Traços Imperfeitos

Traços Imperfeitos

Capítulo Um: A mulher da loja

— Sua inútil! Você tinha apenas um trabalho.

Escuto indícios de uma discussão atrás de mim. Removo os fones e espio por cima do ombro. É na loja do outro lado da rua, uma senhora está cuspindo futilidades para sua provável funcionária, que usa um boné e está com a cabeça abaixada.

Massageio o lábio inferior, observando atentamente as duas. Giro o lápis e me preparo para qualquer coisa vinda daquela cena.

A moça mantém a cabeça baixa e a mulher insiste em bater o pé com força no chão, deixando a funcionária com uma expressão de derrota.

Examino a imagem por três segundos, me ajeito no banco e começo a trabalhar rabiscando a folha em branco do caderno. A Praça da Matriz está vazia hoje, dificultando meu treino já que não tem nada de interessante acontecendo. Essa discussão ter aparecido de repente foi uma baita sorte.

Estalo a língua tentando melhorar meus rabiscos, mas não consigo ir muito longe. Semana passada flagrei um estudante levando um fora e transformei aquilo em um dos meus melhores desenhos. Porém diferente do garoto tendo seu coração partido, aquela cena não é interessante. Não iria gostar de desperdiçar meu tempo desenhando uma imbecil que humilha as pessoas assim.

Deixo o caderno de lado e encaro a folhagem da árvore que me protege do sol, jogando a cabeça para trás. Este é o único banco privilegiado, então não fico surpreso quando alguém senta ao meu lado. Olho de soslaio para minha companhia e me deparo com a mesma mulher que estava levando esporro segundos antes. A primeira coisa a chamar minha atenção é seu cabelo intensamente preto como uma cascata de petróleo, se camuflando na legging que cobre suas pernas.

— Dia difícil? — me endireito no banco, querendo que ela se vire para mim.

E eu meio que congelo quando ela faz isso. Deus! Ela é a coisa mais linda que eu já vi. Seus olhos são azuis elétricos e ficam ainda mais intensos cada vez que ela pisca.

— Difícil não chega nem perto. — A moça se vira para frente, puxa a aba do boné para baixo cobrindo os olhos e se encolhe.

Massageio o lábio notando sua voz fraca e quase inaudível. O que é natural para uma pessoa que acabou de ser humilhada de graça na frente de todos que passavam pela loja. Uma lágrima desliza por seu queixo e pousa em sua blusa branca. Tombo a cabeça para o lado tentando conferir o nome pequeno estampado em seu peito, mas logo desvio o olhar quando ela percebe que estou encarando demais.

Nos encaramos durante uns segundos de constrangimento, eu certamente pareço um tarado agora. O azul de seus olhos se torna ainda mais claro com as lágrimas que se acumulam nele.

— Sua chefe é uma babaca de merda — faço uma cara de tédio encobrindo minha vergonha. — Ela não tem noção dA Gata que você é.

Me arrependo no instante em que as palavras deixam minha boca. Que merda foi essa, Anton? Voltamos para a quinta série?

Ela sustenta meu olhar e um sorriso começa a ser desenhado em seu rosto entristecido. Depois ela ri.

— Sério isso? — limpa as lágrimas e aponta para seu nome na blusa. — De Agatha pra A Gata?

Aperto a nuca.

— Péssimo, né? — péssimo é apelido para uma infantilidade dessas. Coloco o caderno em meu colo e retorno ao meu mundo tentando retocar minha obra chamada "rapazes, não se declarem em PRAÇA PÚBLICA".

— O que tá fazendo aí? — Agatha se aproxima ao se inclinar para espiar meu caderno.

A reação em meu corpo é automática quando o ombro dela roça no meu e seu aroma penetra minhas narinas. Meu coração erra uma batida e fico rígido como um idiota.

Agatha levanta a cabeça pregando seus olhos lindos nos meus.

— É aqueles dois estudantes que estavam bem ali semana passada? — ela aponta para o local e depois volta sua atenção para o desenho. — Uau! Você pegou a pior parte.

Meu corpo derrete ao assisti-la admirando algo que fiz. Já descobri o quão observadora ela pode ser.

— Como assim? — giro o lápis entre os dedos.

Ela dá de ombros.

— Achei fofo o garoto ter tomado a iniciativa. Por que não desenhou o momento em que ele se declarou?

Abafo um riso cobrindo a boca.

— Fofo? Estava na cara que ele iria ser humilhado. Essas coisas só funcionam em novelas... mexicanas.

Agatha ri de novo. Acho que colocarei isso na minha lista de coisas preferidas.

— Então você só escolhe momentos chamativos, senhor desenhista? — cruza os braços, fazendo uma careta debochada.

— Momentos interessantes. — Corrijo-a, erguendo o lápis.

Agatha assume uma cara mais séria. Apoia as mãos em suas coxas e volta a olhar para baixo.

— Não deveria ter me desenhado na loja? — ela ri de novo, mas não é a risada que eu gosto. — Aquilo foi interessante, tipo, eu estava patética.

Pego o boné da cabeça dela e enfio na minha. Ela nem sequer tenta me impedir.

— Não foi interessante — controlo minha voz raivosa ao lembrar. — E eu me recuso a jogar meu tempo fora com uma merda daquele tipo.

Ela me encara demoradamente. Estudo seu rosto, a pele rosada salpicada com sardas na ponte no nariz levemente arrebitado. Sua face é emoldurada por sua cabeleira partida ao meio, cujas mechas dançam devido à breve ventania.

— Você vem sempre aqui?

Tombo a cabeça para o lado com a pergunta inesperada dela.

Eu rio.

— Essa foi melhor que a minha.

Agatha une as sobrancelhas.

— Não foi uma cantada, poxa — explica, entre risos. — E só que eu nunca te vi por aqui.

Resmungo um "igualmente". Como eu nunca notei uma mulher tão maravilhosa aqui? Eu apenas desenho nesta praça às quintas, mas não consigo me perdoar por nunca notar aquela loja.

Ela estapeia a aba do boné chamando minha atenção.

— Me desenha! — exige ela fingindo estar amarrando o cabelo em um rabo de cavalo, inclinando o torso e fazendo um biquinho.

Engulo em seco.

Merda. Ela tentou parecer brincalhona, mas a pose causou outro efeito em mim. Gravo a imagem dela no fundo da minha mente e começo a rabiscar.

Quanto mais avanço nos traços, percebo que ela por si só é uma obra de arte criada por um gênio anos-luz à frente de seu tempo.

Ela se empertiga e fala ainda fazendo biquinho:

"Poxu mi mexer agora?"

Assinto dando risada.

O barulho de uma buzina percorre pela praça umas três vezes. Giro a cabeça até encontrar o Fiat vermelho do outro lado da praça.

Fecho o caderno e me levanto, Agatha faz o mesmo.

— Minha carona chegou — falo, fazendo sinal para Rafael esperar. — Te vejo na próxima quinta?

Agatha faz que sim e aponta para meu caderno.

— Não vai deixar o desenho comigo? — coloca as mãos na cintura. — É tecnicamente meu.

Rafael buzina de novo.

— Nem ferrando. — Sorrio dando as costas para ela.

Quando chego no Fiat, a porta do carona se abre e me jogo para dentro do carro. Rafael olha para mim e depois estica o pescoço mirando na praça, repete isso algumas vezes.

— Quem é aquela deusa da bunda grande e bonita?

Fico assistindo Agatha atravessar a rua e retornar para a loja.

— Não é da sua conta, babaca. — Puxo a aba do boné e dou uma cotovelada nele pra que comece a dirigir.

Ele dá a partida ainda olhando pra loja de roupas com uma expressão que eu poderia relacionar ao orgulho.

— Desde quando você usa boné, Anton?

Levanto as sobrancelhas para Rafael e tiro o boné da cabeça, franzindo a testa, surpreso.

Depois sorrio.

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Comments

Toyzin

Toyzin

Parabéns. Eu achei um ótimo primeiro capítulo e pretendo continuar lendo e acompanhar a obra.

2023-12-30

1

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