MULHER COM MEL E LIMÃO

MULHER COM MEL E LIMÃO

À PRIMEIRA E INCOMPLETA VISTA

Cheguei a Florânia por volta das 23:30h de uma sexta-feira e me lembro claramente de que, ao parar à frente do hotel, e tendo que esperar que abrissem o portão, desci do carro e pisei no solo daquele município. Puxei forte o ar que ali circulava e tive uma grande sensação de muita felicidade, como se algo me dissesse que ali, sim, eu seria feliz de verdade, algo como nunca pensei e nem sonhei na minha vida. E eu não sabia o porquê daquela sensação, pois, para mim, com o emprego que tinha, que me proporcionava alto poder aquisitivo, eu já era muito feliz, e não conseguia atinar para outro conceito de felicidade.

[Funcionário do hotel] - Boa noite, senhor. Desculpe-me pela demora. Algum funcionário do dia deixou as chaves da garagem fora do lugar habitual.

[Eu] - Tudo bem. O que são cinco minutos comparados com as mais de seis horas de atraso na minha viagem? Houve um problema na estrada...

[Funcionário do hotel] - Eu sei. Foi comigo que o senhor conversou.

[Eu] - Ah, então é você que é Silas?

[Silas] - Sim. Sou eu mesmo.

Embora eu estivesse ali como hóspede e Silas como funcionário, a nossa amizade fluiu num instante, como se já houvesse tempo que nos conhecêssemos. E foi muito estranho para mim, porque eu não era de me relacionar com pessoas que não pertencessem ao meu mundo corporativo. Eu era estranhamente elitista.

[Silas] - Senhor Julião, o restaurante já encerrou. Se o senhor estiver com fome, eu dou um jeito de pegar refeição em outro restaurante. Mas, se quiser também, tem uma cozinheira nossa preparando uma comida para nós mesmos e...

[Eu] - Estou sim com fome. E posso comer com vocês.

Eu estava tomando decisões que eu mesmo estranhava. Porque, acreditem, até minutos antes eu era e fazia questão de ser presunçoso, vaidoso, e jamais sentaria à mesa com funcionários de hotel numa refeição improvisada.

[Silas - contente] - Então o senhor pode deixar que subirei com as bagagens. É questão de poucos minutos para o jantar ficar pronto.

Durante o jantar, notei que Silas e Maria mantinham intimidade para além do coleguismo de trabalho. Não se resistiam e, ainda assim, tentavam esconder que havia um envolvimento afetivo. Vi rastros que indicavam que antes de minha chegada o comportamento deles não se limitava a olhares e sorrisos cínicos e furtivos, até por que aquele fogo indisfarçavel que eu via arder nos dois e ainda aquela calmaria que reinava na hospedaria, tornava inevitável que algo de muita sensualidade tivesse acontecido. Depois eu vi que havia uma calcinha sobre uma cadeira deslocada para a cozinha do restaurante. Silas, quando deixou minhas bagagens no apartamento, havia descido antes de mim, mas teve que providenciar um cobertor para um hóspede, atrasou-se e chegamos juntos à cozinha. E Maria, que não sabia de minha companhia, esperando somente pelo parceiro, não se recompôs. Assim, percebendo que eu havia decifrado tudo e, achando que eu faria algum juízo de valor, quiseram me dar explicações.

[Maria - toda sem jeito] - E o senhor, por quanto tempo pretende ficar?

[Eu] - No hotel eu não sei, mas em Florânia pretendo morar por algum tempo

[ Silas] - Pedimos desculpas, senhor Julião.

[ Eu] - Não se preocupem comigo, mas se é algo que ninguém pode saber, tomem mais cuidado.

[Maria - ainda sem graça] - Se o senhor quiser mais dessa carne, ainda tem naquela panela.

[Eu] - Se não for inconveniente, eu quero sim. Na verdade, não me lembro de ter gostado tanto de comer um pedaço de carne. Silas disse que você é cozinheira...

[Maria] - Faço o café da manhã.

[Eu] - Você sabe que nas redes sociais do hotel os melhores comentários são sobre o café da manhã?

[Maria] - Sei. A gente recebe os parabéns.

[Eu] - Que bom. Vocês sabem de algum lugar aonde eu possa correr pela manhã?

[Silas] - O senhor pode correr nessa avenida que passa na frente do hotel. Sugiro que corra para o lado direito.

[Eu] - Certo. Vou subindo para o apartamento.

[Silas] - Quer que eu lhe acorde?

[Eu] - Não precisa. Eu quase não durmo. Ainda vou ler bastante antes de adormecer.

[Silas] - Se em algum momento quiser conversar, estaremos por aqui.

[Eu] - Certo.

Pela manhã saí do hotel e dei um corridinha. Eram seis horas e, pelas oito, embora fosse um sábado, já tinha compromisso na empresa. Na volta, cansado, porque havia mais de duas semanas que não fazia prática esportiva, sentei-me num banco de uma pracinha relativamente perto do hotel. Pedi uma água de coco e a minha intenção era beber somente uma, porém, algo inesperado aconteceu comigo naquele instante. Eu estava de cabeça baixa devido a minha forma desengonçada de sugar a água pelo canudo, quando ouvi uma voz rouca e muito feminina.

[Dona da voz] - Bom dia Seu Júlio.

[Julinho - o rapaz da água de coco] - Bom dia, filhinha. Tudo bem?

A moça abriu a barraca de verduras, entrou e fechou a porta sem se voltar para mim. Não vi o rosto. A roupa, apesar de muito simples, era vestida com muito esmero, numa perfeita harmonia entre as peças e entre o conjunto e o corpo. Aliás, aquele corpo, sem dúvida, foi o desenho feminino mais fascinante que já vi. Tentei descrever, mas sucumbi, pois nenhuma das tentativas me fez sentir fiel a tanta beleza. Tomei mais duas águas de coco no intuito de vê-la sair, mas ela não saiu. Voltei para o hotel com a imagem incompleta da menina, mas com a certeza de que minha vida havia se transformado ainda mais profundamente do que já tivera desde que cheguei em Florânia.

[Silas] - Não vai dar tempo nem de tomar um cafezinho, senhor?

[Eu] - Se não for lhe causar embaraço na empresa, Silas, pode me chamar de Julião.

[Silas] - Certo. Se implicarem com isso eu digo que foi o senhor que exigiu que o chamasse pelo nome. Mas, e o cafezinho, você não quer?

[Eu] - Acho que dá tempo. Quero sim.

[Silas] - Então cuide aí dos últimos detalhes enquanto vou buscar seu café. Quer alguma coisa de acompanhamento?

[Eu] - Somente o café mesmo. Sem leite e sem açúcar.

Estava me sentindo pronto para impressionar meus novos colegas e superiores, já que no mundo corporativo, em que as metas dão o grau de protagonismo aos atores, o sujeito tem que se apresentar já mostrando que é capaz de caminhar pela selva. Mas, enquanto esperava pelo cafezinho de Silas, senti que impressionar e mostrar o quanto eu era profissional e arrojado e ser elogiado pelos meus pares, já não parecia tão importante quanto era nos dias anteriores. Sorvi o cafezinho com muito gosto e, antes de sair, olhei para Silas.

[Eu] - Diz uma coisa, Silas, você conhece uma garota que trabalha numa banca de verduras ao lado de Julinho do coco?

[Silas] - Conhecer, não, mas sei que o nome dela é Eloá e o dono da barraca é tio dela. Seu Davi.

[Eu - sorridente] - Eloá!

[Silas] - Ih! Pelo jeito gostou. Mas ela é linda mesmo. Se quiser pego pelos cabelos e trago aqui de bandeja para o senhor.

[Eu] - Até gostaria, meu nobre, mas não seria fácil. O cabelo dela é muito curto.

[Silas] - Lindamente curto, se me permite?

[Eu] - Quem sou eu para permitir ou não?

[Silas] - Pois saiba que já vejo o casal formado.

O dia foi muito profícuo. Sucesso total na minha apresentação, passando muita segurança e boas impressões. Pediram-me para expor pontos de vista acerca dos negócios em que a agência estava envolvida e fazer paralelo com o que eu vinha trabalhando na minha agência anterior. Após meus cerca de vinte minutos de apresentação, mostrando que tinha total conhecimento da atuação e tendências da minha nova agência e dando sugestões que certamente trariam melhorias, percebi que ganhei admiradores. Expuseram-me a debate e a sabatina e eu me saí muitíssimo bem. Tanto que me foi oferecida uma carteira de trabalho de maior responsabilidade do que a que estava programada no momento em que se concretizou a minha transferência para Florânia.

Um dia antes, aquilo era tudo que eu precisava para me sentir o homem mais feliz do mundo, porém, como já foi pontuado, algo havia mudado flagrantemente na minha vida e, ao longo daquela manhã, mesmo com toda agitação, aquele lindo corpo, visto somente pelas costas, não se ausentou do meu pensamento

Após o evento e de uma rodada de vinho, azeitona, palmito e queijo, voltei para o hotel. Parei o carro nas imediações daquela pracinha, caminhei até a barraca de verduras, mas ela não estava lá. Cheguei bem próximo para ter certeza, mas era verdade, ela não estava. Estava somente o tio e, depois, Julinho se aproximou.

[Julinho] - Eu não gosto de me meter na vida alheia, Seu Davi, mas o salário que ela pediu é justo. Trabalha aqui feito uma condenada, veste sua camisa. Se o senhor perder Eloá, vai se arrepender amargamente. Se ela quisesse trabalhar comigo eu pagaria mais do que isso que o senhor não quer pagar.

[Seu Davi] - Eu até concordo com você, Julinho, mas ..

[Julinho] - É uma menina que todo mundo considera e considera todo mundo

[Seu Davi] - Se ela me considerasse não estaria me colocando na parede desse jeito.

[Julinho] - Mas ela está certa, Seu Davi.

Afastei-me dali e, cerca de meia hora após ter chegado ao hotel, Silas, que estava de folga, ligou para mim.

[Silas] - E aí, Julião, como está de solidão na cidade das flores?

[Eu] - Tranquilo. Tomei duas doses de vinho, mas acho que vai dar para ler uns artigos.

[Silas] - E eu estava pensando em lhe convidar para passar o final de semana aqui conosco.

Achei que não me sentiria à vontade, pois, mesmo com toda transformação que evidentemente eu passava, ainda era manifesto o meu preconceito em relação ao que Silas representava socialmente. Entretanto, fui afetado pela nobreza do rapaz em ter se preocupado com a minha solidão e aceitei o convite como se nem tivesse hesitado. Acho que menos de uma hora depois eu já estava comendo uma carne com a mãe, irmãs e amigos de Silas.

Eu estava sentado num sofá com a mão direita dentro das mãos de Dona Eugênia, mãe de Silas, que, naquele momento, exaltava a minha simplicidade. Eu quis dizer a ela que ainda estava aprendendo, mas Silas apareceu e me puxou pelo outro braço.

[Silas] - Depois, talvez, eu trago ele de volta, mãe.

[Dona Eugênia] - Não se preocupe. A história dele nesta casa só está começando.

[Silas] - Eloá vai me desculpar, mas vou lhe apresentar a uma pessoa.

Era uma jovem chamada Linda, que fazia jus ao nome e que discordava de tudo que eu dizia. Demonstrou antipatia gratuita e ainda só me chamava de Senhor Certinho. Todavia, ainda que sob pretexto de pegar uma bebida eu tivesse tentado me afastar, ela permaneceu ao meu lado. E, mesmo ao meu lado voluntariamente, ela permanecia amarga e me contradizendo até no que eu concordava com ela.

Em determinado momento, porém, como se houvesse virado uma chave, ela me pediu desculpas por algo que havia dito e que eu nem havia entendido ou prestado atenção, então, a partir daquele instante, nosso diálogo se humanizou e, aos meus olhos, ela se transformou em outra pessoa, completamente lúcida e muito interessante.

Por volta das 21h, também por efeito de muita bebida alcoólica, estávamos nos beijando. Lembro-me de Silas ter pedido as chaves e eu até pensei que precisasse do meu carro para buscar mais bebidas, mas foi somente para estacioná-lo nos limites do seu terreno. Não as devolveu e me explicou depois que foi medida de precaução para que eu não saísse com Linda naquela situação etílica.

Dormimos juntos naquela noite. O próprio Silas cuidou de nos acomodar. Não tenho ideia do que aconteceu dentro daquele quarto, mas sei que acordei e vi que estávamos despidos e que havia roupas espalhadas por todo o cômodo. Cuidei de me certificar se ao menos tínhamos fechado a porta. Estava, sim, trancada, e por dentro.

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