A travessia

A fogueira crepitava no centro do acampamento, lançando sombras sobre os rostos dos viajantes. O jantar havia sido simples, mas a companhia tornava a refeição mais suportável. O vento soprava frio entre as árvores, mas ninguém parecia inclinado a se afastar do calor da fogueira ainda.

Selene, sentada sobre uma pedra, observava Ethan do outro lado do fogo. Seus olhos brilhavam na luz laranja, estreitados em avaliação.

— O que Kael quis dizer?

Ethan ergueu os olhos para ela.

— Sobre o quê?

— Não se faça de desentendido — Selene respondeu, inclinando-se um pouco à frente. — Sobre você se esconder atrás do escudeiro. Sobre ser mais do que imagina.

Darius, que afiava uma das lâminas, pausou o movimento, lançando um olhar curioso para Ethan.

— Ela tem um ponto — murmurou.

Ethan suspirou, repousando a caneca de metal ao lado.

— Kael fala em enigmas — respondeu. — Talvez tenha tirado conclusões erradas.

— Ou talvez ele saiba algo que nós não sabemos — Selene rebateu, a voz mais baixa agora.

Houve um breve silêncio. Darius voltou a afiar a lâmina, mas de forma mais lenta, como se sua atenção estivesse dividida.

— Kael não fala à toa — Selene continuou. — Ele gosta de provocar, de fingir que nada o afeta, mas quando resolve cutucar alguém, normalmente é porque já sabe algo.

Ethan franziu o cenho.

— Você o conhece?

— Já nos esbarramos antes — ela disse, jogando um pequeno graveto no fogo. — Não ficamos no mesmo lugar por muito tempo. Nossos temperamentos não combinavam.

Darius soltou um riso baixo.

— Imagino que não.

Selene revirou os olhos, mas um leve sorriso passou por seu rosto.

— Kael claramente te conhece, Ethan — ela voltou ao assunto, cruzando os braços. — Mas você não parece reconhecer ele.

Ethan passou a mão pelo rosto, pensativo.

— Porque eu não conheço.

Darius parou de afiar a lâmina e trocou um olhar com Selene.

— Mas você lembra de alguém parecido? — Darius insistiu. — Talvez alguém que estivesse no palácio, alguém que não tenha prestado atenção na época, mas que poderia ter te visto?

Ethan fechou a expressão.

— Se ele estivesse no meu caminho, eu lembraria.

Selene estudou Ethan por um momento antes de se recostar contra uma pedra, batendo os dedos de leve contra o cabo do arco.

— O jeito que ele falou com você... — murmurou. — Não foi como alguém que só ouviu histórias. Foi pessoal.

Ethan virou os olhos para o céu, como se buscasse uma resposta nas estrelas.

— Se for assim — ele disse por fim, pegando sua espada e voltando a afiar a lâmina com calma. — Quando o encontrarmos de novo, pergunte para ele.

Darius soltou um suspiro curto.

— Como se ele fosse responder algo diretamente...

Selene deu um meio sorriso.

— Se tem uma coisa que aprendi sobre Kael, é que ele gosta de um jogo mental. Mas até os melhores jogadores cometem erros quando são pressionados.

O grupo ficou em silêncio por um momento, ouvindo apenas o estalo da madeira queimando.

— Seja como for, temos uma ponte para atravessar amanhã — Darius murmurou. — Melhor descansarmos.

Selene assentiu, mas seu olhar permaneceu em Ethan por mais alguns instantes. Algo estava ali, algo que ainda não fazia sentido.

E, de alguma forma, Kael parecia saber o que era.

...

A Travessia

A ponte estava em péssimas condições. As tábuas de madeira rangiam sob os pés, algumas parecendo prestes a quebrar a qualquer momento. O vento cortante e as cordas soltas ameaçavam derrubar qualquer um que perdesse o equilíbrio.

Foi então que aconteceu.

Darius deu mais um passo e a madeira sob seus pés cedeu sem aviso. Com um grito abafado, ele tentou se segurar, mas perdeu o equilíbrio. O impacto do seu peso balançou a ponte inteira.

— Não! — Isamara gritou.

Sua tentativa de salvá-lo fez com que também escorregasse. Suas botas deslizaram sobre uma tábua molhada, e ela caiu de joelhos, inclinando-se perigosamente para o vazio.

Sem hesitar, Ethan se lançou para segurá-la.

— Eu te peguei! — rosnou, puxando-a com força.

Com um impulso, conseguiu trazê-la de volta para uma posição segura. O olhar de Isamara encontrou o dele por um instante, um misto de surpresa e gratidão.

Darius, por outro lado, já estava além do alcance físico.

Foi quando aconteceu.

Uma das sombras da corda pareceu adquirir vida própria. A escuridão envolveu o braço de Darius e se estendeu ao redor de seu torso, puxando-o de volta para cima.

Darius respirava ofegante.

— Isso foi obra sua? — Ethan perguntou, a voz carregada de suspeita.

Kael estava apoiado em uma árvore na outra extremidade da ponte.

— Se ficarem parados aí por muito mais tempo, a ponte pode não aguentar — comentou casualmente.

O grupo atravessou, ainda tenso. Mas antes que Kael pudesse ir embora, Darius bloqueou seu caminho.

— Espere — sua voz soou firme. — Agora eu lembro de você.

Kael ergueu uma sobrancelha, parecendo levemente curioso.

— Demorou.

— Você é parente de alguém do antigo reino, não é? — Darius estreitou os olhos. — Eu lembro de ter te visto no castelo. Você não deveria estar lá.

— E você não deveria estar vivo — Kael sorriu. — Parece que ambos quebramos algumas regras.

Selene aproveitou o momento para se aproximar.

— Você nos seguiu. Por quê?

— Talvez eu goste da companhia.

— Kael.

Ele suspirou, descruzando os braços.

— O caminho é perigoso. Vocês são mais interessantes do que a maioria. E eu precisava ver algo com meus próprios olhos.

— O quê? — Ethan perguntou.

Kael virou o rosto levemente para ele, os olhos brilhando com um misto de diversão e interesse.

— Se você era realmente quem eu imaginava.

O silêncio caiu entre eles.

Kael então deu um passo para trás, e antes que qualquer um pudesse reagir, sombras o envolveram. Num piscar de olhos, ele havia sumido.

Selene fechou os olhos por um instante, respirando fundo.

— Eu odeio quando ele faz isso.

Darius permaneceu parado, os olhos ainda fixos no ponto onde Kael estivera.

— Ele sabe mais do que diz — murmurou.

Ethan apertou o cabo da espada, sentindo que aquela não seria a última vez que Kael cruzaria o caminho deles.

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