercas, levavam galinhas, cachorros, crianças. E ninguém ajudava. Os cavaleiros mágicos só protegiam os muros da capital. Aqui fora, éramos apenas carne à espera de ser devorada.

Meu pai fazia vigília nas madrugadas. Empunhava uma lança torta feita de ferro enferrujado e madeira rachada, e se sentava ao lado da porta, ouvindo o vento e os uivos que vinham da floresta. Ele dizia que, se um dia morresse ali, pelo menos morreria protegendo o que amava. Minha mãe odiava quando ele falava essas coisas. Ela sempre chorava em silêncio depois, com o rosto virado pra parede, achando que ninguém via.

Nos dias bons — e eles eram raros — minha mãe costurava para os mercadores que passavam. Ela bordava flores em vestidos usados, alinhavava roupas de luto, consertava casacos de couro com paciência quase sagrada. Suas mãos estavam sempre vermelhas, rachadas pelo frio e pelos anos. Mas ela sorria, mesmo quando a linha furava seus dedos. “Trabalhar é uma bênção”, ela dizia. “Enquanto tiver trabalho, há vida.”

Só que a fome não respeita bênçãos.

Quando a praga chegou, as colheitas apodreceram antes de amadurecer. Os animais começaram a morrer. A água do poço ficou turva, amarga, como se o próprio solo estivesse doente. O pouco que tínhamos começou a desaparecer. Primeiro foi o pão. Depois, a farinha. Depois, as palavras bonitas. A vila foi murchando, as pessoas ficando mais secas, mais duras, como se estivessem se tornando parte do chão estéril.

Me lembro de uma noite em que ouvimos um vizinho ser arrastado pra dentro da mata. Seus gritos cortaram o ar por longos minutos. Ninguém saiu pra ajudar. Ninguém nem respirou. Porque, ali, gritar era um crime — um convite pra morrer junto.

E mesmo assim... minha mãe continuava bordando.

Ela dizia que não podia parar. Que enquanto a agulha atravessasse o tecido, ainda havia esperança. Que se os monstros estavam à espreita, era preciso fazer beleza mesmo assim — pra lembrar que éramos humanos. Ela bordava flores, estrelas, luas e pequenos gatinhos. Eu gostava mais dos gatinhos. Achava que um dia teria um de verdade. Um que ronronasse ao meu lado e me aquecesse nas noites frias.

Mas os sonhos eram frágeis como os fios de suas costuras. E logo, começaram a se desfazer.

Minha irmã adoeceu primeiro. Uma febre que veio do nada, acompanhada de tosses secas e olhos opacos. Não tínhamos ervas suficientes. Não tínhamos médico. Só panos molhados e reza. Eu dava minha parte do mingau pra ela, mesmo quando meu estômago gritava. Minha mãe passou a costurar de noite, mesmo com os olhos inchados de chorar. Meu pai sumia por dias, tentando caçar ou achar algo para vender.

E, no meio de tudo isso... ainda havia monstros lá fora. E dentro também. Porque quando a fome aperta, as pessoas também se tornam bestas.

Eu vi vizinhos se matarem por migalhas. Vi casas queimadas por suspeita de contágio. Vi crianças vendidas pra estranhos que prometiam “tratamento” e nunca mais voltavam. A vila, antes unida, se partiu em facções de desespero. E mesmo assim, minha mãe bordava. E meu pai guardava a porta. E eu... eu tentava manter minha irmã viva.

Mas esperança... esperança é cruel. Ela te engana. Te dá um motivo pra continuar, só pra puxar o chão quando você menos espera.

E foi assim que começou o fim.

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