O monitor do computador parecia zombar de mim. As letras miúdas, os números em euros, tudo se misturava em uma névoa de desespero e incompreensão. Eu pesquisava incansavelmente sobre o tratamento na Sardenha, cada clique revelando uma cifra mais assombrosa que a anterior. Milhões. Era uma barreira intransponível, um muro de ouro entre minha mãe e a vida. Meus olhos ardiam, mas as lágrimas haviam secado, substituídas por uma espécie de torpor gélido.
O som da minha cadeira arrastando no piso de carpete, abafado, foi o único aviso antes de Renata surgir ao lado da minha mesa. Seus olhos, sempre tão vivazes, agora me analisavam com uma preocupação aguda.
"Ana, você está pálida", ela disse, a voz suave, mas firme. "Aconteceu alguma coisa? Você está ainda mais estranha desde ontem, depois do que o Fernando fez."
Eu forcei um sorriso, que, com certeza, saiu mais como uma careta. "Só o estresse do evento, Re. Você sabe como ele fica."
Renata suspirou, e eu senti o peso do seu olhar em mim. "Eu sei, amiga. Mas ele… ele é demais. Fernando tem esse jeito de sugar a energia das pessoas. Eu sou prima dele, e mesmo assim, às vezes me assusto. Você devia se afastar um pouco. Tirar umas férias, sei lá. Ele é… ele tem esse poder de nos controlar, de nos consumir."
Sua sugestão de me afastar, naquele momento, soou como um eco cruel do meu próprio desespero. Me afastar? Como se eu pudesse. Como se o destino da minha mãe não estivesse amarrado a cada batida do meu coração, a cada pensamento. Mas o conselho dela, vindo de alguém tão próxima a ele, me fez pensar. Fernando era um predador. E eu, uma presa ferida.
A porta do elevador se abriu, e um burburinho de vozes preencheu o ar. Era o horário do almoço. Eu estava prestes a me levantar quando um vulto elegante parou ao lado da minha mesa.
"Senhorita Santos, não é?" A voz era macia, com um sotaque francês carregado, mas com uma autoridade inegável.
Levantei os olhos e dei de cara com um homem que eu nunca tinha visto por ali. Alto, impecavelmente vestido em um terno de corte perfeito, com olhos claros e penetrantes que me avaliavam com uma intensidade quase perturbadora. Ele era Damien, um dos investidores franceses que Fernando vinha cortejando há meses. Eu sabia disso porque havia preparado todas as apresentações para ele.
"Sim, sou eu", respondi, a voz um pouco mais trêmula do que eu gostaria.
Ele sorriu, um movimento lento e calculado que não chegava aos olhos. "Damien Dubois. É um prazer finalmente conhecê-la. Ouvi muito sobre sua eficiência. Fernando Aslam tem uma sorte incrível em tê-la como secretária."
As palavras eram um elogio, mas havia algo mais, um subtexto que me fez sentir desconfortável. Ele tirou um cartão de visitas de seu bolso interno, não um cartão comum, mas um material mais grosso, com um brilho sutil. O logo discreto de um clube. Um clube exclusivo.
"Eu tenho um faro para talentos, senhorita Santos", ele continuou, seus olhos analisando cada detalhe do meu rosto, como se lesse meus pensamentos. "E você, vejo em seus olhos, tem potencial para outros círculos. Mais… gratificantes." Ele baixou a voz, um sussurro que era quase uma cumplicidade. "Se um dia sentir que seus dons são subutilizados, ou que precisa de… outras oportunidades, este lugar pode lhe abrir portas. Portas que a Aslam jamais poderia oferecer."
Ele deslizou o cartão sobre a mesa, os dedos longos e elegantes roçando os meus por um breve instante. Um arrepio percorreu minha espinha. Era um clube para acompanhantes de luxo. Eu já tinha ouvido boatos. Era onde mulheres bonitas e inteligentes vendiam sua companhia, e algo mais, para homens poderosos. A repulsa inicial deu lugar a uma curiosidade perigosa. O desespero da minha mãe pulsava nas minhas veias. Dinheiro. Milhões.
Ele se afastou com a mesma elegância com que chegou, deixando para trás um rastro de perfume amadeirado e uma semente de tentação. Eu encarei o cartão, o logo do clube parecendo piscar para mim, como um convite ao abismo.
Eu me lembrei da minha mãe. O cheiro de bolo de fubá recém-assado invadia a cozinha, a luz do fim de tarde dourando seus cabelos enquanto ela me contava histórias. Eu, uma menina de tranças, sentada no banquinho, absorvendo cada palavra. "Minha filha, você vai longe. Vai ser uma mulher forte, independente. Nunca se curve a ninguém." A voz dela, naquela memória, era cheia de vida, cheia de esperança. Ela sempre me ensinou a ser digna, a lutar com a cabeça erguida. E agora, eu estava cogitando me curvar, não a um homem, mas à necessidade, ao desespero. O senso de dívida emocional que eu tinha por ela, por tudo que ela fez por mim, era um peso esmagador. Eu faria qualquer coisa. Qualquer coisa.
A noite chegou, arrastando consigo uma nova camada de ansiedade. Fernando me havia convocado para um jantar corporativo com investidores. Era uma honra, ele disse. Para mim, era mais uma tortura. Me vestir, maquiagem, o vestido justo que ele havia "sugerido", tudo contribuía para a sensação de que eu estava me preparando para uma performance.
No restaurante, um lugar exclusivo com luzes baixas e uma atmosfera carregada de poder, Fernando estava em seu elemento. Ele flertava com os empresários, negociava sorrisos e apertos de mão, mas seus olhos sempre voltavam para mim. Uma vez, enquanto eu conversava educadamente com um dos investidores japoneses, senti seu olhar me queimar. Ele se aproximou, sua mão repousando na minha cintura por um breve segundo, um toque possessivo que me fez enrijecer.
"Não se misture demais, Ana", ele sussurrou em meu ouvido, a voz rouca, quase um aviso. "Você está aqui para mim."
A ambiguidade de suas palavras me confundia. Era ciúme? Controle? Ou apenas mais um jogo de poder? Eu não sabia. Mas a tensão entre nós era palpável, uma linha invisível, mas eletrizada, que nos conectava. Seus olhos me seguiam, um misto de avaliação e algo mais escuro, um desejo que ele lutava para esconder sob a fachada de chefe autoritário. Eu sentia o calor de seu corpo quando ele passava perto, o cheiro dele me invadindo, e por um instante, a linha entre a repulsa e a atração se desfazia.
Depois do jantar, no carro a caminho de casa, o silêncio era tão pesado quanto as minhas preocupações. Ele não falou nada, apenas me observou pelo retrovisor de vez em quando, um olhar que eu não conseguia decifrar. O ar no carro estava carregado com o cheiro da sua colônia, misturado ao do meu próprio perfume, uma fragrância que eu mesma havia escolhido, mas que agora parecia estranha, artificial.
Quando cheguei em casa, o apartamento estava silencioso. A luz fraca do abajur na sala de estar iluminava o rosto adormecido da minha mãe no sofá. Ela parecia tão pequena, tão frágil. Ver as linhas de preocupação marcadas em sua testa, a respiração lenta e irregular, fez meu coração se apertar. Eu faria qualquer coisa para vê-la bem de novo.
Em cima da mesinha de centro, um envelope discreto me esperava. Eu o peguei, o papel liso e escuro sob meus dedos. Era o cartão de Damien. O cartão do clube. E havia um pequeno bilhete, com uma caligrafia elegante: "Se mudar de ideia, esse número atende 24h. D."
Meu reflexo no espelho do banheiro me encarou de volta aos 29;anos, eu era uma mulher que chamava a atenção, e sabia disso. Minha pele negra era um tom de chocolate, e as marcas do bronzeado de verão ainda se destacavam. As curvas do meu corpo curvilíneo e sensual, acentuadas por um bumbum com silicone, eram moldadas pelo terninho sensual de cor clara que eu usava. Meus cabelos chocolate, cortados em um Chanel de bico curto e liso, estavam soltos e bem cuidados, balançando levemente a cada movimento. Os olhos, contornados por uma maquiagem pesada rosa e um delineado marcante, fixavam-se na tela. Nos lábios, um batom Ruby Woo vibrante contrastava com a palidez do meu rosto. As unhas postiças decoradas. Meus olhos estavam vermelhos e cansados, mas havia uma nova intensidade neles, um brilho sombrio. A maquiagem borrada me dava um ar de quem havia travado uma batalha. Eu era Ana, a secretária dedicada, a filha amorosa. Mas quem eu me tornaria? Até onde eu estaria disposta a ir? A linha era tênue. E eu sentia que estava prestes a atravessá-la. A dúvida me corroía, mas a imagem da minha mãe, frágil no sofá, me empurrava para o desconhecido, para o abismo. Eu estava prestes a cair.
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Atualizado até capítulo 23
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