Quando o médico entrou, a penumbra do quarto envolveu-o como um predador silencioso. A luz mortiça das velas esboçava sombras nos cantos, como se até as paredes tivessem olhos que observavam. Thomas, com a postura rígida e o rosto pétreo, me acompanhava, tornando o ar do ambiente mais denso. Eu me ergui da cama dossel, o peso dos lençóis parecia puxar-me de volta, mas resisti. Cada passo foi um esforço calculado, e então, ajoelhei-me diante do jovem e bem-apessoado médico, cuja presença, embora formal, tinha um toque cruel, frio.
— Me tire daqui, por favor. O meu marido... Ele... Ele é o diabo. Eu juro! — Minha voz estava frágil, quebradiça.
Thomas desviou o olhar, como se minha súplica fosse um incômodo menor.
— Vou esperar lá fora, doutor. Acho que a deixo ainda mais agitada. — Sua voz era desprovida de qualquer sentimento, quase como se eu fosse uma sombra a ser varrida para longe.
Thomas se retirou, e a atmosfera no quarto pareceu murchar, sufocada pela presença impassível do médico. Ele apenas ajustou a gola do casaco com a pontualidade de um relógio mecânico, ignorando meu desespero com a indiferença insensível de quem já havia assistido a dezenas de mulheres como eu, todas com seus terrores enjaulados.
Sem dizer uma palavra, aproximou-se da cama e abriu sua maleta de couro. Cada movimento seu era meticuloso, um ritual desprovido de qualquer faísca humana. Ao lado dele, a maleta escura e desgastada exalava um leve cheiro de óleos e tabaco envelhecido. Ele sentou-se na borda da cama, e ao tocar meu pulso, senti um frio percorrer minha pele febril. Seus dedos eram como garras de gelo, segurando-me com uma firmeza que anulava qualquer tentativa de fuga.
Fingi a expressão mais frágil e assustada que pude, mas a frieza do médico era impenetrável. Ele trouxe o estetoscópio aos ouvidos, e ao encostá-lo em meu peito, o metal frio fez meu coração dar um sobressalto, ecoando nas paredes silenciosas do quarto.
— Abra a boca. — Sua voz soou seca, sem emoção.
Abri a boca, e ele inspecionou minha garganta, inclinando-se o suficiente para que eu sentisse o cheiro pungente de tabaco misturado com algo mais denso, uma lembrança de antissépticos antigos.
Quando ele terminou, recolheu os instrumentos, como se tivesse catalogado tudo o que precisava. Anotou algo em um caderno pequeno, com letras rápidas e impessoais. Sem uma palavra de conforto, um gesto, ou sequer um olhar de empatia, ele se ergueu. Eu era apenas uma entrada em seu caderno, mais uma mulher aprisionada em uma jaula de histeria para ele. Observá-lo sair, deixando o quarto tão vazio e opressivo quanto antes, só confirmou minha certeza de que ele, assim como tantos outros, estava cego para a verdade do inferno que se desenrolava por trás de portas fechadas.
Alguns minutos após a saída do médico, Diana deslizou para dentro do quarto, como uma sombra intrusa, quase felina. O quarto parecia respirar com sua presença, uma lufada de ar após a opressão glacial que o médico havia deixado. Me aproximei dela, o pedido já brotando em meus lábios.
— Desculpa ter gritado com você e ter ferido ele. — murmurei, de imediato.
Ela me olhou com uma expressão indecifrável, um toque de dor e aceitação.
— Eu acho que nunca vou me acostumar com esse rosto que você usa, me pedindo desculpas, Alex. — Sua voz era baixa, e o timbre dela soava como um eco de antigas memórias que ela tentava sufocar.
O silêncio preenchido pelo ar espesso do quarto abraçou o momento, e me obriguei a continuar.
— Não gosto que falem severamente comigo. Sei que é infantil, mas me faz lembrar de uma coisa horrível que acontecia quando eu não podia me proteger.
Ela se aproximou, abraçando-me sem dizer nada. Seu calor parecia irradiar pelo meu corpo, um antídoto contra a escuridão que o médico havia deixado para trás. Enterrei o rosto no ombro dela, sentindo seu cheiro familiar e me permitindo desmoronar, ainda que silenciosamente. Notei a umidade em seu decote, e só então percebi que chorava, o velho trauma insistindo em se manifestar.
Diana afagou meus cabelos, seus dedos eram como pinceladas suaves sobre meus fios escuros. Ao me puxar para perto de si, minha altura nova fazia meu rosto roçar contra seus seios, uma proximidade quase desconcertante.
— Percebi que evocou um momento bem sombrio da sua vida para conseguir agir como ela, alma impostora. Você parecia muito abalada! Mas foi necessário. Ele acredita que agora é você. Tem que se manter assim. — Sua voz era como um sussurro entre as sombras, cada palavra impregnada de uma preocupação genuína.
— Não quero tratar mal quem me trata bem. — murmurei, aconchegando-me mais a ela, o perfume suave misturado ao cheiro de suas roupas era quase narcótico. — Você não fez nada de ruim para mim. Pelo contrário, te olhar me deixa feliz. E você está sendo toda fofa agora. — O murmúrio escapou dos meus lábios enquanto eu me apertava contra ela, meus lábios roçando seu decote e selando um beijo suave ali.
Ela suspirou com um leve sorriso, quase tímida.
— Fofa? Essa palavra nunca foi usada para me definir antes, sabia? Você é a única que acha isso.
Seus dedos continuavam a deslizar por meus cabelos, e um bocejo traiu minha calma.
— Está com sono, meu doce anjo? — murmurou, enquanto afagava os fios.
Assenti, aninhando-me mais a ela.
— Gosto que mexam no meu cabelo, ainda mais quando é uma mulher linda como você. Isso é minha perdição.
— Você é bem carente, alma impostora. — O sorriso dela era doce, um reflexo da luz tênue que iluminava seus olhos como chamas esverdeadas. Seus dedos tocavam os fios escuros que eu tanto odiava, mas que agora adorava só por causa do carinho dela.
Entre mulheres, o afeto era mais espontâneo, sincero e quase imediato, como uma verdade que se revela no primeiro olhar. Com um gesto gentil, soltei os grampos que prendiam seu cabelo, e as cascatas vermelhas fluíram como um rio de fogo. Toquei os fios, fascinada, como se pudesse capturar aquele calor nas mãos.
— Beijado pelo fogo. — sussurrei, encantada, sentindo-me enraizada em seu abraço, e beijei aqueles fios vivos. — Você é tão linda, sabia? Queria estar no meu antigo corpo. Você não ia resistir a mim...
Ela riu, tocando meu rosto com uma ternura que aquecia o frio que habitava meu coração.
— Thomas foi acompanhar o médico até a carruagem. — Ela cheirou meu pescoço, e senti o calor suave do seu fôlego contra minha pele. — Alexandra... É um nome forte. Eu me pergunto como você era antes de roubar esse corpo... Ainda bem que o tomou.
— Eu ia te encantar. — murmurei, minha voz carregada de uma confiança arrogante enquanto meu rosto se aninhava entre seus seios.
Ela riu baixo.
— Ia? — provocou.
— Ia sim. Sou bem mais alta que você. Meu corpo tinha músculos e meus seios eram bem maiores que os seus. Meu cabelo era loiro, mas não como o sol, era mais prateado, como a lua. Você ia me querer muito... Se gostasse de mulheres. Você gosta?
Ela me observou, com um olhar que parecia devorar segredos, e falou com uma voz quase inaudível, como se temesse ser ouvida por algo além das sombras.
— Você já me encanta, mesmo estando no corpo da mulher que mais odeio no mundo. — Sua voz tremia de verdade. — Mesmo que seja grudenta e muito carente. Você traz vida a essa garotinha impetuosa e mimada. Mas Thomas... Ele é louco por ela, a chama gêmea dele. Quando ele souber que não é ela aí dentro... Não sei do que ele é capaz, Alex. Ele vai enlouquecer. Ganhe tempo para mim. Vou te conseguir outro corpo, porque quando ele descobrir que a alma dela está com a Morte... esse será o único jeito de proteger você.
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Atualizado até capítulo 36
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