Reflexos do meu antigo eu

A Morte me pediu para evitar falar e me adaptar ao enredo à minha volta para agir como a original alma dona desse corpo o máximo possível. Agora, sufocada pela pressão daqueles olhos azuis intensos sobre mim, sondando cada movimento, finalmente entendo o que ela quis dizer. Ele está sentado no colchão da cama luxuosa, me confrontando. Está parecendo muito agitado pela respiração alterada.

— Não estou me lembrando de algumas coisas — consigo dizer, rapidamente.

Sério, Alex? O velho clichê da amnésia?

— Devo chamar um médico? — ele pergunta, menos desconfiado e agora preocupado. Ele é um fofo. — A pancada foi bastante grave. Contudo, não posso deixar de pensar que você não está agindo como si mesma.

— Se odiamos tanto assim nossa vida, ela não se torna o próprio inferno na Terra? — improviso algo piegas. — Eu temo o inferno — essa frase vem do meu íntimo.

Ele arregala os olhos.

— Eu também temo — suspira. — Como te expliquei, me mantive neutro na guerra. Mas meu pai considerou isso uma ofensa. Ele me puniu.

Que guerra? Pelo período, talvez fosse a Primeira Guerra Mundial?

Não sei por que revelei isso a ele, mas ele apenas acaricia minha bochecha com o polegar. É um medo antigo, uma certeza que sempre tive de que meu destino seria o inferno.

Seus olhos ganham um brilho cauteloso. Ele toca meu rosto, os olhos fixos nos meus, o polegar deslizando pela minha bochecha.

— Não vou deixar você ir para o inferno, Nott. Mesmo que sejamos amaldiçoados, enfrentarei todo o castigo sozinho. O Deus degenerado e indiferente que você ama não pode nos mandar para lá se seguirmos as Suas regras. E quanto a ser um inferno aqui... Tentarei não te causar repulsa, mesmo sendo quem sou. Mas... Eu nunca odiei você. Você é parte de mim. Metade da minha alma. Minha metade feminina. Você sabe disso. Já te expliquei como funciona. É por isso que devemos ficar juntos, por mais que me odeie. Eu te amo! Mas vou tentar não te sufocar com o meu amor, nem esperar que me corresponda! — lamenta, pesaroso. — Só fique onde eu possa te ver e cuidar de você.

Senti tanta pena dele. Eu também sempre fui assim, doando-me demais nos relacionamentos. Me obrigo a sentar, pegando sua mão e o abraçando.

"Esse abraço é um consolo. De uma idiota que sente demais para outro."

Nem sei o nome dele. Qual é o nome dele? Seria estranho perguntar assim, sem mais nem menos. Contudo, somos companheiros em sentir demais e sermos taxados de loucos.

"Thomas." Esse conhecimento me invade como um reflexo da memória do antigo corpo, trazendo uma pontada de dor de cabeça. "No entanto, esse não é seu verdadeiro nome. Ele é nojento. Eu o odeio!"

Quando ele para de me abraçar, parece notar minha careta.

— Vou avisar o médico para que venha. — Ele sai do quarto, deixando-me sozinha.

Sinto-me zonza. Observo os detalhes ao redor: a penteadeira de mogno com espelho ornamentado, sobre ela perfumes, pós de arroz e batons em tons vermelhos; uma tintura preta, provavelmente para as sobrancelhas. O guarda-roupa de mogno com detalhes dourados guarda um mar de vestidos pendurados. O piso de mármore branco com padrões pretos reluz sob a luz que entra pela janela. O teto ostenta desenhos de anjos, e os papéis de parede dourados brilham ao sol, quase cegando-me. Tudo parece girar.

A porta de madeira se abre e, desta vez, é Diana quem entra, carregando uma bacia com água e um pano, além de uma cestinha que parece conter sabão. A observo, fascinada pela beleza dela.

— Você deve se preparar para receber o médico. Vou limpar seu corpo do suor da febre. Ele me mandou para ajudá-la. Tente não gritar de novo ao toque. Se eu quisesse fazer um feitiço em você, bastaria pegar um fio de cabelo da sua escova — suspira, apontando para a escova de prata na penteadeira.

Afasto as cobertas, percebendo que estou com uma camisola fina. Que vergonha! Esse corpo é tão sem graça, sem apelo. Cabelo preto. Eu costumava ser diferente: alta, musculosa, com formas exuberantes, loira de olhos azuis, e agora... sinto-me uma criança sem graça. Mas obedeço.

Não sou tão linda como costumava ser. Eu usava calças e camisas masculinas. Amava ter um corpo feminino, mas brincar com as roupas que me faziam parecer androgina e autoritária. Me sentia poderosa com o sexo indefinido. Nunca usei decotes ou roupas mais femininas, não por querer ser a diferente, mas porque me sentia bem com essa falta de apelo. Cuidar do meu corpo e tê-lo musculoso era só para afastar homens com problemas de mulheres dominantes e pela saúde.

— Erga os braços.

Faço como ela manda, envergonhada. Ela remove a camisola, deixando-me nua. Esse corpo pueril me enoja. Ela pega o pano e o passa pelo meu corpo com precisão, uma certa raiva refletida na vermelhidão que surge na pele.

— Posso fazer isso sozinha, se preferir — essa voizinha doce que agora possuo me irrita.

Diana, mais alta que eu, passa o pano de forma delicada. No meu corpo antigo, eu seria mais alta que ela, com a autoridade de quem comanda. Imagino como seria abraçá-la, sentir seu corpo próximo ao meu.

O cheiro de lavanda enche o ar. Ela lava cada parte do meu corpo, seu toque se torna mais gentil, quase involuntariamente. Meus seios reagem ao contato, e deixo escapar um som.

Num impulso, puxo-a pelo cabelo, aproximando seu rosto do meu. Seus olhos encontram os meus, e por um momento ela parece atônita.

— Obrigada por cuidar de mim. — Tento soar charmosa, com a confiança que tinha no antigo corpo. Minha respiração se torna uma profusão de hormônios.

Ela parece perdida, o pano hesita sobre minha pele. Solto o grampo de seu cabelo e vejo a cascata de fogo descer, os olhos dela se suavizando, quase vulneráveis.

Esqueci o conselho da Morte de não agir diferente da original e tentar me adaptar ao que percebia? Esqueci completamente. Mas, em minha defesa, Diana é muito atraente e é o meu tipo ideal...

— Temos que nos apressar. O médico logo chegará — diz ela, finalmente. Engolindo em seco. Ainda tenho algum charme ao que parece, mesmo nessa porcaria de corpo. Mas não posso reclamar. Pelo menos não estou queimando no inferno com os outros. Mas quem são os outros?

Ela termina o banho improvisado e se afasta, pegando um vestido azul e algumas roupas íntimas, além de sapatos pretos de fivela.

Levanto-me da cama, mas a tontura me atinge com força. Sento de novo. Diana corre para me amparar, os olhos suavizados de preocupação.

— Ainda está fraca. Por isso vim prepará-la aqui, e não na casa de banho — ela ralha, mas a voz dela parece veludo e ela toca meu rosto e beijo a sua mão.

— Não fale assim. Não gosto de ser repreendida. — Rebato, impaciente. Mas ainda movo o rosto pelo afago da sua mão levemente calejada no meu rosto.

— Então, não aja como uma criança teimosa! — replica, um leve desamparo no olhar, o cabelo dela solto, uma distração que me desconcentra e ela puxa a mão de volta. — O patrão está inquieto. Ele disse que você não está agindo como você mesma. Tente voltar ao normal! Por favor! Nos despreze, como sempre fez... só aja como antes. Ele pode me culpar se algo estiver errado com você aí dentro...

Ela apontou para o meu coração, avaliando os meus olhos.

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