NA CASA DE DON'ANA

Estávamos os quatro na casa de Don'Ana: eu, Eliot, Valadares e Silas. Fizemos questão de, logo na chegada, conhecer a tal de Dona Ana. Pensávamos que fosse uma senhora, mas era jovem. Uma jovem lá com seus vinte e sete anos e muitas histórias boas e ruins para contar

Ela, porém, entendendo logo que o teor da nossa visita não passava pelo desejo de comercializar afetos, cuidou de nos entreter com a sua própria atenção e de nos fazer gastar dinheiro de outra forma, já que não teria o nosso investimento em programação sexual. Sentou-se conosco, embora tivesse que se levantar a cada instante para resolver algum probleminha ou até para dar boas vindas a algum outro cliente.

Quase todos que apareciam por lá queriam, ao menos, um dedinho de prosa com ela, um minutinho que fosse de sua atenção e, por isso, inteligentemente, ela se conduzia pelo salão, mesa a mesa, muitas vezes levando consigo uma de suas meninas, à qual incumbia de continuar encantando o cliente à mesa da qual ela, Dona Ana, tivesse que se levantar.

Conosco, porém, foi diferente. Demonstrou que queria ficar à nossa presença o tempo todo. Sentiu vontade de estar sempre ali entre nós quatro, trocando experiências, como se tivesse atinado para muita química entre nós cinco. Na verdade, seis, porque logo em seguida convidou Elvira para nossa mesa. Elvira era uma mulher com seus mais de quarenta anos e, portanto, um tanto mais velha que todas as outras. Era muito bonita, dessas que o artista fez questão de esculpir com material imperecível e, assim, não parecia sofrer ação do tempo.

[Ana] - Ah, meus queridos, Elvira para mim é tudo, é a minha fortaleza. Sem ela isso aqui viraria uma zona. Aliás, zona eu sei que é, mas estou me referindo a bagunça. Ela é meu porto seguro, e quando estou para baixo, é ela que faz o papel da mãe que tive por tão pouco tempo.

[Eu] - Eu já tive uma Elvira dessas na minha vida. Foi logo quando sai da casa de meus pais. Morei de aluguel em uma de suas casas, mas ela não deixava que eu pagasse o aluguel, muito menos que eu desse um espirro. Cuidava de mim como se eu fosse um filho querido. Tenho saudades de Dona Esperança.

[Ana] - Então você bem sabe do que estou falando, Eliot.

[Eu] - Na verdade, Dona Ana, meu nome é Julião. Eliot é o meu amigo aqui.

[Ana - voltando-se para Eliot] - Desculpem-me. Vivo me atrapalhando. Mas, diga-me uma coisa, Eliot: seus pais gostavam tanto assim do poeta estadunidense?

[Eliot - boquiaberto] - Não é à toa que a senhora é proprietária de tudo isso aqui, hein! Muita gente é curiosa com meu nome e sempre me pergunta se meu pai gostava de Os Indomáveis, um filme antigo que tinha o personagem Eliot Ness, mas essa pergunta sobre o poeta, ninguém jamais tinha feito.

[Valadares] - Eu mesmo estou incluído nesse grupo dos que perguntam sobre Eliot Ness, porque o filme é do meu tempo, mas sequer já ouvi falar de poeta norte-americano chamado Eliot.

[Ana] - Eu conheço muito bem a obra de T.S. Eliot, não somente porque faço faculdade de letras, mas, além disso, porque pretendo fazer mestrado e minhas pesquisas estarão dentro da bibliografia desse poeta, então, como já trago essa certeza, já venho adiantando muitas coisas.

Enquanto ela falava, teria sido interessante se alguém tivesse nos filmado, pois a contemplávamos embasbacados. Aquela mulher que estávamos conhecendo naquele momento, dentro de uma casa de prostituição, falava majestosamente sobre literatura e tantos outros temas intelectuais, deixando-nos daquela forma.

[Eu] - Dona Ana, como a senhora lida com tudo isso? De um lado, proprietária de um estabelecimento que a sociedade discrimina, de outro, tão inserida na elite pensante, já que cursar uma universidade ainda é prestígio para poucos. Já teve algum caso de ser importunada pelo fato de exercer essa atividade?

[Ana] - Diria que eu sabia que não passaria ilesa por tudo isso. E, justamente porque sabia, hesitei tanto para cursar uma faculdade, entrando somente aos vinte e cinco anos. É difícil, Julião. A cidade é pequena e todo mundo se conhece de alguma forma. Mas a gente vai se anestesiando e aprendendo a reagir bem diante das adversidades. Não gosto de contar sobre fatos ocorridos, mas foram muitos e, ainda assim estou aqui. É muito importante isso de não se deixar ficar no caminho

[Silas] - Eu lido diariamente com a questão da negritude. Também faço faculdade. Estudo nutrição. Percebi algumas vezes, em algumas disciplinas, que, para que eu tirasse um dez, teria que fazer uma prova mais brilhante que a de outros alunos com a mesma nota

[Eu] - Galera, Silas já tem uma proposta de emprego como nutricionista. Vai dar tchau ao ramo de hotelaria e migrar para o hospitalar, não é, meu amigo?

Silas sorriu confirmando e mostrando seu orgulho.

[Ana] - Esse negócio de ter prova corrigida com mais rigor eu também já senti o gosto amargo. Mas, sem falsa modéstia, eu driblei essa questão e hoje me destaco na faculdade, não somente porque sabem que sou prostituta, mas também porque, já no segundo ano consecutivo, fui eleita melhor discente de todo o curso. [pegou na mão de Elvira] - Mas de tudo isso, gente, eu devo boa parte a essa minha guardiã aqui, essa mulher que eu diria que até se anulou para que eu seguisse em frente, não que eu quisesse esse sacrifício dela, mas ela fez e continua fazendo isso.

[Elvira] - Mas não se esqueça, querida, do papel fundamental que algumas dessas meninas exercem na sua missão.

[Ana] - Claro! Verdade, Elvira! Mas você é a minha mola propulsora.

[Elvira] - Ela fala assim, mas é ela o anjo na vida de todas nós. Depois que a mãe morreu, eu ainda sem saber do rumo que daria a minha vida, ficamos todas desnorteadas, até por que Ana era ainda novinha, com a cabeça em outro destino, que era também o desejo de Cristina. Mas vocês pensam que a menininha sentou e chorou? Não. Abraçou a nós todas e tomou nossas rédeas. Hoje eu costumo dizer que ela é uma verdadeira resgatadora de dignidade.

[Valadares] - Que maravilha, hein! E a senhora, Dona Elvira, pode nos contar como chegou aqui?

[Ana] - Essa história é longa. Enquanto isso eu vou conversar com Eliane. Parece que ela está com algum problema. Cuide bem desses rapazes, Elvira.

[Elvira] - Pode deixar comigo, querida. Não se despeça deles ainda, porque vão amanhecer aqui com a gente, não vão?

Ana saiu e ali já pude constatar que tinha um olhar diferenciado para o nosso amigo Valadares.

[Elvira] - Eu era uma mulher feliz, mãe de duas crianças lindas, dona de casa, veículos na garagem..., mas um dia meu devotado marido me mandou levar um carro para a revisão. Passei a tarde na concessionária, recebendo cantada de um jovem gerente e acabei não resistindo aos encantos daquele safado. Fizemos amor ali mesmo, numa salinha de espera.

[Silas] - E como seu marido ficou sabendo?

[Elvira] - Eu acho que todo mundo que estava na concessionária, pelo menos na parte da oficina, viu o que aconteceu. E quando ele me colocou contra a parede, não tive escolha senão confessar. Depois que saí de casa tentei retomar minha vida profissional, mas ele me perseguia e obrigava meu empregador a me desempregar. Contratou gente para me perseguir o tempo todo e até me agredir. Até que um dia, por acaso, conheci Cristina, que me livrou de uma agressão e incitou populares a perseguirem o meu agressor. Foi aí que Otávio perdeu o meu rastro e Cristina me trouxe para Florânia. De imediato eu não podia me empregar para não correr risco de ser encontrada, então fui ficando e acabei me adaptando a esse lugar.

Após a narrativa, Elvira se mostrou tão abatida que me senti na obrigação de reanimá-la.

[Eu] - Há quanto tempo a senhora não dirige?

[Elvira] - Doze anos.

[Eu] - Tome aqui as chaves do meu carro. Dê uma volta por onde a senhora quiser.

Olhou-me em silêncio por cerca de vinte segundos.

[Elvira] - Poxa, rapaz! Quer me matar de emoção? Posso mesmo?

[Eu] - Sim. Claro.

[Elvira] - Olha, rapaz, deixa eu lhe falar uma coisa: a gente é feliz aqui dentro, sim, porque temos uma às outras, e ainda temos Ana. Mas basta pisarmos um pé fora dessa casa que tudo muda e já não somos pessoas dignas de respeito e consideração. Até mesmo os homens que vêm aqui e se divertem conosco, já não são os mesmos quando nos encontram lá fora. Por tudo isso, esse seu gesto de respeito mexe muito comigo. Jamais vou esquecer. Muito obrigada.

Abri uma de suas mãos e coloquei as chaves. Levantou-se, atravessou o salão e tomou a rua. Entrou no carro que indiquei, funcionou e saiu com muita elegância. Retornou após uns quinze minutos, devolveu-me as chaves e tornou a desabar em prantos.

Ana, já a par de tudo, apareceu e voltou a sentar-se conosco. Também me agradeceu por Elvira.

[Ana] - Ah, que bom. Elvira lavou a alma. Não vou mentir, se eu tivesse metade da habilidade dela eu pediria para também dar uma voltinha.

[Eliot] - Você não dirige?

[Ana] - Já fiz autoescola, tirei a carta e tudo, mas hoje não sei nem se conseguiria tirar o carro do lugar.

[Eliot] - Mas, pelo que vi, Dona Elvira lhe sairia uma ótima professora. E ainda, pelo que entendi, a habilitação dela está valida.

[Elvira] - Pois é, no ano passado Ana me deu isso de presente, a renovação de minha carteira de habilitação..

[Ana] - Você falou uma verdade, Eliot. Elvira seria uma ótima professora. Falta-me, pois, o carro. Quem sabe em breve?

[Eu] - Então vocês duas que se virem, porque meu carro vai ficar aqui com vocês.

Todos me olharam, atarantados com a minha decisão.

[Elvira] - Você é louco, doido? Por onde andou que nunca veio aqui antes?

[Ana] - Verdade, Elvira. Esse é dos nossos e não estava entre nós. Aliás, vocês quatro são especiais.

[Valadares] - Gostei de sua atitude, meu nobre, mas só não estou entendendo uma coisa e talvez eu já esteja sendo muito repetitivo: o que aconteceu com o funcionário que vinha para nossa agência, com fama de vaidoso, arrogante, ambicioso e antissocial? Pergunte a Eliot se os nossos auxiliares já não estavam tristes com a sua vinda? Porque o perfil que foi traçado para você era preocupante até para nós que não estaríamos sob sua subordinação.

[Eliot] - Verdade. E mesmo quando a gente almoçou junto a primeira vez, Julião, eu estava muito desconfiado. Depois que eu percebi que você veio trocado.

[Eu] - E podem acreditar: Eu vim disposto a me tornar ainda mais linha dura.

[Ana] - Ah, então quer dizer que estamos diante de um executivo que veio a Florânia em busca de poder e se transformou num mero emprestador de carro para prostituta? Ah, assim eu me apaixono.

[Eliot] - Toda essa transformação é porque já tem alguém ocupando essa vaga, Dona Ana.

[Eu] - Vocês estão aí falando e eu aqui pensando. Realmente, há menos de vinte dias eu era outra pessoa. E se quando pisei na cidade e respirei fundo, senti algo estranho, mas estranho ainda fiquei quando vi a cintura, as costas e o pescoço daquela menina. Perdi o rumo.

[Elvira] - Você ganhou o rumo, querido. Segue o amor, que é incomparavelmente melhor. Não importa se maternal, fraternal ou sensual, mas somente o amor justifica a existência. Não importa iate ou carro de luxo no leito de morte, mas, o amor, com certeza, há de mexer no coração do moribundo.

[Ana] - Essa é Elvira! Mas a gente pode saber o nome dessa sortuda?

[Eliot] - Eloá.

[Ana] - É de Florânia?

[Eliot] - Sim. Ela é sobrinha daquele verdureiro, Davi.

As mulheres se entreolharam.

[Ana] - Ah, Eloá! Que menina de sorte!

[Elvira] - Mas, convenhamos, Aninha. Ela merece.

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