Tempo dos Anjos: Canção do Serafim

Tempo dos Anjos: Canção do Serafim

A troca de almas

Eu me lembro apenas da dor lancinante em cada célula do meu corpo. O sangue escorrendo, a experiência extracorpórea de fitar meu próprio corpo e eu flutuando, sem massa. A bela mulher estonteante, de cabelo escuro, sorria para mim e segurava uma foice intimidante. Mesmo com a foice, eu não a temi; éramos como velhas amigas. E então, a oferta dela de reencarnar, que aceitei com um saber maior do que o meu, pois, se eu não o fizesse, a punição divina seria pior. Eu seria lançada ao inferno, eu sabia disso de alguma forma. Era um conhecimento antigo que permaneceu, mesmo que eu não me lembre bem a razão.

Então, o beijo dela em meus lábios, um garoto ao lado dela parecido comigo, e abri os olhos no novo velho mundo.

Uma voz extremamente fria constatou quando abri os olhos:

— Ela acordou, meu senhor.

Fitei a bela mulher de cabelo rubro e olhos verdes, encantada momentaneamente por sua beleza. É um anjo? Usava um elegante vestido preto antiquado e um coque no cabelo que deixava alguns de seus fios de fogo lisos, severo demais para o seu lindo rosto oval e delicado.

Então, deixei os olhos percorrerem o quarto dourado, com pinturas sacrossantas no teto e cheio de extravagâncias. Não estou na minha época, e isso grita em mim pelo ambiente, pelas roupas e pelo modo como falam. Mas em que época estou? Morte me ajudou. Eu sabia que ia para o inferno com os outros se eu não continuasse numa existência humana. Esse saber me atinge, mas não sei de onde vem. Essa certeza de punição se eu não me esconder, e o beijo da morte em mim. O garoto que parecia comigo ao lado dela, como se fosse seu amante.

Vi que a linda mulher tirou uma bacia com uma galinha preta morta de cima de mim e lançou um olhar ao homem de cabelo escuro comprido, usando um elegante terno preto, com alguma raiva incontida nos olhos verdes.

— A sua esposa acordou para te desprezar mais um pouco — cantarolou, debochada.

— Cale-se, Diana! — ele ordenou.

Quase tomei partido. Quem ele pensa que é para falar assim com uma mulher? Mas a dinâmica de poder entre eles era evidente. Morte pediu para eu evitar falar ao máximo por agora.

A ruiva deu um meio sorriso cruel, soprando uma mecha de cabelo beijada pelo fogo que caía sobre o rosto e ainda segurando a bacia com a galinha morta, cheia de sangue. Que horror, mas ela continua bonita, mesmo tendo matado a pobre cocoricó.

— Se você gosta de sofrer, quem sou eu para te impedir, certo, meu senhor? Fiz o que tinha que ser feito... mas não posso impedir que ela se jogue do parapeito de novo. E da próxima vez, uma galinha não vai bastar para barganhar com a Morte e não levar a alma. Nem sei como ela aceitou dessa vez. A pegamos de bom humor — constatou. Ela me lançou um olhar gélido. — Converse com ela para não surtar me chamando de bruxa de novo. Não há mais Inquisição, mas os servos comentam. E eu odeio os olhares que me lançam quando saio na rua.

— Tudo bem — falou o homem, magnífico; saindo de seu rancor, mirou-a com profunda gratidão. — Obrigado por tê-la salvo, Diana.

A mulher desdenhou do agradecimento com um bufo dos lábios, mas então respirou fundo e tocou o rosto dele com devoção. Depois, mudou de ideia, apenas abriu a magnânima porta de madeira do quarto e se retirou.

Os olhos dele se voltaram para mim, repletos de angústia e desespero, e então se semicerraram no mais puro rancor, sua mandíbula tensa.

— Eu não te dou uma boa vida? Eu não te tirei da sarjeta e cuidei de você... você... eu disse até que podia ver aquele pirralho desprezível, desde que permanecesse ao meu lado... e é assim que você me agradece, Nott? Tentando se matar?

Eu não sou a esposa dele. O que quer dizer que a tentativa de suicídio dela deu certo. Respirei fundo, pensando no que dizer para abrandar a fúria dele, mas nada me pareceu certo. Posso me divorciar dele, mas uma vida de luxo como essa não deve ser fácil de conseguir sendo uma mulher separada. Pela vestimenta e decoração do ambiente, eu chutaria século XIX? Infelizmente, historicamente, as mulheres dependiam financeiramente do marido, e eu não sei quais são os recursos dela. Ele disse que a tirou da sarjeta. Ela não deve ter nada.

— Desculpa — pedi.

Os olhos dele fitaram os meus com incredulidade. Ele pareceu vacilar nas inúmeras acusações de seus olhos por essa migalha de afeto. Deus do céu. Que diabos tem de errado com esse cara?

— Tem algo que você queira para tornar suportável viver? Peça, e eu te darei. Só não... não... não morra! Você é tudo o que eu tenho. Eu não sou nada sem você.

— Não me sufoque tanto com o seu afeto desmedido — perdi a paciência. Odeio gente que não tem autorrespeito. Odeio. Porque eu era assim também, implorando por migalhas das pessoas. — Você... você se odeia tanto ao ponto de ficar se humilhando para mim? Eu estou errada aqui... por que quer me dar uma recompensa?

Ele pareceu muito surpreso. Não com raiva, mas surpreso. Eu nem sei o contexto em que vivem; ele parece a ter prendido no casamento, mas não parece abusar dela. Pelo contrário.

— Você promete que não vai tentar se matar de novo? Eu te deixo em paz, só... não se mate.

— Prometo. Eu prometo — consegui dizer, menos irritada e mais benevolente. Toquei o ombro dele e dei tapinhas. “Força aí, companheiro.” Ele pegou a mão dela, quer dizer, a minha, e a beijou.

Ele sondou minha reação. Vou fazer o quê? Ele é o marido dela. Não é um velho tarado por menininhas, e parece ser bem jovem, devotado a ela e bonito. Não que isso mude o fato de que a obrigou a casar, mas podia ser pior.

— Você parece diferente... — constatou para mim, de repente. Ele me estudou atentamente e tocou meu rosto. — Você não é a Nott, é? Quem é você?

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