Não demorou muito depois da morte de Liora para que outra ferida fosse aberta, ainda mais funda — não por doença, mas por decisão humana. Um mensageiro da coroa chegou montado em um cavalo branco, sujo de poeira, com o estandarte dourado tremulando sob o sol seco. Carregava um pergaminho com lacre real, e um olhar de indiferença que enojava mais do que qualquer monstro. Enquanto todos se reuniam na praça de terra batida, esperando por alguma boa notícia — talvez, quem sabe, curandeiros, remédios, alguma resposta à súplica dos anciãos —, o homem leu em voz alta, como quem recita uma receita de pão, a ordem mais cruel que já ouvimos.
Todos os soldados da região estavam sendo convocados à capital.
Justificaram dizendo que “havia escassez de homens nas fileiras”, que “a estabilidade da capital estava em risco”, que “os inimigos espreitavam os portões do centro do reino”. Palavras grandes, palavras distantes. Como se as ameaças reais — os monstros que caçavam à noite, os corpos das crianças enfileirados na entrada da vila, os gritos das mulheres pedindo socorro — fossem apenas detalhes menores de um mundo invisível para eles.
Naquele vilarejo, restavam apenas nove soldados.
Nove. Para proteger quase duzentas almas, entre camponeses, ferreiros, pescadores sem rio, e crianças descalças que corriam entre as ruínas de uma terra esquecida.
E ainda assim, a coroa os levou.
Nem olharam para nós ao partir. Apenas seguiram marcha, com os estandartes ao vento, as armaduras brilhando sob o sol moribundo, como se estivessem partindo para alguma causa nobre. Mas não havia honra ali. Só abandono. A única presença de proteção que tínhamos desapareceu pela estrada, deixando para trás casas frágeis, muros quebrados e pessoas que mal conseguiam proteger a si mesmas, quanto mais uns aos outros.
As noites ficaram piores. Os ataques se intensificaram.
Não havia mais quem montasse guarda. A torre de vigia ficou vazia. Era o povo quem se revezava com lanças velhas e tochas pequenas, as mãos trêmulas pelo medo e pelo cansaço. As mães dormiam com adagas sob o travesseiro. Os homens reforçavam as portas com móveis e cordas. E mesmo assim, vez ou outra, ouvíamos os gritos vindos de alguma casa vizinha. Grunhidos bestiais rasgando a madrugada. Sangue escorrendo pelas pedras do caminho ao amanhecer. Corpos arrastados para dentro da mata, sem tempo de velório, sem dignidade de morte.
A desigualdade escancarava seus dentes. Na capital, os Cavaleiros Mágicos protegiam os salões dos nobres. A elite vivia cercada de muralhas, banhada em encantamentos de proteção e alimentada por estoques que dariam para alimentar cem vilas como a nossa. Lá, a magia era um luxo. Aqui, era uma maldição. Lá, um feitiço de cura era lançado por mãos suaves e bem pagas; aqui, nem o mais simples chá de ervas resistia ao solo envenenado.
E os mensageiros continuavam vindo — não com ajuda, mas com decretos. Com ordens. Com cobranças de impostos que não podíamos pagar. Com promessas vazias de que “assim que a situação na capital se estabilizasse, recursos seriam enviados às regiões periféricas”.
Mentiras que só machucavam mais.
A esperança virou um sussurro quase ofensivo. Quem ousasse mencioná-la era visto com olhos de dor. Afinal, o que restava para esperar? Já havíamos perdido crianças, soldados, proteção. A próxima coisa que nos tirariam seria a própria terra sob os pés.
E mesmo assim, de algum jeito, continuávamos vivendo. Porque era isso ou morrer. Porque ainda existiam velhos para cuidar. Irmãos mais novos que precisavam comer. Túmulos para visitar. E promessas — promessas feitas a quem não estava mais ali, como aquela que fiz a Liora sobre o mar.
Mas algo dentro de mim começou a mudar.
Não era apenas dor. Era algo mais denso. Mais escuro. Algo que crescia silenciosamente, alimentado por tudo aquilo que arrancaram de nós.
Algo como raiva.
A dor foi perdendo o gosto amargo do luto e se transformando em algo mais perigoso. Mais impaciente. A raiva se infiltrava nos espaços que antes eram habitados pela esperança, e onde antes havia fé, agora só existia desconfiança. Eu já não chorava como antes; o choro parecia inútil. Cada lágrima que caía era um desperdício de força que eu precisava pra sobreviver. Meu corpo estava mais magro, os olhos mais fundos. A menina que outrora sonhava em ver o mar com a irmã agora carregava espinhos na alma — e eles cresciam a cada injustiça.
Comecei a observar. Observar os que ainda tinham algo. A casa do coletor de impostos, as carroças que vinham da capital carregadas de mantimentos para os representantes da coroa que se hospedavam na estalagem mais cara da vila. Eles vinham com roupas finas, mantos pesados e dedos cheios de anéis, enquanto crianças dormiam nas ruas enroladas em sacos de estopa. Vi um dos nobres rir alto ao ver uma mulher desmaiar de fome perto da praça. Riu. Como se fosse uma peça de teatro grotesca feita para seu entretenimento. Naquele momento, algo dentro de mim se quebrou com um estalo silencioso.
Decidi que não ia mais ficar parada.
Não mais.
Roubar parecia um crime para aqueles que nunca passaram fome. Para mim, naquele ponto, era questão de justiça. Eu sabia onde os criados deixavam a carroça do nobre recém-chegado estacionada, atrás da estalagem, onde os ratos passeavam à vontade e a madeira começava a apodrecer. Não era protegida, pois ninguém imaginava que alguém ousaria tocar nos pertences de um homem tão “importante”. Era minha chance. Esperei o entardecer, quando a névoa começava a subir das terras úmidas e os olhos dos poucos guardas estavam pesados do vinho servido pelo próprio nobre.
Me aproximei com passos cuidadosos, o capuz puxado sobre o rosto, o estômago vazio. O plano era simples: pegar o saco de moedas e desaparecer por entre as casas, cortando caminho pelos becos. Com aquele dinheiro, eu poderia comprar mantimentos para os velhos doentes do bairro baixo, talvez até convencer algum curandeiro viajante a tratar uma das crianças febris. Era por eles. Era por Liora.
Mas a vida — ou os deuses, se ainda existiam — não perdoa quem tenta desafiar o poder.
Fui pega.
Não sei se foi por descuido ou azar. Talvez um dos criados tenha me visto. Talvez o próprio nobre já esperasse por isso e preparou uma armadilha, querendo ter o prazer sádico de flagrar alguém miserável tentando "roubar o que é seu". Senti mãos pesadas me puxando para trás antes que pudesse correr. Fui jogada no chão com violência. A cara na terra. O som abafado da carroça ao fundo.
E então os chutes começaram.
Um, dois, cinco, dez. Perdi a conta.
Eles me bateram com raiva. Com desprezo. Como se eu fosse menos que um animal. Como se minha existência fosse uma afronta à ordem das coisas. Um deles me segurou pelos cabelos e cuspiu no meu rosto antes de me jogar contra a parede de pedra da estalagem. As pessoas assistiam de longe, algumas desviando o olhar, outras olhando com olhos vazios — não por crueldade, mas por costume. Era o tipo de cena que já não causava choque. Já não causava revolta. Apenas impotência.
Quando o nobre apareceu, vestindo roupas bordadas de dourado e um sorriso debochado, ele disse, alto o suficiente para todos ouvirem:
— Que isso sirva de exemplo. Os ratos devem saber seu lugar.
Fui deixada ali, ensanguentada, com um braço torcido e o rosto inchado, jogada como um saco de lixo em frente à taverna.
E ninguém me ajudou.
Não por maldade, mas porque tinham medo. Medo de sofrer o mesmo. Medo de perder o pouco que ainda tinham. E eu entendi. Pela primeira vez, eu entendi o que o medo fazia com as pessoas. Ele as quebrava, as tornava submissas. O medo era o grilhão invisível que a coroa usava para manter o povo acorrentado.
Mas em mim, o medo estava morrendo.
No lugar dele, nascia algo pior.
Nascia o ódio.
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Posso continuar mostrando como esse ódio molda a protagonista em uma espécie de justiceira das sombras, ou alguém que começa a reunir aliados para derrubar esse sistema por dentro. Qual caminho você imagina pra ela agora?
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