Despertei-me de um sono pesado, sem sonhos. E seria capaz de pensar que dormi por décadas, mas não, eram ainda oito horas da manhã. Para um domingo e, ainda, para quem, às três, estava na Casa de Don'Ana, definitivamente, acordei muito cedo. Na verdade, como já disse, eu sempre dormi muito pouco. Três horas de sono por dia já eram suficientes para mim.
E pensar que só conseguimos sair da Casa de Don'Ana àquela hora porque Silas nos chamava, a todo instante, para irmos embora, alegando que iria trabalhar cedo e precisava dormir nem que fosse duas horinhas.
Levantei-me e cuidei de comer alguma coisa. Lá estava Maria, com seu corpanzil de mais de metro e oitenta, rosto de sarnas e cabelos ruivos. Não era muito bonita, na minha concepção, mas eu podia reconhecer que por onde quer que andasse teria sua legião de pretendentes.
[Maria] - Vamos, vamos, Aurinha, ainda tem muitos hóspedes para descer e têm bandejas vazias. Vamos, que você está muito paradinha. Eu, que estou aqui desde ontem, não pareço assim tão cansada.
[Aurinha] - Mas eu acho que você deve ter tirado uma sonequinha.
[Maria] - Aonde? Que nada. Eu nunca durmo aqui no trabalho. E a prova disso é que, todo dia quando você chega, já está tudo prontinho. E o senhor nem dormiu também, não foi?
[Eu] - O que eu dormi foi suficiente, deu para descansar, Maria. Quando eu cheguei, de madrugada, vi que você estava aí alerta, descascando não sei o quê.
[Maria] - Você ouviu, Aurinha?
[Aurinha] - Claro. Não sou surda.
[Maria] - Mas eu vi o senhor chegar também. Eu não lhe chamei para tomar um cafezinho porque poderia não ser de bom tom.
[Eu] - Foi até bom, porque acho que eu não iria querer. Mas agora eu quero. Tem inhame aí?
[Aurinha] - A bandeja está vazia, mas eu vou encher agora.
[Eu] - Pronto.
[Maria] - Quer que eu frite alguns ovos?
[Eu] - Eu estava pensando em pedir, mas fiquei sem jeito, porque, também, só gosto de ovo quase cru e servido logo que sai do fogo, se demorar mais que cinco minutos, mais ou menos, ja não quero. Eu sou muito chato.
[Maria] - Espera só um minutinho que tem uma moça ali que sabe fazer exatamente desse jeito.
Ela foi, conversou com outra cozinheira e voltou.
[Maria] - O senhor está dizendo que é muito chato, mas, até agora, parece bem o contrário.
[ Eu] - É que ultimamente eu tenho aprendido que ser bom é muito mais lucrativo. Traz muito mais dividendo e, portanto, alegria. Mas, acredite que nos últimos anos, não sei exatamente a partir de quando, eu vinha sendo uma pessoa completamente diferente. Não que eu saísse agredindo pessoas por aí, mas elas, para mim, só valiam o que podiam me proporcionar. Eu passava pelas ruas, entrava nos lugares, mas só enxergava pessoas que significassem valores materiais.
[Aurinha] - Nossa senhora. Tinha o que no coração?
[Maria] - Já vi pessoas assim, mas o que nunca vi foi alguém se transformar tanto de uma hora para a outra.
[Eu] - Pois é. Acho que a responsável de tudo isso chama-se Florânia. Creio que já não posso mais ir embora daqui ou então terei um retrocesso.
[Aurinha] - Ah, ir embora por quê? Não vá, não. Fique aqui de uma vez e sempre.
[Maria- gargalhando] - Fica na tua, Aurinha. Se comporte.
[Aurinha - também rindo] - Está certa. É mesmo. Tenho que corrigir minha postura.
[Eu - fingindo-me alheio] - Sim, e Silas. Não veio hoje?
[Maria] - Silas? Não sei. Silas trabalha hoje, Aurinha?
Lembrei-me de que as coisas entre Silas e Maria eram hermeticamente fechadas. Então vi que quase lanço uma ideia errada. E Maria me olhou como se quisesse me dizer que aquele assunto não seria bem-vindo naquelas circunstâncias.
[Aurinha] - Não. Seu Silas só volta a trabalhar amanhã à noite. Você esqueceu, Maria?
[Eu] - Eu perguntei porque achei que aqui vocês soubessem da escala de todo mundo.
[Aurinha] - Ah, mas eu sei mesmo o horário de todo mundo. Ela também sabe, mas deve ser que o senhor, com esse sorriso largo e bonito, provocou esse branco nela.
[Eu] - Então vou embora antes que ela fique com amnésia total e permanente. Ela vai precisar de muita lucidez, principalmente agora que os hóspedes resolveram descer de vez para o café da manhã. Olhem aí. Bom dia a vocês. Agradeça aí à menina do ovo
[Maria] - Agradeço, sim.
Entrei no quarto e peguei o celular com a intenção de ligar para Silas. Hesitei um pouco por causa do horário, pois, para quem dormiu tarde como a gente, ainda era muito cedo para estar acordado. Mas vi que, ao contrário, ele já vinha tentando entrar em contato comigo havia tempo. Então liguei.
[Eu] - Alô. Diga aí, parceiro.
[Silas] - Acordou agora? Já faz tempo que estou ligando.
[Eu] - Nada. Faz tempo que estou no restaurante do hotel. Estava lá conversando com Maria e Aurinha.
[Silas] Ah, então conversou muito. Aquelas duas juntas, se o restaurante não estiver movimentado, conversam mais do que radialista. Aurinha não deu em cima de você, não?
[Eu] - Não. Soltou umas piadas, mas foi bem comportadinha. Eu fui quem falou demais. Perguntei a Maria por você, cara. Se você tivesse visto como ela ficou sem jeito!
[Silas] - É porque, também, ela é muito assustada. Eu sou funcionário e qualquer pessoa pode perguntar por mim. Se bem que deve ter pesado o fato de Aurinha, que é prima do marido dela, estar presente.
[Eu] - Como é, rapaz? Aurinha é prima de quem? Maria é casada? Você está se relacionando com uma mulher casada, cara?
[Silas] - Ah, cara, somente você vindo aqui para eu explicar melhor tudo isso. Minha mãe pediu para te chamar. Talvez eu não fique aqui porque tenho que resolver algo que também te explico depois. Mas venha, que vai rolar aquela moqueca de camarão que você disse que adora.
[Eu] - Eu disse que adoro, não, cara, eu adoro mesmo. Eu vou aí, então.
[Silas] - Vem nada!
[Eu] - Vou sim, cara. Já vou me arrumar aqui. Se eu disse que vou, é porque vou. Quem mente aqui é você, cara, com aquela história da uva e a de hoje, dizendo que iria trabalhar. Estou ligado, hein! Fora o fato de estar se relacionando com mulher dos outros.
[Silas] - Fora o fato de estar me relacionando com Maria, aí, sim, sei que estou cometendo um erro muito grande, o resto do que você falou aí não me faz mentiroso. Venha logo, que tem uma irmã minha que você não conhece e ela vai ter que ir embora mais cedo.
[Eu] - Já estou indo.
[Silas] - Ah, e não me julgue, não, porque você está aí caído de quatro pela tal Eloá, mas também está de caso com Linda.
[Eu] - Verdade. Terei que resolver isso.
Cheguei por volta de onze horas à casa de Silas. Não havia muita gente como da vez anterior, mas somente o pessoal que morava nos limites daquele terreno, que comportava três casas. Dona Eugênia morava na frente com duas filhas e uma neta. Silas ocupava sozinho uma casa, por sinal, muito bem equipada, enquanto outra irmã dele, com o marido e dois filhos ocupavam a terceira moradia.
[Eu] - Onde está sua irmã?
[Luciana, irmã mais nova de Silas] - Ah, você perdeu o espetáculo. O marido dela com ciúmes, porque estávamos falando muito de você, pegou pelos braços e a levou para casa.
[Dona Eugênia] - Não digo nada, porque nos primeiros meses de namoro, Edvaldo mostrou logo que tinha esses problemas de ser ciumento e possessivo. Na época eu abri os olhos dela, mas ela quis manter fechados e se casou.
[Silas] - Não concordo com essa atitude dele, mas enquanto não passar disso ou, enquanto ela não se sentir incomodada e não pedir ajuda, eu não posso me meter, até por que, fora isso, ele é um sujeito espetacular.
[Dona Eugênia] - Isso é verdade. Mas, deixando Nara de lado, vamos para a cozinha, porque tem um camarão lá esperando Julião fazer uma moqueca.
[Eu] - Como é mesmo essa conversa, Dona Eugênia? Eu não sei nem fritar um ovo.
[Dona Eugênia] - Foi isso mesmo que imaginei. Você pensa que vai ficar morando o tempo todo no hotel, ou que por ter dinheiro para contratar uma empregada doméstica, não vai nunca precisar dessas habilidades?
[Eu] - Gostei. Vamos para a cozinha, então.
[Dona Eugênia] - Foi o que eu imaginei que você iria dizer.
Eu me lembro do exato sabor daquela moqueca de camarão, como se ainda agora eu acabasse de saboreá-la novamente. Na verdade foi a própria Dona Eugênia, auxiliada por Luciana, quem fez praticamente tudo, porém, se naquele momento ainda não me tornei capaz de elaborar um bom prato, ao menos peguei gosto pela culinária e, de lá para cá, não parei mais de aprender.
[Dona Eugênia] - Vamos tomar uma taça de vinho enquanto o fogo se encarrega de fazer sua parte?
[Luciana] - Eu topo. E você, Julião?
[Eu] - Um vinhozinho cai bem, porém, com a alegria que estou na companhia de vocês, qualquer coisa cairia bem.
[Dona Eugênia] - Ah, é mesmo? Então podemos deixar o vinho e...
[Luciana] - Mãe...
[Dona Eugênia] - Mãe, o quê, menina?
[Eu] - Deixe sua mãe falar...
[Luciana] - Ela vai querer que você tome uma bebida amargamente ruim com ela.
[Dona Eugênia] - Era a única bebida que seu pai tomava, filha.
[Eu] - Não sei que bebida é, mas se a senhora vai beber, eu também vou.
[ Luciana] - É uma tal de jurubeba aí.
[Eu] - Jurubeba? Eu não conheço. Mas também, para falar a verdade, não sou muito conhecedor de bebidas. Bebo muito pouco.
[Dona Eugênia] - Realmente, no dia que você dormiu aqui com aquela menina, percebi que você não bebeu o suficiente para ficar daquele jeito.
[Eu] - Na verdade, até os meus vinte e seis anos nunca tinha ingerido uma gota de álcool. Depois disso, comecei a ir para encontros de negócios e me sentia na obrigação de beber alguma coisa.
[Luciana] - Já aqui em casa todos nós começamos a beber muito cedo. Acho que com catorze anos eu já frequentava barzinhos. A senhora mandou Silas para algum lugar, mãe?
[Dona Eugênia] - Não. Mas eu sei onde ele está. Deixa lá, daqui a pouco ele vem. Mas cadê seu carro, Julião? Vi que chegou de táxi.
[Eu] - A senhora está perguntando por perguntar ou porque sabe de alguma coisa?
[Dona Eugênia] - Perguntei por perguntar.
[Eu] - Eu emprestei para umas amigas.
[Luciana] - Emprestou seu carro e ficou a pé?
[Eu] - A cidade é bem servida de táxi. Acho que não vou sentir falta.
[Dona Eugênia] - Tome um gole. Se não descer, não precisa forçar. Luciana mesmo não bebe isso nem sonhando. Meu marido dizia que do primeiro ao terceiro trago, ninguém aprova, mas quem passar disso, não bebe mais outra coisa.
[Eu] - Então vou enfrentar cinco goles. Depois disso, ou tomo o sexto porque gostei, ou não tomo nunca mais.
[Dona Eugênia] - Certo. Tomara que você aprove, porque estou precisando de um parceiro de jurubeba.
Não consegui tomar todos os cinco goles prometidos naquele dia. A bebida era forte, não pelo teor alcoólico, mas pelo amargo da matéria prima. Tomei dois goles antes do almoço e mais um ao final da tarde, pouco antes de ir embora. Tomei outro na noite do dia seguinte, porque Dona Eugênia cuidou de mandar para mim através de Silas. Se a intenção dela foi me viciar, não conseguiu, porém, tornei-me um apreciador comedido da bebida.
Naquele dia almoçamos felizes a moqueca de camarão. Luciana e Dona Eugênia atribuíram a mim a autoria do prato, mas elas bem sabiam que fiz muito pouco ou quase nada. Se eu já tinha muito apreço à mãe do meu amigo, terminei aquele dia de domingo com a certeza de que criamos um laço muito estreito de amizade, algo bem próximo da relação de mãe e filho. E nunca deixei de aparecer para tomar uma dose de jurubeba e conversar com ela sobre todas as coisas.
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Atualizado até capítulo 40
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