A floresta amanheceu banhada por uma névoa fina, que parecia abraçar a terra como um véu protetor. As árvores, erguidas como sentinelas, mantinham-se silenciosas, mas Zé da Mata e Rosa Morena sabiam que ali dentro havia mais vida do que podiam ver. A cada passo, o casal sentia o peso do mundo nas costas, mas também o chamado de algo maior, algo que os fazia continuar.
Após dias fugindo, já não contavam o tempo; o sol e a lua eram os únicos marcadores de suas jornadas. Estavam cansados, mas a determinação ardia como brasas nos olhos de ambos. A floresta, com sua densidade quase impenetrável, agora parecia mais amiga do que ameaça. Ela os acolhia, escondia e, de alguma forma, sussurrava promessas de proteção.
— Zé, cê tá ouvindo isso? — Rosa perguntou de repente, parando no meio do caminho.
Zé inclinou a cabeça, tentando captar o som que parecia escapar entre as árvores. Um leve eco... talvez um canto.
— Parece uma música, Rosa. Mas de onde tá vindo?
Os dois trocaram um olhar de alerta. Música na mata não era algo comum, e onde havia gente, havia perigo. Mesmo assim, decidiram seguir o som, movidos pela curiosidade e por uma estranha sensação de que não estavam sozinhos.
A trilha os levou até uma clareira. O sol, filtrado pela copa das árvores, iluminava o espaço com uma luz dourada. No centro da clareira, um homem de idade avançada movia-se com a leveza de alguém que desafiava o tempo. Ele dançava ao som de um berimbau que ele próprio tocava, gingando como se cada movimento fosse uma oração silenciosa.
Zé e Rosa permaneceram escondidos, observando. O homem parecia alheio à presença deles, perdido em sua dança. Mas, de repente, ele parou e virou-se na direção de onde estavam.
— Podem sair — disse ele, sua voz firme e profunda como o rugido de um trovão distante. — A floresta me avisou que vocês viriam.
Rosa e Zé entreolharam-se, hesitantes. Mas algo naquele homem os fez confiar. Ele não parecia uma ameaça. Havia um ar de sabedoria em seus olhos, de alguém que havia visto o pior do mundo, mas que ainda carregava a força para resistir.
— Quem é o senhor? — perguntou Zé, saindo primeiro, com Rosa logo atrás.
O homem sorriu, um sorriso breve e enigmático.
— Me chamam de Mestre Bento. E vocês são Zé e Rosa, não é?
O coração de Zé disparou.
— Como sabe disso?
— A floresta fala comigo — respondeu ele, apontando para o solo com o berimbau. — E, além disso, vocês dois não são os primeiros fugitivos a passar por aqui.
Mestre Bento os levou até um pequeno abrigo improvisado, feito de galhos e folhas. Não era muito, mas oferecia proteção contra o sol e a chuva. Conforme preparava um chá de ervas com uma precisão quase ritualística, ele começou a contar sua história.
— Há muitos anos, fui como vocês. Trabalhei até meus ossos gritarem, até minha alma parecer acorrentada. Mas um dia, eu fugi. Foi a capoeira que me deu força e coragem.
Ele pausou, soprando o chá antes de tomar um gole.
— Desde então, minha missão tem sido ajudar outros. Esta floresta não é apenas um refúgio; é um lar para muitos que, como vocês, buscam liberdade.
Rosa inclinou-se para frente, fascinada.
— Existem mais como nós?
Mestre Bento assentiu.
— Sim, mas não é um caminho fácil. Formamos comunidades, escondidas na mata, onde vivemos como podemos, longe das correntes. Mas sempre há perigo. Exploradores, caçadores de recompensas... Eles não gostam de perder suas "propriedades".
Zé apertou os punhos.
— A gente não é propriedade de ninguém.
Mestre Bento sorriu.
— Não, meu jovem. Vocês são filhos da terra, da liberdade. E é por isso que precisam estar prontos para lutar por isso.
Os dias que se seguiram foram um aprendizado intenso. Mestre Bento ensinou a Zé e Rosa que a capoeira não era apenas uma dança ou uma arte; era uma arma.
— Quando vocês gingam, estão contando uma história. Quando chutam, estão escrevendo um novo capítulo. E quando lutam... estão defendendo a única coisa que realmente importa: a liberdade.
Ele os fez praticar sem descanso, corrigindo seus movimentos com paciência, mas também com exigência.
— Zé, seu rabo de arraia tá lento demais. Se fosse um capataz, já tinha te derrubado. De novo!
— Rosa, seu movimento de esquiva precisa ser mais fluido. A capoeira é como o vento: rápida, imprevisível.
Os treinos eram exaustivos, mas também revigorantes. A cada golpe, a cada ginga, Zé e Rosa sentiam-se mais fortes, mais conectados às suas raízes.
Além de ensinar capoeira, Mestre Bento também compartilhava segredos da floresta.
— Essa terra aqui não é só um abrigo; ela é uma aliada. Se aprenderem a ouvi-la, a floresta vai mostrar o caminho.
Ele ensinou a reconhecer plantas medicinais, a caçar sem deixar rastros e a mover-se silenciosamente entre as árvores.
— Vocês não são só fugitivos agora. São guerreiros. E guerreiros sabem que a vitória começa na preparação.
Zé e Rosa ouviam cada palavra como se fossem lições sagradas.
Em uma noite tranquila, enquanto o fogo da fogueira iluminava seus rostos, Mestre Bento compartilhou a história de um quilombo secreto.
— Dizem que, nas profundezas da floresta, existe um lugar onde os filhos da liberdade vivem como reis e rainhas. Eles criaram uma sociedade onde ninguém é dono de ninguém, onde o espírito de resistência floresce como uma árvore que nunca para de crescer.
Rosa ficou encantada.
— É real? Esse lugar existe?
Mestre Bento deu de ombros.
— Quem sabe? Alguns dizem que é apenas uma lenda, algo que criamos para manter viva a esperança. Mas se existe ou não, não importa. O que importa é o que ele representa.
Zé assentiu, compreendendo a profundidade daquelas palavras.
— Representa o que a gente quer ser.
Mestre Bento sorriu, satisfeito.
— Exatamente.
No final de uma semana de treinos e lições, Mestre Bento decidiu que era hora de um teste.
— Vocês estão prontos para encarar um desafio de verdade? — perguntou ele, olhando-os com severidade.
Zé e Rosa trocaram olhares. Estavam cansados, mas também sentiam uma nova energia dentro de si.
— Tamo prontos, mestre — respondeu Zé.
Mestre Bento os levou até outra clareira, onde havia montado uma roda de capoeira improvisada. No centro, ele colocou um pedaço de madeira que representava um capataz.
— Vocês têm que derrubá-lo juntos, usando tudo o que aprenderam. Mas lembrem-se: a capoeira não é só força. É estratégia, é ritmo, é união.
Zé e Rosa entraram na roda, seus corpos se movendo em sincronia. Eles gingaram, esquivaram-se, e desferiram golpes com uma precisão que não tinham antes. O pedaço de madeira caiu no chão, e Mestre Bento bateu palmas, rindo.
— Muito bem, meus filhos. Vocês estão prontos para encarar o que der e vier.
Naquela noite, enquanto descansavam sob o céu estrelado, Zé e Rosa sentiam-se diferentes. Não eram mais os mesmos que haviam fugido da mina dias atrás. Agora, carregavam dentro de si não apenas o desejo de liberdade, mas também o conhecimento de como lutar por ela.
Mestre Bento, sentado ao lado deles, olhava para o céu.
— Vocês têm um longo caminho pela frente. Mas lembrem-se: a resistência começa aqui, no coração. Enquanto vocês acreditarem, ninguém pode tirar isso de vocês.
Rosa olhou para Zé, segurando sua mão.
— A gente vai resistir, Zé. Por nós, por quem veio antes, e por quem ainda vai vir.
Zé apertou a mão dela, o olhar fixo nas estrelas.
— Até o fim, Rosa.
E ali, sob o sussurro da floresta e a luz das estrelas, o casal sentiu que a resistência não era apenas uma luta; era um chamado.
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Atualizado até capítulo 23
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