Seria ótimo que a água que lava meu corpo nesse momento pudesse lavar
minha mente. Não seria necessário levar para o ralo todas as minhas memórias,
apenas as de como da noite passada. Termino meu banho e me encaminho aos
armários para me vestir. Procuro minhas roupas entre cabides e gavetas tentando
fazer o mínimo de barulho possível para não acordar a mulher que está em minha
cama. Encontro algo bem leve pois com o calor que faz só mesmo ar condicionado
para suportar terno e gravata. Sento no pequeno banco almofadado para calçar
meias e sapatos e presto atenção aos ruídos que vem do quarto, são suspiros
entrecortados por soluços; ela chorou demais em meus braços.
Vem em minha mente que agora de manhã tem uma reunião na faculdade
Pinheiro, onde ela precisa comparecer. Duvido muito que os meninos fiquem
chateados se eu desmarcar, eles a conhecem e sabem como é pontual em seus
compromissos. Talvez seja melhor chamar todos para um jantar hoje à noite,
afinal ela ama estar com eles.
A tempos atrás eu a condenaria e ignoraria a situação como revolta. Não
tenho orgulho em lembrar que durante a adolescência fiz isso. Mas a fase adulta
para mim veio com muitas obrigações e o peso de um passado marcado pela
ganância.
Depois de perfeitamente vestido, confiro minha imagem no espelho e estou
péssimo. Lembro que meu pai falava isso desde sempre. Já minha mãe, doce e
carente como sempre me elogiaria dizendo “lindo” e correria seus polegares para
os cantos de meus lábios fazendo cócegas até eu sorrir e completaria “agora
perfeitamente lindo” e beijaria minha bochecha.
Volto para o quarto e fito a cama, onde a mulher está enrolada na
posição fetal. Sua respiração ainda é pesada de soluços. Como disse, ela chorou
muito em meus braços. Consegui a acalmar por volta das três da manhã,
prometendo que ele não me machucaria. Não desta vez, e se depender de mim a
mais ninguém. Em especial ela, suas lágrimas de desilusão fazem meu coração
sangrar e é por isso que não dou motivos a ela para se decepcionar comigo.
Checo as cortinas para nenhuma fenda de luz atrapalhar seu sono e pego
meu aparelho celular de cima do criado mudo. Jogo um beijo no ar, evitando que
nosso contato se desperte e saio o mais silencioso que posso.
Vou até a cozinha e vejo a empregada da família fazendo o café da manhã.
— Bom dia Rose. — Mesmo querendo ser gentil, meu tom de voz sai ríspido.
Vou até o armário e pego uma xícara. Limpo a garganta e tento mais uma vez
falar sem ser rude. — Obrigada por vir ficar com ela mesmo que tão cedo.
— Bom dia Doutor Fabricio. — Cumprimenta com um sorriso doce mesmo
diante do meu tom e vem me servir café. — Não precisa me agradecer por nada,
ela é um anjo e merece ser tratada como tal.
Assinto com a cabeça e ela se afasta.
— Rose! — A chamo e ela volta a me olhar. — Por favor não a deixe
sozinha. Não dou a mínima para os afazeres do apartamento. Se precisar, chame o
serviço de limpeza e peça comida. Os telefones estão todos marcados no mural da
área de serviço. E peça para Anselmo passar na casa dela e pegar algumas
roupas. Quero ela aqui comigo por alguns dias.
— Claro! Anselmo tem alguns exames agora pela manhã, mas logo estará
aqui. Como das outras vezes não a deixamos sozinha e qualquer coisa, te aviso.
— Perfeito! — Levantando para ir trabalhar, mas antes vou até meu
escritório e pego minhas chaves.
Saio mais cedo porque quero evitar conversas por hoje. Em especial com
meu primo Leonardo que é sempre tão comunicativo. Desisto até mesmo de colocar
meu carro no estacionamento da empresa, na esperança de acharem que não vou
trabalhar. Assim, estaciono uma quadra antes e caminho até a empresa. A rua é
muito bem arborizada, o que me deixa mais calmo.
Repasso mentalmente a agenda de hoje e lembro da reunião marcada no
Pinheiro. Vou ligar para Antônio, reitor da Pinheiro, e desmarcar, e claro,
pedir para Rose avisar ela que não precisa se preocupar com isso. Me recordo
que, depois que liguei para a Rose, pedindo que viesse até meu apartamento
hoje, desliguei o aparelho para evitar qualquer barulho desnecessário. Mesmo caminhando,
o pego do bolso da calça e pressiono o botão para que ligue. Meus problemas me
distraíram de tal forma que só percebi que começava a chover por conta das
gotas que caíram na tela. Fico em dúvida se é melhor guardar no bolso ou não,
tudo o que eu não preciso é ficar sem aparelho celular, não hoje que quero
muito receber uma mensagem de Rose dizendo que está tudo bem.
Resolvo não guardar e continuo com os olhos fixos na tela que começa a
ligar quando sinto um impacto e meu celular vai para o chão.
— Droga, mil vezes droga!
Uma garota atravessa minha frente e consegue arruinar mais ainda o meu
dia. No começo suas palavras pareciam meigas, mas quando exponho que sei do seu
joguinho, sai da minha frente sem pensar duas vezes. Olho para o chão e meu estresse
vai às alturas vendo meu telefone móvel encharcado. Pego ele do chão por pura
educação, já que não admito lixo no chão, mas minha vontade era o deixar lá.
Entro no prédio onde sou o presidente, sem olhar em volta, os poucos
funcionários que já chegaram, percebem meu estado de espírito e se afastam o
máximo. Desconfio até que alguns pararam de respirar. De elevador chego até meu
andar, constato que minha secretária não está em seu posto e isso também
aumenta meu aborrecimento. Entro em meu escritório, e encontro ela terminando
de encher um recipiente de vidro com suspiros. Ela se vira com o pote na mão e
me cumprimenta da mesma maneira que Rose me cumprimentou em casa: com um largo
sorriso, isso me destrói por dentro. Não quero ficar igual “ele”, mas parece
que quanto mais tento, menos consigo. A senhora caminha até mim:
— Bom dia, doutor Fabricio! Os suspiros acabaram de chegar, prove como
estão ótimos! — Tira a tampa e não resisto aos doces, que quando coloco em
minha boca molhada, desmancha a casca crocante, me deixando apenas com a goma
adocicada que tem dentro para mascar. — Logo o café chega, se tivesse me
avisado que viria mais cedo eu já o teria trazido.
Engulo o que tenho na boca e seguro entre os dedos mais um dos doces.
— Bom dia Silvia. — Pigarreio para diminuir o doce de minha garganta. —
Não se preocupe com o café, tem coisas bem urgentes para você resolver. — Ela
me olha curiosa. — Meu celular estragou e preciso de outro com urgência. E como
estou sem telefone perdi o contato com a empregada da família e de Antônio
Pinheiro. Os consiga para mim e ligue, preciso falar com eles nessa ordem.
— Farei o que me pediu. — Fecha o pote de doces e leva para seu lugar.
Pede licença, mas antes dela sair caminho até ela e entrego o celular quebrado.
— Silvia, se livre disso. — Assente mais uma vez e sai para lhe fazer o
que pedi.
Minha atenção se volta para o doce em meus dedos, que em poucos segundos
enche minha boca com seu delicioso sabor. Penso em comer mais alguns antes de
me ocupar com meus afazeres, mas o telefone em cima da minha mesa de madeira
maciça toca, é preciso atender. Silvia sempre é eficiente, já tem Rose na linha
e assim posso saber como ela está. Em seguida quem está na linha é Antônio:
— Fabricio, a que devo a honra de sua ligação? Confesso que esperava sua
presença, não sua ligação! — Fala meu amigo de longa data.
— Eu sei Antônio, mas na noite passada houve um imprevisto e, embora eu
saiba que a reunião que temos é muito importante, não poderemos estar
presentes. — Ele solta um longo suspiro.
— Assim você me preocupa, algo que eu precise saber?
— Ele entrou em contato ontem para avisar de sua volta. — Falo bufando.
— Isso não é bom... — Antônio considera.
— É péssimo! — Descanso meu rosto em minha mão e prossigo. — Ela entrou
em colapso.
— Era de se esperar, já que só de mencionar ele as coisas já saem dos
trilhos. Foi com ela no hospital?
— Não, ela me implorou para manter sua lucidez, está até com medo de
tomar um Doril. — Estalo a língua. — Minha próxima tarefa é avisar seu psiquiatra
do ocorrido e pedir que intensifique as sessões. — Procuro uma caneta e anoto
num papel em branco para não esquecer.
— Isso já é um começo! Bárbara está chegando hoje, sei que sua agenda é
apertada, pois casa lazer com trabalho sempre, mas vou pedir que passe um tempo
com ela, para não ficar sozinha e se distrair um pouco.
— O casal de empregados está com ela, mas a companhia de Bárbara sempre
é bem-vinda. E dependendo como ela reagir durante o dia, gostaria que nos
reuníssemos no apartamento para um jantar. Sabe como ela ama a companhia de
vocês.
— Fico no aguardo do seu convite então meu amigo. E quanto a reunião,
vou avisar os outros. Já falou com Leonardo? — Ouço ele estalar os dedos.
— Não, sabe como ela é em relação a ele. Por isso gostaria que o avisasse,
mas não contasse o real motivo. Nem para ele, nem para ninguém.
— Está cometendo um erro, precisa avisar a todos. Esqueceu? Somos uma
família! — Pondero minhas próximas palavras, ele está certo, mas no momento não
quero os envolver. — Sabe que de uma forma ou de outra estamos correndo o mesmo
perigo. Arthur e Sérgio podem ser muito úteis se avisados antes.
— Entre em contato com Silvia para remarcar a reunião. — Desconverso.
— Fabricio... — Sua voz sai em tom de alerta. — Sei que acha que esse
problema é seu, mas não pense que está sozinho.
— Antonio, preciso de um tempo para pensar. — Esfrego minhas têmporas já
doloridas.
— Tempo é uma coisa que você não tem. — Ficamos em silêncio. — Pelo que
me lembro da minha agenda, sexta de manhã tenho tempo para a reunião. Vou
confirmar com todos e se ela for realizada, seu tempo acaba no momento que a
reunião encerrar. Se você não falar, eu falo.
— Foi um erro te contar. — Falo quase gritando. — Além disso ela vai
estar presente.
Como se estivéssemos conversando calmamente, ele continua:
— Vai me agradecer por isso e você sabe, nunca falaria na frente dela.
Vocês vão estar no meu espaço, também sei do que ela gosta, e de tantos
funcionários, impossível que eu não consiga um para a distrair por míseros
cinco minutos!
— Faça como quiser. — Respondo com desdenho. — Tenho que trabalhar. Boa
semana para você.
— Boa semana Fabricio. Não se esqueça que estou à sua disposição.
Bufo desapontado e desligo o telefone. Meu olhar volta para os doces.
Definitivamente ele consegue estragar tudo em mim. Até meu dia.Silvia entra com
o café e avisa que um vendedor de aparelho celulares está na recepção
aguardando meu consentimento para subir. Eu autorizo, mas que antes de permitir
sua entrada em meu escritório, entre em contato com o Doutor Torres,
psiquiatra, pois preciso muito falar com ele.
Mais dois detalhes e realmente começo a trabalhar no que sou bom.
***Faça o download do NovelToon para desfrutar de uma experiência de leitura melhor!***
Atualizado até capítulo 59
Comments