— Sua inútil! Você tinha apenas um trabalho.
Escuto indícios de uma discussão atrás de mim. Removo os fones e espio por cima do ombro. É na loja do outro lado da rua, uma senhora está cuspindo futilidades para sua provável funcionária, que usa um boné e está com a cabeça abaixada.
Massageio o lábio inferior, observando atentamente as duas. Giro o lápis e me preparo para qualquer coisa vinda daquela cena.
A moça mantém a cabeça baixa e a mulher insiste em bater o pé com força no chão, deixando a funcionária com uma expressão de derrota.
Examino a imagem por três segundos, me ajeito no banco e começo a trabalhar rabiscando a folha em branco do caderno. A Praça da Matriz está vazia hoje, dificultando meu treino já que não tem nada de interessante acontecendo. Essa discussão ter aparecido de repente foi uma baita sorte.
Estalo a língua tentando melhorar meus rabiscos, mas não consigo ir muito longe. Semana passada flagrei um estudante levando um fora e transformei aquilo em um dos meus melhores desenhos. Porém diferente do garoto tendo seu coração partido, aquela cena não é interessante. Não iria gostar de desperdiçar meu tempo desenhando uma imbecil que humilha as pessoas assim.
Deixo o caderno de lado e encaro a folhagem da árvore que me protege do sol, jogando a cabeça para trás. Este é o único banco privilegiado, então não fico surpreso quando alguém senta ao meu lado. Olho de soslaio para minha companhia e me deparo com a mesma mulher que estava levando esporro segundos antes. A primeira coisa a chamar minha atenção é seu cabelo intensamente preto como uma cascata de petróleo, se camuflando na legging que cobre suas pernas.
— Dia difícil? — me endireito no banco, querendo que ela se vire para mim.
E eu meio que congelo quando ela faz isso. Deus! Ela é a coisa mais linda que eu já vi. Seus olhos são azuis elétricos e ficam ainda mais intensos cada vez que ela pisca.
— Difícil não chega nem perto. — A moça se vira para frente, puxa a aba do boné para baixo cobrindo os olhos e se encolhe.
Massageio o lábio notando sua voz fraca e quase inaudível. O que é natural para uma pessoa que acabou de ser humilhada de graça na frente de todos que passavam pela loja. Uma lágrima desliza por seu queixo e pousa em sua blusa branca. Tombo a cabeça para o lado tentando conferir o nome pequeno estampado em seu peito, mas logo desvio o olhar quando ela percebe que estou encarando demais.
Nos encaramos durante uns segundos de constrangimento, eu certamente pareço um tarado agora. O azul de seus olhos se torna ainda mais claro com as lágrimas que se acumulam nele.
— Sua chefe é uma babaca de merda — faço uma cara de tédio encobrindo minha vergonha. — Ela não tem noção dA Gata que você é.
Me arrependo no instante em que as palavras deixam minha boca. Que merda foi essa, Anton? Voltamos para a quinta série?
Ela sustenta meu olhar e um sorriso começa a ser desenhado em seu rosto entristecido. Depois ela ri.
— Sério isso? — limpa as lágrimas e aponta para seu nome na blusa. — De Agatha pra A Gata?
Aperto a nuca.
— Péssimo, né? — péssimo é apelido para uma infantilidade dessas. Coloco o caderno em meu colo e retorno ao meu mundo tentando retocar minha obra chamada "rapazes, não se declarem em PRAÇA PÚBLICA".
— O que tá fazendo aí? — Agatha se aproxima ao se inclinar para espiar meu caderno.
A reação em meu corpo é automática quando o ombro dela roça no meu e seu aroma penetra minhas narinas. Meu coração erra uma batida e fico rígido como um idiota.
Agatha levanta a cabeça pregando seus olhos lindos nos meus.
— É aqueles dois estudantes que estavam bem ali semana passada? — ela aponta para o local e depois volta sua atenção para o desenho. — Uau! Você pegou a pior parte.
Meu corpo derrete ao assisti-la admirando algo que fiz. Já descobri o quão observadora ela pode ser.
— Como assim? — giro o lápis entre os dedos.
Ela dá de ombros.
— Achei fofo o garoto ter tomado a iniciativa. Por que não desenhou o momento em que ele se declarou?
Abafo um riso cobrindo a boca.
— Fofo? Estava na cara que ele iria ser humilhado. Essas coisas só funcionam em novelas... mexicanas.
Agatha ri de novo. Acho que colocarei isso na minha lista de coisas preferidas.
— Então você só escolhe momentos chamativos, senhor desenhista? — cruza os braços, fazendo uma careta debochada.
— Momentos interessantes. — Corrijo-a, erguendo o lápis.
Agatha assume uma cara mais séria. Apoia as mãos em suas coxas e volta a olhar para baixo.
— Não deveria ter me desenhado na loja? — ela ri de novo, mas não é a risada que eu gosto. — Aquilo foi interessante, tipo, eu estava patética.
Pego o boné da cabeça dela e enfio na minha. Ela nem sequer tenta me impedir.
— Não foi interessante — controlo minha voz raivosa ao lembrar. — E eu me recuso a jogar meu tempo fora com uma merda daquele tipo.
Ela me encara demoradamente. Estudo seu rosto, a pele rosada salpicada com sardas na ponte no nariz levemente arrebitado. Sua face é emoldurada por sua cabeleira partida ao meio, cujas mechas dançam devido à breve ventania.
— Você vem sempre aqui?
Tombo a cabeça para o lado com a pergunta inesperada dela.
Eu rio.
— Essa foi melhor que a minha.
Agatha une as sobrancelhas.
— Não foi uma cantada, poxa — explica, entre risos. — E só que eu nunca te vi por aqui.
Resmungo um "igualmente". Como eu nunca notei uma mulher tão maravilhosa aqui? Eu apenas desenho nesta praça às quintas, mas não consigo me perdoar por nunca notar aquela loja.
Ela estapeia a aba do boné chamando minha atenção.
— Me desenha! — exige ela fingindo estar amarrando o cabelo em um rabo de cavalo, inclinando o torso e fazendo um biquinho.
Engulo em seco.
Merda. Ela tentou parecer brincalhona, mas a pose causou outro efeito em mim. Gravo a imagem dela no fundo da minha mente e começo a rabiscar.
Quanto mais avanço nos traços, percebo que ela por si só é uma obra de arte criada por um gênio anos-luz à frente de seu tempo.
Ela se empertiga e fala ainda fazendo biquinho:
"Poxu mi mexer agora?"
Assinto dando risada.
O barulho de uma buzina percorre pela praça umas três vezes. Giro a cabeça até encontrar o Fiat vermelho do outro lado da praça.
Fecho o caderno e me levanto, Agatha faz o mesmo.
— Minha carona chegou — falo, fazendo sinal para Rafael esperar. — Te vejo na próxima quinta?
Agatha faz que sim e aponta para meu caderno.
— Não vai deixar o desenho comigo? — coloca as mãos na cintura. — É tecnicamente meu.
Rafael buzina de novo.
— Nem ferrando. — Sorrio dando as costas para ela.
Quando chego no Fiat, a porta do carona se abre e me jogo para dentro do carro. Rafael olha para mim e depois estica o pescoço mirando na praça, repete isso algumas vezes.
— Quem é aquela deusa da bunda grande e bonita?
Fico assistindo Agatha atravessar a rua e retornar para a loja.
— Não é da sua conta, babaca. — Puxo a aba do boné e dou uma cotovelada nele pra que comece a dirigir.
Ele dá a partida ainda olhando pra loja de roupas com uma expressão que eu poderia relacionar ao orgulho.
— Desde quando você usa boné, Anton?
Levanto as sobrancelhas para Rafael e tiro o boné da cabeça, franzindo a testa, surpreso.
Depois sorrio.
Agatha ~ 15 anos
Me pergunto como as pessoas conseguem esticar os cantos dos lábios expondo levemente os dentes da frente. É o que essa massa de pessoas está fazendo, todos estão sorrindo dentro de suas vestes brancas esbanjando felicidade enquanto amarram fitinhas coloridas no gradil da Igreja do Bonfim. Eu jamais pude fazer algo tão simples quanto sorrir. Já tentei, claro, mas nunca consegui. É difícil.
Uma garota que acompanha a multidão passa por mim, lançando seu olhar reprovador bem escancarado. Tento me encolher com muita vergonha, se pudesse entraria em um buraco. Dou as costas para a igreja e aperto os passos para longe dali. Queria poder não me importar pela forma como os outros me olham com repulsa. Bom, como não olhariam? Meus cabelos tão volumosos e esfarelados, o que uso não pode ser chamado de roupa, está mais para um trapo. Quatro semanas. Eu poderia contar nos dedos os dias que fiquei longe de casa. Sinto falta de poder colocar a cabeça no travesseiro e ser engolida por lençóis, esse é o único diferencial aqui, afinal minha barriga ainda ronca, minha barriga ainda dói.
Andar foi o que mais fiz nessas quatro semanas onde estive completamente sozinha, quero dizer, sempre estive sozinha mesmo quando tinha um lugar melhor do que papelão para me deitar, quando tinha algo para beber além de água suja. Eu raramente durmo, então minhas olheiras apenas pioram a minha aparência, o medo nunca me deixa dormir. As ruas são assustadoras à noite.
Bastante fraca, solto um gemido indo para o canteiro central entre duas pistas, me sento no espaço gramado e apoio minhas costas no tronco de uma árvore. Logo, logo a claridade deixará a cidade e com certeza eu não poderei permanecer acordada hoje.
— Oh, minha filha — diz um homem bem velho e corcunda se esforçando para subir no canteiro central. — Tudo bem?
Balanço a cabeça, pois acho que não tenho tanta força assim para gastar minha voz. O senhor tem uma sacola em uma das mãos e está todo de branco assim como as pessoas que vi mais cedo.
— Eu vi você e fiquei muito preocupado. — Ele se agacha, acho que escutei seus ossos estralando. O senhor coloca a sacola em meu colo, depois se levanta produzindo mais estralos.
Encaro a sacola e olho para ele, demorando um pouco para entender seu gesto. Algumas pessoas me ajudaram quando estive em um dos piores dias, mas nenhuma delas se ofereceu dessa forma.
— Não posso aceitar, senhor... — seguro a sacola, imediatamente meu estômago ronca quando o cheiro delicioso me acerta.
O velho homem sorri se inclinando para acariciar minha cabeça. Fico esperando ele me dar as costas e desaparecer, mas simplesmente senta ao meu lado sujando suas roupas brancas. Abro a sacola, o que faz minha boca se encher de água ao me deparar com uma coxinha bem gorda, uma lata de refrigerante e uma garrafa de água.
— Obrigada... senhor... — meus olhos se enchem de lágrimas, assim como meu coração se expande com tanta felicidade por apenas um pouco de comida.
— Apenas coma. — O velho homem suspira deitando-se na grama. Nós dois estamos atraindo bastante atenção. — Você fugiu de casa ou foi abandonada?
— Acho que as duas coisas. — Respondo com a boca cheia enquanto abro o refrigerante.
— Já encontrei muitos outros como você, jovenzinha — ele ergue uma das sobrancelhas para mim. — E espero que seus motivos não sejam apenas por rebeldia, hein. Seus pais podem estar preocupados.
— Eu gostaria muito que fosse verdade — engulo o último pedaço e devolvo embalagem para a escola limpando o farelo das minhas mãos. — Só que não tem ninguém esperando por mim, não tem ninguém me procurando, não estou preocupando ninguém.
O senhor me entrega um olhar de ternura misturado com compaixão. Ele se apoia na árvore para se erguer. Bate na roupa tirando a sujeira e depois se espreguiça.
— Apareça na frente da igreja mais vezes, jovenzinha — diz ele acariciando minha cabeça. — Te prometo que poderá comer algo ainda melhor.
Ele me deixa sozinha se arrastando para longe dali. Queria ter tido um avô como ele, talvez eu não precisasse passar por isso. Guardo a metade do refrigerante na sacola e volto a caminhar me sentindo muito menos vazia. Preciso encontrar um lugar para passar a noite. O céu começou a perder seus tons mais claros e as nuvens parecem viajar para algum lugar mais distante.
Quando fica mais escuro, encontro um ponto de ônibus bem vazio. Sem ter mais condições de lutar contra o sono, me deito em posição fetal no metal frio do banco enquanto o barulho de alguns carros que passam ali causam o mesmo efeito de uma canção de ninar. Tiro um cochilo bem desconfortável até ser acorda por um barulho bem alto. Dou um pulo do banco.
Há um carro bem bonito no meio fio. Uma moça sai do veículo e bate a porta se inclinando em direção à janela do carro para soltar um beijo para a pessoa lá dentro. Ela é bem chamativa assim como suas roupas curtas. A mulher possuí umas marcas roxas nas pernas e na região do pescoço. Um braço sai da janela entregando muitas notas para ela.
A moça guarda o dinheiro em sua bolsa enquanto o carro se afasta. As notas são enfiadas bem depressa, então ela não nota quando uma delas escapa flutuando e pousando bem próxima de onde estou. Pego o dinheiro e aperto o passo até a moça que está andando bem rápido sem parar de olhar para os lados.
— Ei! — meu grito faz com que ela pare e me dê atenção abraçando fortemente sua bolsa, me encarando com muito espanto. — Você deixou cair.
Ela se aproxima bem devagar me olhando de cima a baixo. Espero a expressão de repulsa, mas ao invés disso, ela abre um sorriso. Fico impressionada pela forma como seu sorriso é lindo.
— Você não deveria escolher um lugar desses pra dormir, menina — reclama enfiando a mão na bolsa, tirando de lá mais uma nota e pondo-a nas minhas mãos.
Encaro o dinheiro.
— Não posso ficar com isso.
— Então jogue fora, ué. — Ela sorri mais uma vez dando de ombros. Como ela faz para sorrir desse jeito?
— Obrigada. — Dobro as notas apertando com muita força, quero chorar agora. Talvez eu esteja sendo recompensada por todos os dias anteriores.
Dou uma boa olhada na mulher à minha frente. Seus cabelos são brilhosos, sua pele parece ser bem macia e clarinha mesmo com as manchas roxas. O sorriso dela é a coisa que mais chama minha atenção, acho que é porque ele não combina com o olhar tristonho dela. Queria muito saber como faz para sorrir desse jeito.
— Você é uma daquelas garotas... ? — pergunto, curiosa.
Lembro de quando minha mãe falava sobre mulheres que faziam esse tipo de coisa, ela não cansava de repetir que preferia morrer ao invés de se tornar uma alegando que pessoas desse tipo não se valorizam.
— Sou, sim — a moça toca em minha bochecha. — E já estive no seu lugar.
— Foi pra sobreviver? — abaixo a cabeça com meu coração pesado. — É o único jeito de sobreviver aqui?
— Não acho que seja o único, mas foi o jeito que encontrei. — A moça se vira e começa a se afastar.
Continuo parada encarando meus próprios pés me perguntando o motivo pelo qual tive que nascer se as coisas iriam acabar desse jeito. As pessoas poderiam parar e refletir um pouco antes de jogar uma coisa no mundo que elas não querem. Minha mãe deixou bem claro o meu lugar na vida dela.
Tive muita sorte hoje, mas essa sorte pode se transformar em azar rapidamente. E o que eu posso fazer? Eu não tenho nada, não sou nada, nem casa tenho para voltar.
Casa não é uma palavra familiar.
Tenho memórias de uma versão minha bem mais nova tentando mexer no fogão porque estava morrendo de fome e a única solução era preparar alguma coisa. Minha mãe e um de seus muitos namorados apareciam apenas à noite e ela fazia um pouco de comida que tínhamos para eles. Eu a observava em frente ao fogão, precisava aprender a me virar sozinha.
Certa vez, um de seus namorados, que geralmente fediam a cerveja, entrou no meu quarto enquanto eu fingia estar dormindo, sempre tive que me fazer de invisível para não chamar a atenção de nenhum deles, mas aquele me enxergou mesmo eu estando invisível. Ele não me tocou ou fez alguma coisa estranha, apenas permaneceu parado na parte escura do quarto.
Nunca senti tanto medo como naquela noite, o tipo de medo que congela sua alma, faz seu coração acelerar, seu corpo enfraquecer e suar frio. Eu dormia em um colchão no chão do meu quarto quase vazio e sempre me vestia com roupas longas demais, apenas naquela noite usei um short.
O cara estava nas sombras, notei seu ombro se mover para trás e para frente. Não sabia o que estava fazendo e tenho certeza que não queria saber. Alguns minutos depois, minha mãe o chamou. Soltei um longo suspiro de alívio, chorei e nunca mais esqueci de trancar a porta.
Houve muitos outros capítulos, mas nenhum deles me marcou tanto. De qualquer forma, atualmente me vejo pressionada a decidir entre escolher viver uma vida de merda com a minha mãe ou viver uma vida de merda nas ruas, as opções competem perfeitamente entre si para ver qual delas é a pior.
Uma gota pinga na ponta do meu nariz, quando olho para cima sou recebida por uma garoa refrescante. Fecho os olhos e fico ali parada às vezes abrindo a boca para provar a chuva. Desde muito nova corro para a chuva enquanto os outros fogem dela, pois acredito que ela tem o poder de lavar meu interior, também.
Aperto as notas, retorno para o ponto, me sento no banco e espero até que os primeiros raios de sol se anunciem, até que o ônibus que pode me levar para casa apareça.
E quando aparece, o motorista recusa minha entrada dizendo que o ônibus está cheio sendo que não tem quase ninguém dentro, então insisto até que ele facilite. Durante toda a viagem fico ao lado da porta sendo encarada pelo cobrador que enruga o nariz com cara de nojo.
Felizmente, a viagem não dura muito e em alguns minutos desço do ônibus. Como é bem cedo, minha antiga rua está vazia e o barulho ecoa quando bato na porta velha de madeira daquela pequena casa com sua pintura descascada e muitas manchas escuras.
Demora um pouco, mas a porta é aberta bem lentamente, criando uma sensação desgostosa dentro de mim. Torço muito para não ser um dos namorados dela, e fico estranhamente aliviada assim que minha mãe coloca a cabeça para fora. Nós duas nos encaramos, sou tomada por um nervosismo poderoso.
Não há rastro de surpresa no rosto daquela mulher que se parece tanto comigo, seus cabelos são tão negros quanto os meus, assim como seus olhos carregam o mesmo brilho azulado.
— O que você quer? — pergunta com sua voz arrastada.
— Posso voltar, mãe? — dou um passo à frente como se tivesse certeza que a resposta seria sim. — Não vou fugir de novo, eu juro.
Ela franze os lábios, abre mais a porta e recua um pouco mais para dentro.
— O Roberto foi embora semana passada, eles sempre vão embora — minha mãe apoia as mãos na cintura e solta um suspiro. — Você foi embora também, não tenho mais uma filha.
Me aproximo da porta com as mãos unidas.
— Não... não tem problema — minha voz treme, ela é suplicante. — Eu posso ser só sua empregada, quando eu ficar de maior juro que sumo da sua vida.
— Você jura demais, garota — ela me olha de uma forma tão entediada que me deixa ainda mais em pânico. — Pra que merda vou querer uma empregada? Pareço uma aleijada pra você?
Balanço a cabeça negando rapidamente e piso no vão da porta.
— Claro que não, mas a senhora pode precisar...
— Saia daqui. — Ela corta minha frase pela primeira vez demostrando insatisfação.
Pestanejo percebendo que as opções estão acabando, não posso voltar para as ruas. Entro mais um pouco na casa e me ajoelho.
— Mãe, já tenho quinze anos, vou fazer dezoito bem rápido, então...
Minha mãe coça a parte de trás da cabeça, impaciente.
— Porra, garota, já dei minha resposta. Eu não acolho pedintes.
Olho em volta para cada canto daquela casa onde passei muitos dias sozinha sem ter o que comer, mas estava debaixo de um teto. As opções estão acabando, Agatha.
Me levanto, ficando cara a cara com a mulher na minha frente que deveria ser a única pessoa no mundo que deveria estar ao meu lado, mas está contra mim sem nenhum motivo, nunca a decepcionei, nunca! Eu até mesmo desisti da escola para que ela não tivesse responsabilidades.
— Não posso voltar pra rua! — grito em desespero sentindo as lágrimas escaparem.
Minha mãe faz uma cara feia e me pega de surpresa agarrando meu cabelo. Seguro seu pulso com as duas mãos tentando afastá-la enquanto me debato com a dor que faz minha cabeça arder. De repente, sou acertada no canto direito do rosto. Ela me solta. Eu cambaleio.
Toco no canto da boca com o dedo e vejo meu próprio sangue. Dou uma boa olhada para a mulher na minha frente com muitas mechas esfareladas cobrindo meu rosto. Sinto muita raiva por inúmeros motivos, me sinto amaldiçoada.
— Já disse — minha mãe dá um sorriso apertado. — Cai fora daqui, vadia.
O sorriso dela é bonito.
Ando para trás saindo da casa.
Saindo para sempre da vida dela.
Ela bate a porta com muita violência.
Como alguém tão ruim consegue ter um sorriso tão bonito?
Por que ela sabe sorrir e eu não?
Viro a dose de tequila na boca.
Observo as pessoas pulando, agitando os braços, enquanto as luzes explodem até o teto e a música vibra através do chão.
Apoio as costas e os cotovelos no balcão quando percebo Rafael se aproximando. Ele anda com os braços um pouco afastados como se fosse um rato de academia, mesmo que tenha uma barriga um pouco avantajada.
— Ah, não, meu mano! — ele me envolve com um dos braços e pressiona a lateral de sua cabeça morena contra a minha. — Ainda nessa?
Meus olhos varrem o salão estudando cada figura que se movimenta, às vezes elas parecem se movimentar do mesmo jeito.
— E aquela gata da praça?
Dou de ombros.
— Só conversamos por um tempo, não quer dizer nada.
Rafael atrapalha minha visão e coloca as mãos em meus ombros, com o rosto confuso.
— Mas você disse que ela causou um efeito único em você.
Assinto.
— E também disse que ela é a coisa mais linda que já viu.
Assinto mais uma vez.
— Não posso ficar me iludindo tão rápido, babaca.
Meus olhos param no canto do salão, onde há uma figura afastada das outras. Ela pula e toda vez que seus pés retornam ao chão, ela se desequilibra quase desabando.
Empurro Rafael e me aproximo dela.
Meus passos estão molengos.
Estou um pouco tonto.
Seus cabelos são pretos barrando no meio das costas seguindo os movimentos quando ela rebola. Começo a pular ao lado dela, entrando na sintonia da música.
— Por que está dançando sozinha? — grito para que minha voz não seja esmagada pelo barulho.
Ela para de dançar e me encara. O vestido branco sem alças cai quase que perfeitamente no corpo dela.
— Eu sempre danço sozinha! — ela grita de volta e retoma seu rebolado.
Penso em algo para dizer dando continuidade a nossa conversa — ou aos nossos berros. Mas minha mente não está trabalhando muito bem esta noite.
A dançarina pula mais uma vez, mas quando volta para o chão, pisa de mau jeito e se desequilibra. Estico os braços, agarrando sua cintura, impedindo-a de desabar. Ela se agarra em meus ombros para recuperar o apoio.
— Valeu, eh... — ela faz uma careta e sorri. — Qual teu nome?
Afasto uma mecha de cabelo de sua testa deslizando os dedos por sua bochecha e parando na ponta de seu queixo. A pele dela é macia e tão branca quanto papel, mas bem que poderia ser rosada. Seus olhos têm um tom verde explosivo, mas bem que poderiam ser elétricos.
— Anton. E o seu?
Ela abre a boca para responder e, por algum motivo, espero que a primeira vogal a sair de lá seja "a".
— Isa!
Isa segura minha mão e me arrasta pelo salão, na direção das escadas. Avançamos dois lances, atravessamos o segundo andar, subimos outro lance de escadas e chegamos ao terraço. Nos apoiamos no parapeito de alumínio, ignorando dois casais em cantos opostos quase indo para a fase final de um beijo.
— A noite está incrível. — Isa se joga para frente olhando para o céu e depois para a rua.
— Primeira vez?
A inspeciono de cima a baixo. Na verdade, seus cabelos são castanhos e cacheados, meus olhos se enganaram.
— Quinquagésima e alguma coisa. — Isa cruza os braços e passa o peso para a outra perna. — Não fique me secando.
Ergo as mãos.
— Força do hábito.
Ela me puxa pela cintura e beija meu pescoço, depois desliza a boca até minha orelha apenas para sussurrar:
— Gosta do que vê?
A afasto, ainda sustentando seu olhar provocativo sob a luz do luar, fazendo com que sua pele brilhe. Me inclino e meus lábios escorregam pelos seus, dando início ao beijo. Mas Isa vira o rosto deixando uma risadinha escapar.
— Você não respondeu, Ton.
Ton?
Escolho uma das cadeiras dobráveis e me sento nela, trazendo Isa para meu colo.
— Depende... — respiro fundo. — Você acredita que existe outra pessoa em qualquer lugar do mundo que te completa?
Fico surpreso ao ouvir minhas próprias palavras após repeti-las tantas vezes para tantas garotas em meio a tantas tentativas. Isa segura em meus ombros, vira um pouco a cabeça e semicerra os olhos.
— A tampa da minha panela? A outra metade da laranja?
— Isso.
Isa joga a cabeça para trás e não contém nem um pouco sua gargalhada. Faço uma cara feia e olho para o outro lado. Algumas apenas me responderam secamente, mas nenhuma delas riu.
Ela controla a risada quando percebe minha reação.
— Ei — seus dedos encontram meu queixo até estarmos cara a cara de novo. — Não acredita mesmo nessas coisas, certo, Ton?
Aperto a nuca e tento responder, mas nada sai quando abro a boca. Nunca senti esse aperto no peito ou essa vontade frustrante de ficar calado como se estivesse dizendo essas coisas para a pessoa errada. Eu apenas penso em cabelos pretos e olhos elétricos.
— Desculpa — diz Isa, séria, ao beijar minha testa. — Eu realmente achei que fosse uma piada.
Passo a mão livre no rosto e balanço a cabeça.
— Acho que estraguei o clima.
Isa agora não está mais sentada em meu colo, ela puxa o vestido até a área acima de suas coxas e ajusta as pernas para montar em mim.
— Posso ser sua outra metade por alguns minutos.
Ela agarra minha camisa e cola sua boca na minha, fundindo as duas de forma que consigo sentir o gosto de morango de seu gloss. Enterro minhas mãos na cabeleira dela e a posiciono para que ela se encaixe ainda mais em mim. Puxo um pouco mais seu vestido e ela sorri durante o beijo em que eu tanto me afogo para ofuscar meus pensamentos sobre cabelos pretos e olhos elétricos.
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