Sob o Céu da Liberdade
O dia já se despedia quando Zé da Mata ergueu os olhos para o céu tingido de vermelho. O sol, cansado como ele, escondia-se atrás das montanhas, mas o trabalho nas minas continuava. Não havia descanso para braços que não eram vistos como seus, para corpos que pareciam pertencer ao capataz, às ferramentas, à terra dura e à riqueza que jamais tocariam. A picareta em sua mão pesava como uma extensão de sua alma exausta, mas era o olhar de Rosa Morena que lhe dava força para continuar.
Ela estava a poucos metros, envolta pela poeira dourada que subia a cada golpe no chão rochoso. Seus movimentos eram firmes, embora as mãos já mostrassem calos que contradiziam sua juventude. A pele brilhava com o suor e a determinação. Rosa Morena não era mulher de se curvar, mesmo diante das correntes invisíveis que os prendiam. Para Zé, ela era como a árvore mais forte da floresta — podia dobrar-se ao vento, mas jamais se quebrava.
Naquele dia, porém, algo no olhar dela o fez estremecer. Era como se o espírito livre que sempre admirara estivesse se apagando, sufocado pelo peso das correntes que ela insistia em ignorar.
— Rosa, tá tudo bem? — Zé arriscou perguntar em um sussurro, aproveitando a distração momentânea dos capatazes.
Ela parou por um instante, limpando o suor da testa com o antebraço. Olhou para ele, e o brilho em seus olhos era ao mesmo tempo brando e feroz.
— Tá nada, Zé. Mas vai ficar.
Ela voltou ao trabalho, mas aquela resposta simples ficou ecoando na mente dele, como uma nota solitária tocada em uma roda de capoeira. Havia algo naquela voz, naquela determinação calma, que o fazia acreditar. Rosa sempre fazia acreditar.
A mina não era apenas um buraco na terra; era um buraco na alma. O cheiro da umidade misturado ao suor e ao sangue de tantos fazia do lugar um túmulo em vida. Trabalhadores como Zé e Rosa eram tratados como peças de uma engrenagem brutal, substituíveis e descartáveis. Ali, a dignidade era um luxo que ninguém se atrevia a reivindicar — exceto em pensamentos.
Zé da Mata fora arrancado de sua aldeia anos atrás, ainda menino. Seus pais, guerreiros que lutaram até o último suspiro, haviam lhe dado o nome “da Mata” como um símbolo de sua ligação com a floresta que os abrigava. Aquela mesma floresta agora parecia um sonho distante, algo inalcançável, mas ainda vivo em sua memória. Ele era um homem alto e forte, de pele marcada pelo sol e pelo trabalho árduo, mas o que realmente o definia era a resiliência nos olhos. Olhos que aprenderam a sorrir, mesmo diante de tanta dor.
Rosa Morena, por sua vez, nascera em uma vila próxima. Sua mãe costumava dizer que ela era filha da lua, com um brilho que iluminava até a noite mais escura. Mas esse brilho fora testado desde cedo. Órfã ainda criança, crescera aprendendo a se virar sozinha. Fora capturada e levada para as minas com apenas quatorze anos. Hoje, aos vinte, havia se tornado uma mulher cuja força de espírito rivalizava com a força de seus movimentos.
A capoeira os unira. Entre as sombras da mina e os breves momentos de descanso, eles encontraram na dança-luta uma forma de resistir. As rodas improvisadas eram proibidas, mas Zé e Rosa nunca deixaram de praticar. Para eles, capoeira não era apenas uma luta; era a memória viva de quem eram, uma música que seus corpos dançavam mesmo quando o mundo tentava calar. Em cada ginga, havia a promessa de liberdade.
Naquela noite, o céu parecia ter pendurado cada estrela para iluminar seus pensamentos. Zé estava sentado ao lado de Rosa, no pequeno barraco que dividiam com outros trabalhadores. Era raro ter um momento só deles, mas sempre que conseguiam, aproveitavam para sonhar. E sonhar era tudo o que tinham.
— Rosa, tem um caminho por entre os montes. Vi da última vez que me mandaram buscar água. É fechado de mato, mas leva pra floresta. — Zé falava baixo, mas a intensidade em sua voz era clara.
Ela o olhou com atenção, inclinando-se para mais perto.
— E tu acha que a gente consegue passar? Os capatazes vigiam cada canto dessa mina.
— Eu acho que não tem escolha. Ou a gente tenta, ou morre aqui. — Ele hesitou por um momento, mas a coragem voltou com força. — Rosa, eu prefiro morrer tentando do que viver de joelhos.
Ela sorriu, mas era um sorriso melancólico, carregado de tudo que já tinham perdido.
— Eu também, Zé. Só que a gente não pode falhar. Não pode ser só mais dois que tentaram e foram esquecidos.
Os dois ficaram em silêncio por um instante, ouvindo os sons da noite. No fundo, o ressoar das ferramentas nas minas continuava, mesmo naquela hora. Alguns trabalhadores não tinham o luxo de descansar. Era como se o som fosse um lembrete cruel de que o tempo era curto.
— Eu vou com você, Zé. Até o fim. — A voz de Rosa era firme, mas havia um tom de ternura que fazia suas palavras soarem como música. — Mas me promete uma coisa.
Ele a encarou, o coração batendo mais rápido.
— Prometo o que for, Rosa.
— Me promete que não importa o que aconteça, a gente não vai se abandonar. Nem aqui, nem lá fora.
Zé segurou a mão dela, suas calosidades encontrando as dela. Aquele toque, mesmo simples, carregava toda a força de quem eles eram.
— Prometo. Nem a morte me tira de perto de você.
No dia seguinte, a rotina parecia a mesma, mas algo havia mudado nos dois. Era como se um fogo tivesse sido aceso em seus corações. Eles começaram a observar tudo com mais atenção: os movimentos dos capatazes, os horários das rondas, os pontos cegos entre os barracos. Cada detalhe era uma peça no quebra-cabeça que planejavam montar.
No final do dia, Zé encontrou uma oportunidade de verificar o caminho que mencionara. Discretamente, aproximou-se da área dos montes e confirmou que havia mesmo uma trilha escondida por vegetação densa. Parecia quase impossível passar por ali sem fazer barulho, mas era a melhor chance que tinham.
Enquanto isso, Rosa conversava com outros trabalhadores. Não diretamente, mas com insinuações cuidadosas, tentava medir o clima. A maioria estava resignada, mas alguns ainda tinham uma faísca de resistência nos olhos. Talvez, no futuro, pudessem contar com eles.
Naquela noite, sob o céu estrelado, Zé e Rosa selaram seu plano. Saíriam ao amanhecer, quando o movimento era menor e a troca de turnos deixava as vigias mais relaxadas. Sabiam que seria perigoso, mas estavam decididos.
— A gente tá apostando tudo, Rosa. — Zé disse, a voz grave.
— Eu sei, Zé. Mas me diz... qual é a outra opção? Ficar aqui até não sobrar mais nada da gente?
Ele não respondeu, mas o olhar que lançou a ela dizia tudo. Não havia alternativa. Rosa então pegou uma pequena pedra afiada que guardava no bolso e cortou levemente o dedo indicador. O sangue brotou em gotas pequenas, brilhando à luz da lua.
— Faz o mesmo — disse ela, estendendo a pedra a ele.
Zé hesitou por um momento, mas repetiu o gesto. Então, uniram os dedos, misturando o sangue.
— A gente tá junto nisso, Zé. Até o fim.
— Até o fim — repetiu ele, com um nó na garganta.
Quando se deitaram, não havia mais medo, apenas a expectativa do que estava por vir. O som das ferramentas e dos capatazes ao longe já não os incomodava tanto. Naquele momento, estavam livres em seus corações.
Rosa, encostada no ombro de Zé, fechou os olhos e sussurrou:
— Cê acha que tem estrelas além dessas?
— Acho. E acho que a gente vai ver todas elas quando sair daqui.
Ela sorriu, e o silêncio tomou conta do barraco. O futuro era incerto, mas, pela primeira vez em muito tempo, eles tinham algo que nenhum capataz podia tirar: esperança.
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Atualizado até capítulo 23
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