Alma impostora

Enquanto ela apertava o maldito espartilho, observei o quarto ao redor. Pesados cortinados de veludo vinho pendiam das janelas altas, bloqueando quase toda a luz natural que tentava entrar. A única iluminação vinha de um candelabro ornamentado com velas, que projetava sombras dançantes nas paredes cobertas por papel de parede floral, já um pouco desbotado pelo tempo. Um cheiro de cera derretida e poeira impregnava o ar.

Nossa! Como as mulheres respiram com isso? Argh! Está difícil respirar! Meus pulmões ardem!

— Como eu agia, antes do acidente? — perguntei, aproveitando que ela estava atrás de mim, apertando os cordões do vestido.

— Você estaria gritando agora, quebrando o que de mais caro ele te deu, dizendo para chamar outra criada porque a esposa de Satã está tocando em você. Se ele viesse te acalmar, você o chamaria de demônio e jogaria algo nele para feri-lo. — Sussurrou calma, quase como se soubesse que não sou a original.

Depois do que ela disse, sei que ela sabe que não sou a Nott. Mas parece bem calma com isso. Quase como se o sobrenatural não a afetasse. O que está acontencendo aqui? Por que ela sabe? Por que não está tendo um ataque em saber que eu não sou a Nott. Onde foi que eu me enfiei? Ela é mesmo uma bruxa? Bruxas podem saber esse tipo de coisa. Tantas perguntas, nenhuma resposta. Mas questão é que reencarnei no passado, para não interferir em nenhuma história do futuro.

Essa Nott era uma peste, hein. Claro que a igreja causa alienação nas pessoas, mas mesmo assim.

— Você pode me ajudar a agir como antes? — pedi a ela, me virando.

— Se fosse como antes, você nem me dirigiria a palavra, Nott. O que dirá pedir ajuda com algo. — Enfatizou meu nome, severa.

Ela terminou o espartilho. Suspirou, parecendo satisfeita com o vestido azul escuro com preto e seu trabalho. Olhei meu reflexo no espelho da penteadeira, um móvel de madeira escura entalhada com arabescos que revelavam o quanto pertencia a outra época. Me sentei no banquinho acolchoado com um tecido empoeirado, observando a imagem que o espelho me devolvia. Uma boneca de porcelana sem graça e submissa. Era o que essa aparência apática e de mocinha gótica, que enlouquecia os poetas, gritava. Não conseguia me achar bonita nesse corpo. Me sinto inadequada!

Suspirei, sentindo a mão dela no meu cabelo, gentilmente.

— É, exatamente esse olhar é o que ela tem, alma usurpadora. — Me disse no meu ouvido de repente. — Me chame de bruxa e esposa de Satã quando o médico chegar. Grite para o médico te tirar daqui. Chame Thomas de demônio ou diabo. Pode dizer coisas que machucam na frente do médico.

— Não quero. — Protestei para ela.

Ela tocou meu rosto e me avaliou com os olhos nos meus por um bom tempo. Deixei meu rosto ir para a cintura dela e passei meus braços em volta da cintura dela.

— Que alma mimada essa que a Morte colocou nesse corpo. — Reclamou ela, mas passou a mão no meu cabelo.

A soltei, aterrorizada. Ela apenas me acalmou com um afago no rosto e sorriu.

— Ele não sabe ainda. — Me contou. — Está frustrado por isso. Não pode ver além do sigilo que a Morte colocou em você. Por isso, tem que voltar a agir como a antiga logo.

— Como ele saberia... Esse tipo de coisa sobrenatural?

Ela deu um meio sorriso. Deu de ombros.

— Se você não se lembra, Nott, não cabe a mim te contar.

— Você é má!

— Cuidadosa. — Revidou ela, contrariada, fazendo um coque no meu cabelo, como o dela, e prendendo com um grampo. — Me diz seu nome, alma impostora.

— Alexandra. Alex, eu prefiro. — Respondi, sentindo um comichão por todo o meu corpo. — Eu sou a Alex.

— Agora você é a Nott. — Me disse, e me fez soltá-la. — Não seja tão carente. Você parece ele.

— Mas você é linda.

— E você não é cuidadosa. — Me disse irritada e estressada. — Em duas horas de transmigração, já fez todos perceberem que você não é a original. Se recomponha! — brigou comigo.

— Já disse que não gosto que briguem comigo! — Elevei minha voz com ela.

Eu odeio que briguem comigo! Odeio! Me lembra do meu pai, me batendo por nada quando ficava bêbado e gritando, berrando feito um homem louco.

Não foi intencional gritar de volta. Eu só não gosto mesmo que briguem comigo.

Escutei batidas na porta do quarto. Olhei para algo que parecia caro, uma jarra de cristal sobre a cômoda ao lado de uma bacia de porcelana fina, ambas decoradas com detalhes florais. Quando ele entrou, eu joguei algo nele, como ela disse para fazer.

— Tire a esposa de Satã daqui. Como você ousa mandar ela cuidar de mim? Eu já não disse que quero distância de vocês dois? Vocês são nojentos! — Gritei com tudo o que pude.

— O que você fez para ela? Ela estava calma antes... — Exigiu Thomas de Diana.

Espera! Ele vai descontar nela... O que eu, a surtada, estou fazendo?

— Não fiz nada... — Se defendeu Diana.

— Eu conheço você... A ameaçou com seus feitiços de novo? — Berrou com ela.

— Ela não fez nada além de me irritar com a presença corrompida dela. — Me meti. — Saiam daqui, vocês dois! Olhar para vocês me causa repulsa. Repulsa! Fora! — Repeti com tudo o que pude, tentando me lembrar do meu pai para atuar assim.

Mas a memória foi longe demais. Thomas tinha um machucado na cabeça pelo objeto que joguei. Sangue começou a descer.

— Vamos, Diana, vamos sair daqui e esperar até ela se acalmar. — Conseguiu dizer ele.

Diana pareceu atordoada por um instante. Pareceu horrorizada e acho que pensou que a verdadeira Nott havia voltado pelo modo como seu olhar ficou frio. Então, ela me estudou e, notando algo, seu olhar abrandou, antes de ir até ele e ambos saírem do quarto.

Me lembrar do meu pai me faz ficar violenta. Eu precisei trazer essa memória ruim à tona para agir como essa Nott agia com esses dois.

Mas se Nott age assim com Thomas, será que ele fez algo de ruim para ela? Não parece que esse corpo tem qualquer trauma dele, como eu ficaria encolhida ao lembrar de meu pai, mesmo que, quando cresci, eu tenha malhado, feito aulas de autodefesa e me fortalecido física e mentalmente.

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