DOCES SUSPIROS
Eu poderia ser uma garota entre tantas acordando para mais um dia normal, indo à escola, ajudando meus pais em suas tarefas e contemplando o pôr do sol meu balanço no pomar. Mas não, acordei já faz um tempo e por algum motivo não consigo levantar ou abrir meus olhos. Preciso abrir meus olhos! Tenho pânico da escuridão. Nesse momento me sinto como se estivesse mergulhada em profundas águas. Não como quando mergulho para o fundo do rio Ivaí, pois lá ainda consigo sentir os raios de sol. Aqui o breu é maior do que posso suportar e meus ouvidos sentem uma dolorosa pressão dificultando meu cérebro de entender o que está acontecendo à minha volta. Ouço bips e murmúrios entre soluços. Há uma batida na porta que em seguida se abre, sussurros de bom dia e logo sinto mãos geladas encostando em meu rosto enquanto outras me descobrem e apertam meu corpo ainda dormente. Me esforço para levantar e gritar que parem. Mais uma vez meu corpo não obedece aos meus comandos. Meu desespero aumenta quando reconheço o choro de meus pais. Uma voz grave fala e não consigo decifrar do que se trata. Os ruídos da porta se juntam com os gritos de minha mãe:
— MEU DEUS, AJUDE MINHA MENINA, MEU DEUS NOS AJUDE! — Ela grita e como quero a abraçar e dizer que estou bem. Nem minhas lágrimas me obedecem.
— Rose, se acalme — Meu pai fala firme. — Vamos dar um jeito.
— Que jeito Anselmo? Já se foi todo o dinheiro da venda do nosso sítio e nem sinal da nossa filha voltar ao que era antes. — Eles venderam nosso sítio? Por quê? O que está acontecendo?
— Não diga uma bobagem dessas, eles estão fazendo o melhor deles, você os ouviu.
— Também ouvi ele dizer que esses são os últimos exames que estão inclusos no pagamento que já fizemos. Os próximos, vamos pagar como?
— Recebi uma oferta na casa daqui da cidade, vamos conseguir, sei que vamos, tenha só mais um pouco de fé.
— Tenho fé, querido, e tenho muita esperança de que isso não passa de um pesadelo.
Também penso nisso! Estou tendo apenas um terrível pesadelo.
Outra batida na porta os interrompe e uma mulher anuncia:
— Precisamos levar ela para os próximos exames. Infelizmente vocês não podem acompanhar, assim como das outras vezes, então, aproveitem para tomar um café ou até ir para casa descansar, ela não volta em pelo menos seis horas.
— Enfermeira, cuida da minha menina, por favor! — Minha mãe fala já com a voz entrecortada.
— Estamos fazendo nosso melhor! — A mulher responde. Percebo que tiram meu corpo moribundo da cama e colocam em outra. Acho que estão me arrastando em uma maca. Tudo indica que estou em um hospital. Mas, por quê?
— Coitada, tão nova para tudo isso. — Ouço uma voz feminina falar.
Horas se passam entre ruídos e bips que não conheço, portas abrindo e meu corpo sendo colocado e retirado de várias camas. Por fim, sinto algo arder dentro do meu braço direito e, aos poucos, a escuridão invade meu cérebro. Quando consigo acordar novamente, estou na mesma situação, presa em um corpo inútil. Tento pôr em ordem os últimos acontecimentos para entender como cheguei até aqui.
Eu estava na cozinha de minha casa, colocando no forno do fogão à lenha uma fôrma com suspiros italianos para assar. Enquanto isso, vovó tagarelava, como eu era boa em fazer suas receitas e que meus doces eram melhores que os dela. A água ainda escorria do velho filtro de pano para o bule espalhando o aroma forte do café recém-coado. Peguei com cuidado a bebida e enchi sua xícara. Animada, ela contou como estava planejando meu aniversário de quinze anos, deixou até o café de lado para ir até o quarto de costura buscar uma revista com o modelo do vestido que estava planejando me fazer. Decidi pegar um pouco de café para mim, mas não tive tempo. Escutei um baque na porta e quando olhei na direção, três homens entraram dentro de nossa casa. Um deles foi rápido em me pegar pela cintura. Gritei desesperada e minha boca foi tapada pela sua mão imunda.
— Novinha assim, vale um dinheirão!
Outro fala enquanto bebe o café deixado na mesa.
— Larga desse café e vamos ver o que podemos levar. — Disse o terceiro homem, parecendo o líder. — E você, — apontou para o que me segurava — amarra bem a cabritinha e fica com ela dentro do carro.
Fui arrastada para fora da casa enquanto lutava para escapar.
Vovó apareceu com sua tesoura de costura na mão e enfiou no ombro do meu raptor, entre o susto de ver o sangue escorrer e o som de um tiro de arma de fogo, minha visão escureceu.
Nesse momento minha mente trava, e imagens de minha avó no chão ensanguentada se misturam com cenas de meus pais desesperados.
Os borrões se desfazem e lembro com nitidez minha avó em um caixão.
Não consigo soltar meu choro, nem isso meu corpo obedece e dói minha alma com o peso do luto e da culpa da morte da vovó.
Agora, estou nessa situação e meus pais se desfizeram do lugar que me criei.
Alguém vem buscar meu corpo e ouço as rodas da maca ganhando velocidade, até que vai diminuindo e para, uma porta se abre. Meu corpo arrastado pelos lençóis, vai para mais uma cama, mas, reconhecendo a voz de minha mãe, imagino que eu tenha voltado para o quarto que estou “hospedada”.
— Glória a Deus, glória a Deus. — Sinto que ela segura minha mão dormente. — Luiza, o médico disse que é provável que você está nos ouvindo! — Ela soluça. — Querida, sinto que Deus ouviu minhas preces, ele até mandou um anjo bondoso que ofereceu um emprego para seu pai que tem plano de saúde e não vamos precisar vender mais a casa! O nome dela é Maria Fernanda Biasi e ajuda o asilo daqui da cidade. Veio visitar uma idosa que está internada e ouviu meu desespero. — Soluça mais uma vez. — Seu pai vai ser motorista e jardineiro. Não vai ser como ele ama, que é trabalhar com a terra, mas vamos poder continuar seu tratamento! Tenho fé que logo você vai voltar ao normal e quem sabe vendemos a casa para comprar um outro sítio! — Ela começa a chorar. — Você precisa voltar ao normal Luiza, seu pai está inconsolável, ele não diz, mas seus olhos me contam isso. É uma tristeza depois da outra. Sua avó e agora toda essa tragédia com você. Não nos decepcione, Luiza. — Ela volta a chorar e percebo que seu pranto é muito mais amargurado e sofrido que suas palavras. Imagino como meu pai está. — Seu pai me dizia que não comia porque estava fazendo jejum por sua vida, bem sei que era para economizar, nosso dinheiro ficou tudo com esses médicos. Faça sua parte, minha filha, porque Deus está fazendo a dele. — como eu queria confortar e enxugar suas lágrimas. Passa algum tempo me acariciando e chorando até que fala: — Vou na capela continuar pedindo a Ele. Me dá um beijo na testa, que também está dormente, e sai do quarto.
Quando minha avó morreu, pensei que sofrer por alguém era uma dor insuportável, mas me enganei. Ser o motivo do sofrimento para quem amamos é muito pior.
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Atualizado até capítulo 59
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