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MULHER COM MEL E LIMÃO

À PRIMEIRA E INCOMPLETA VISTA

Cheguei a Florânia por volta das 23:30h de uma sexta-feira e me lembro claramente de que, ao parar à frente do hotel, e tendo que esperar que abrissem o portão, desci do carro e pisei no solo daquele município. Puxei forte o ar que ali circulava e tive uma grande sensação de muita felicidade, como se algo me dissesse que ali, sim, eu seria feliz de verdade, algo como nunca pensei e nem sonhei na minha vida. E eu não sabia o porquê daquela sensação, pois, para mim, com o emprego que tinha, que me proporcionava alto poder aquisitivo, eu já era muito feliz, e não conseguia atinar para outro conceito de felicidade.

[Funcionário do hotel] - Boa noite, senhor. Desculpe-me pela demora. Algum funcionário do dia deixou as chaves da garagem fora do lugar habitual.

[Eu] - Tudo bem. O que são cinco minutos comparados com as mais de seis horas de atraso na minha viagem? Houve um problema na estrada...

[Funcionário do hotel] - Eu sei. Foi comigo que o senhor conversou.

[Eu] - Ah, então é você que é Silas?

[Silas] - Sim. Sou eu mesmo.

Embora eu estivesse ali como hóspede e Silas como funcionário, a nossa amizade fluiu num instante, como se já houvesse tempo que nos conhecêssemos. E foi muito estranho para mim, porque eu não era de me relacionar com pessoas que não pertencessem ao meu mundo corporativo. Eu era estranhamente elitista.

[Silas] - Senhor Julião, o restaurante já encerrou. Se o senhor estiver com fome, eu dou um jeito de pegar refeição em outro restaurante. Mas, se quiser também, tem uma cozinheira nossa preparando uma comida para nós mesmos e...

[Eu] - Estou sim com fome. E posso comer com vocês.

Eu estava tomando decisões que eu mesmo estranhava. Porque, acreditem, até minutos antes eu era e fazia questão de ser presunçoso, vaidoso, e jamais sentaria à mesa com funcionários de hotel numa refeição improvisada.

[Silas - contente] - Então o senhor pode deixar que subirei com as bagagens. É questão de poucos minutos para o jantar ficar pronto.

Durante o jantar, notei que Silas e Maria mantinham intimidade para além do coleguismo de trabalho. Não se resistiam e, ainda assim, tentavam esconder que havia um envolvimento afetivo. Vi rastros que indicavam que antes de minha chegada o comportamento deles não se limitava a olhares e sorrisos cínicos e furtivos, até por que aquele fogo indisfarçavel que eu via arder nos dois e ainda aquela calmaria que reinava na hospedaria, tornava inevitável que algo de muita sensualidade tivesse acontecido. Depois eu vi que havia uma calcinha sobre uma cadeira deslocada para a cozinha do restaurante. Silas, quando deixou minhas bagagens no apartamento, havia descido antes de mim, mas teve que providenciar um cobertor para um hóspede, atrasou-se e chegamos juntos à cozinha. E Maria, que não sabia de minha companhia, esperando somente pelo parceiro, não se recompôs. Assim, percebendo que eu havia decifrado tudo e, achando que eu faria algum juízo de valor, quiseram me dar explicações.

[Maria - toda sem jeito] - E o senhor, por quanto tempo pretende ficar?

[Eu] - No hotel eu não sei, mas em Florânia pretendo morar por algum tempo

[ Silas] - Pedimos desculpas, senhor Julião.

[ Eu] - Não se preocupem comigo, mas se é algo que ninguém pode saber, tomem mais cuidado.

[Maria - ainda sem graça] - Se o senhor quiser mais dessa carne, ainda tem naquela panela.

[Eu] - Se não for inconveniente, eu quero sim. Na verdade, não me lembro de ter gostado tanto de comer um pedaço de carne. Silas disse que você é cozinheira...

[Maria] - Faço o café da manhã.

[Eu] - Você sabe que nas redes sociais do hotel os melhores comentários são sobre o café da manhã?

[Maria] - Sei. A gente recebe os parabéns.

[Eu] - Que bom. Vocês sabem de algum lugar aonde eu possa correr pela manhã?

[Silas] - O senhor pode correr nessa avenida que passa na frente do hotel. Sugiro que corra para o lado direito.

[Eu] - Certo. Vou subindo para o apartamento.

[Silas] - Quer que eu lhe acorde?

[Eu] - Não precisa. Eu quase não durmo. Ainda vou ler bastante antes de adormecer.

[Silas] - Se em algum momento quiser conversar, estaremos por aqui.

[Eu] - Certo.

Pela manhã saí do hotel e dei um corridinha. Eram seis horas e, pelas oito, embora fosse um sábado, já tinha compromisso na empresa. Na volta, cansado, porque havia mais de duas semanas que não fazia prática esportiva, sentei-me num banco de uma pracinha relativamente perto do hotel. Pedi uma água de coco e a minha intenção era beber somente uma, porém, algo inesperado aconteceu comigo naquele instante. Eu estava de cabeça baixa devido a minha forma desengonçada de sugar a água pelo canudo, quando ouvi uma voz rouca e muito feminina.

[Dona da voz] - Bom dia Seu Júlio.

[Julinho - o rapaz da água de coco] - Bom dia, filhinha. Tudo bem?

A moça abriu a barraca de verduras, entrou e fechou a porta sem se voltar para mim. Não vi o rosto. A roupa, apesar de muito simples, era vestida com muito esmero, numa perfeita harmonia entre as peças e entre o conjunto e o corpo. Aliás, aquele corpo, sem dúvida, foi o desenho feminino mais fascinante que já vi. Tentei descrever, mas sucumbi, pois nenhuma das tentativas me fez sentir fiel a tanta beleza. Tomei mais duas águas de coco no intuito de vê-la sair, mas ela não saiu. Voltei para o hotel com a imagem incompleta da menina, mas com a certeza de que minha vida havia se transformado ainda mais profundamente do que já tivera desde que cheguei em Florânia.

[Silas] - Não vai dar tempo nem de tomar um cafezinho, senhor?

[Eu] - Se não for lhe causar embaraço na empresa, Silas, pode me chamar de Julião.

[Silas] - Certo. Se implicarem com isso eu digo que foi o senhor que exigiu que o chamasse pelo nome. Mas, e o cafezinho, você não quer?

[Eu] - Acho que dá tempo. Quero sim.

[Silas] - Então cuide aí dos últimos detalhes enquanto vou buscar seu café. Quer alguma coisa de acompanhamento?

[Eu] - Somente o café mesmo. Sem leite e sem açúcar.

Estava me sentindo pronto para impressionar meus novos colegas e superiores, já que no mundo corporativo, em que as metas dão o grau de protagonismo aos atores, o sujeito tem que se apresentar já mostrando que é capaz de caminhar pela selva. Mas, enquanto esperava pelo cafezinho de Silas, senti que impressionar e mostrar o quanto eu era profissional e arrojado e ser elogiado pelos meus pares, já não parecia tão importante quanto era nos dias anteriores. Sorvi o cafezinho com muito gosto e, antes de sair, olhei para Silas.

[Eu] - Diz uma coisa, Silas, você conhece uma garota que trabalha numa banca de verduras ao lado de Julinho do coco?

[Silas] - Conhecer, não, mas sei que o nome dela é Eloá e o dono da barraca é tio dela. Seu Davi.

[Eu - sorridente] - Eloá!

[Silas] - Ih! Pelo jeito gostou. Mas ela é linda mesmo. Se quiser pego pelos cabelos e trago aqui de bandeja para o senhor.

[Eu] - Até gostaria, meu nobre, mas não seria fácil. O cabelo dela é muito curto.

[Silas] - Lindamente curto, se me permite?

[Eu] - Quem sou eu para permitir ou não?

[Silas] - Pois saiba que já vejo o casal formado.

O dia foi muito profícuo. Sucesso total na minha apresentação, passando muita segurança e boas impressões. Pediram-me para expor pontos de vista acerca dos negócios em que a agência estava envolvida e fazer paralelo com o que eu vinha trabalhando na minha agência anterior. Após meus cerca de vinte minutos de apresentação, mostrando que tinha total conhecimento da atuação e tendências da minha nova agência e dando sugestões que certamente trariam melhorias, percebi que ganhei admiradores. Expuseram-me a debate e a sabatina e eu me saí muitíssimo bem. Tanto que me foi oferecida uma carteira de trabalho de maior responsabilidade do que a que estava programada no momento em que se concretizou a minha transferência para Florânia.

Um dia antes, aquilo era tudo que eu precisava para me sentir o homem mais feliz do mundo, porém, como já foi pontuado, algo havia mudado flagrantemente na minha vida e, ao longo daquela manhã, mesmo com toda agitação, aquele lindo corpo, visto somente pelas costas, não se ausentou do meu pensamento

Após o evento e de uma rodada de vinho, azeitona, palmito e queijo, voltei para o hotel. Parei o carro nas imediações daquela pracinha, caminhei até a barraca de verduras, mas ela não estava lá. Cheguei bem próximo para ter certeza, mas era verdade, ela não estava. Estava somente o tio e, depois, Julinho se aproximou.

[Julinho] - Eu não gosto de me meter na vida alheia, Seu Davi, mas o salário que ela pediu é justo. Trabalha aqui feito uma condenada, veste sua camisa. Se o senhor perder Eloá, vai se arrepender amargamente. Se ela quisesse trabalhar comigo eu pagaria mais do que isso que o senhor não quer pagar.

[Seu Davi] - Eu até concordo com você, Julinho, mas ..

[Julinho] - É uma menina que todo mundo considera e considera todo mundo

[Seu Davi] - Se ela me considerasse não estaria me colocando na parede desse jeito.

[Julinho] - Mas ela está certa, Seu Davi.

Afastei-me dali e, cerca de meia hora após ter chegado ao hotel, Silas, que estava de folga, ligou para mim.

[Silas] - E aí, Julião, como está de solidão na cidade das flores?

[Eu] - Tranquilo. Tomei duas doses de vinho, mas acho que vai dar para ler uns artigos.

[Silas] - E eu estava pensando em lhe convidar para passar o final de semana aqui conosco.

Achei que não me sentiria à vontade, pois, mesmo com toda transformação que evidentemente eu passava, ainda era manifesto o meu preconceito em relação ao que Silas representava socialmente. Entretanto, fui afetado pela nobreza do rapaz em ter se preocupado com a minha solidão e aceitei o convite como se nem tivesse hesitado. Acho que menos de uma hora depois eu já estava comendo uma carne com a mãe, irmãs e amigos de Silas.

Eu estava sentado num sofá com a mão direita dentro das mãos de Dona Eugênia, mãe de Silas, que, naquele momento, exaltava a minha simplicidade. Eu quis dizer a ela que ainda estava aprendendo, mas Silas apareceu e me puxou pelo outro braço.

[Silas] - Depois, talvez, eu trago ele de volta, mãe.

[Dona Eugênia] - Não se preocupe. A história dele nesta casa só está começando.

[Silas] - Eloá vai me desculpar, mas vou lhe apresentar a uma pessoa.

Era uma jovem chamada Linda, que fazia jus ao nome e que discordava de tudo que eu dizia. Demonstrou antipatia gratuita e ainda só me chamava de Senhor Certinho. Todavia, ainda que sob pretexto de pegar uma bebida eu tivesse tentado me afastar, ela permaneceu ao meu lado. E, mesmo ao meu lado voluntariamente, ela permanecia amarga e me contradizendo até no que eu concordava com ela.

Em determinado momento, porém, como se houvesse virado uma chave, ela me pediu desculpas por algo que havia dito e que eu nem havia entendido ou prestado atenção, então, a partir daquele instante, nosso diálogo se humanizou e, aos meus olhos, ela se transformou em outra pessoa, completamente lúcida e muito interessante.

Por volta das 21h, também por efeito de muita bebida alcoólica, estávamos nos beijando. Lembro-me de Silas ter pedido as chaves e eu até pensei que precisasse do meu carro para buscar mais bebidas, mas foi somente para estacioná-lo nos limites do seu terreno. Não as devolveu e me explicou depois que foi medida de precaução para que eu não saísse com Linda naquela situação etílica.

Dormimos juntos naquela noite. O próprio Silas cuidou de nos acomodar. Não tenho ideia do que aconteceu dentro daquele quarto, mas sei que acordei e vi que estávamos despidos e que havia roupas espalhadas por todo o cômodo. Cuidei de me certificar se ao menos tínhamos fechado a porta. Estava, sim, trancada, e por dentro.

À SEGUNDA E COMPLETA VISTA

A Sanit-Co era uma companhia gigante, com estabelecimentos espalhados por todo o país e por outros lugares do mundo. Pagava salários incomparavelmente altos, de forma que seus engenheiros ganhavam muito mais do que um engenheiro de qualquer construtora, bem como seus gerentes percebiam salários mais vultosos do que o de um gerente de qualquer empresa bancária. Atuava em inúmeras atividades econômicas e, a cada dia, aumentava o leque de atuações. Tinha consigo o lema de jamais demitir, com exceção de situações em que o funcionário cometesse falta grave.

Possuía um setor que tinha atuação similar a de um banco, com a função principal de viabilizar economicamente a implantação e manutenção dos inúmeros projetos e atividades da companhia. Tal setor ainda era subdividido em unidades espalhadas por toda a parte, que eram chamadas de agência. E foi nesse setor de investimento que eu estive empregado por alguns anos.

De pronto, dois sujeitos se tornaram meus amigos dentro e fora do âmbito profissional. Eliot era um individuo que, de tão alegre e brincalhão, ninguém se lembrava de que ele era um mago da contabilidade. Já Valadares era um tanto mais introspectivo. Não era meu chefe, mas era gerente e, portanto, tinha um cargo acima do meu. Eliot era casado, idolatrava Pérola, sua esposa, mas, ainda assim, era um boêmio inveterado, um verdadeiro bon-vivant. Enquanto Valadares, um pouco mais velho do que nós, era divorciado e vivia solitário em Florânia, até por que ainda nutria a esperança de ter de volta a sua família.

Estávamos os três reunidos na copa da agência tomando o velho e bom cafezinho.

[Eliot] - E então, nego, você não quer falar um pouco mais sobre a moça sem rosto que está consumindo suas ideias?

[Eu] - Você que nasceu e se criou na cidade, bem que poderia saber sobre ela e me passar informações.

[Valadares] - Opa, vejo que o rapaz nem bem chegou e já encontrou uma paixão!

[Eliot - olhando para mim com escárnio] - Se fosse somente isso, hein, nego!

[ Valadares] - Aí, aí, aí, o que esse novato já anda aprontando? Quem diria, hein?

[Eliot] - Nesses anos todos que mora aqui, Valadares, você já esteve alguma vez na Vila Tereza?

[Valadares] - Nunca. Ouço dizer que é para além de onde Judas perdeu as botas.

[Eu] - Aí é exagero.

[Eliot] - Pois é, mas esse novato aí já foi lá, dormiu e ainda conheceu uma garota.

[Valadares] - Ô, conheceu e já ficou tão apaixonado assim!

[Eliot] - Que nada. Se a paixão fosse por ela eu até entenderia, mas a que ele está apaixonado é outra que sequer sabe se tem nariz e boca, porque o rosto ele ainda nem viu.

[Valadares] - Que nada, Eliot. Aí já é você fazendo gozação!

[Eliot] - Não é gozação, não. Pergunte a ele.

[Eu - sorrindo] - Já vi que, como confidente, você é um repórter, Eliot.

[Eliot] - Que nada, parceiro. Eu e o velho Valadares somos uma dupla de muitas jornadas. Daqui nada sai. E, a propósito, seja bem-vindo para transformar a dupla em um trio fenomenal. Você vai ver que entre nós não têm besteiras, confiamos um no outro e falamos tudo abertamente.

[Valadares] - É isso mesmo, Julião.

[Eu] - Tranquilo.

[Eliot] - E por falar em Vila Tereza, tenho uma proposta de curtição para amanhã à noite. É lá no Jardim Fantasia, que é depois ainda da Vila e já faz limite com o Município de Serraria. Tem um lugar que já faz um tempinho que eu gostaria de conhecer. Acho que a hora é agora, já que o parceiro aí chegou e, em vez de se confirmar como o janota que todos pensamos que fosse, surpreendeu e é um dos caras mais legais que existe.

[Valadares] - Gostei do que você falou aí sobre Julião, mas do resto, quem disse que eu vou assim? Sei lá, esses lugares doidos que você arranja por aí, pode ser uma boca quente. De repente a gente cai num retorno, sei lá e, em vez de sentar num barzinho legal para trocar boas ideias, acaba caindo num puteiro escroto.

[Eliot] - Pior que o lugar de que estou falando é um puteiro mesmo, mas não é escroto, não. É um lugar chamado Casa de Don'Ana. Dizem que somente de chegar e conhecer a dona já terá válido a pena. Dizem que é uma pessoa espetacular e que as meninas também são excelentes.

[Valadares] - Vá sozinho, meu caro, porque essa onda de frequentar puteiro não é comigo, não.

Naquele instante percebi que, realmente, eu estava num processo de autodesconstrução total, em que já não me reconhecia, porém, para minha maior surpresa, eu estava gostando cada vez mais de mim, e do meu novo jeito de ser, porque via meu espírito se tornar cada vez mais aventureiro e, assim, não foi surpresa aquela decisão de fazer compromisso com Eliot.

[Eu] - Pode contar comigo, meu nobre. Aliás, vou consultar um amigo do hotel e se ele estiver de folga, pode contar com ele também. Iremos nós quatro, não é, Valadares?

[Valadares] - Que maluquice é essa, Julião? Onde está o rapaz sério que nos deu aquela palestra no penúltimo sábado? E o cara que disseram que vinha para cá e que era um candidato certo a se tornar um supergerente linha dura da Sanit? Frequentar puteiro, meu velho?

[Eu] - Pois é, meu querido, eu também estou constantemente me fazendo essa pergunta, mas antes que encontremos respostas, que tal darmos um pulinho nesse prostíbulo de Eliot. Que mal fará?

[Eliot] - Viu aí, Valas? Então vamos lá, meu compadre. A ideia não é de fazer nenhum programa sexual.Vamos nos divertir somente. Tomar aquela cervejinha e trocar aquela ideia com as mulheres e, quem sabe, enriquecer nossas experiências com novas histórias de vida.

[Valadares] - Sei lá...

[Eliot] - É assim que você quer ter histórias para contar?

[Valadares] - Então vamos lá nesse negócio. Quem está casado aqui é só você mesmo, seu sacana. Se alguém tiver que se dar mal será você mesmo.

[Eliot] - Que nada, pode ficar tranquilo que com a minha Pérola eu me entendo muito bem. Eu estou lhe dizendo que não vamos fazer nada de mais.

[Valadares] - Repito: quem tem mulher bonita para perder aqui é você.

[Eliot] - Safado. Acho melhor parar de olhar para minha mulher.

[Valadares] - Nunca olhei.

[Eliot] - Não? E como vê que ela é bonita?

Chegaram dois outros funcionários para tomar cafezinho na copa e a minha dupla de amigos deu uma dispersada na conversa, mudando de assunto.

[Eu] - A conversa está boa, mas o dever me chama, pessoal. Acho que vou aprovar o projeto da Fazenda Modelo, Valadares. O agrônomo foi melindroso e mostrou o destino de cada centavo que será investido.

[Valadares] - Ah, eu já peguei projetos assinados por ele. O cara é bom... Tem algum celular vibrando. Acho que vem de você, Julião.

[Eu] - É mesmo. É o meu amigo do hotel que eu falei de ir com a gente...

[Silas] - Bom dia novamente, Julião. Você está muito ocupado no momento?

[Eu] - Sim, mas não tanto que não possa dar atenção a um amigo.

[Silas] - Pior é que não se trata somente de atenção, meu amigo. Preciso de um grande favor. Desses que a gente só pede a irmão. Teria como você comprar uma caixa de uvas com um vendedor instalado próximo ao caixa eletrônico aí ao lado do prédio em que você trabalha? Pode não parecer, mas é muito importante, porque essa uva faz parte da dieta restrita de minha afilhada e somente esse vendedor tem dela por aqui. Eu cheguei a ligar, mas ele me disse que não poderia reservar por telefone e que só tinha uma caixa.

[Eu] - Entendi, meu caro. Tenho que ir imediatamente, não é?

[Silas] - Isso mesmo. Desculpa aí.

[Eu] - Tranquilo. Eu acabei de sair da copa e estava me dirigindo para minha sala, mas nem vou entrar, estou passando direto para descer no elevador.

[Silas] - Muito obrigado, meu amigo. Você não vai se arrepender. Logo mais a gente conversa.

Dirigi-me em direção ao caixa eletrônico e avistei o único vendedor de uvas. A banca estava abarrotada de caixas da referida fruta e eu achei estranho, já que Silas me falou que estaria vazia, mas ainda pensei que o sujeito pudesse trabalhar com mais de uma variedade, ou então que, após a ligação de Silas, o comerciante tivesse feito reposição de mercadoria.

[Eu] - Bom dia, irmão. Você, por acaso, tem alguma outra variedade de uva que já esteja no final e que uma pessoa ligou pedindo para reservar?

[Comerciante] - Negativo, brother. Eu só trabalho com essa variedade e, além disso, como você pode observar, não vendi quase nada ainda hoje. Além disso, quem quiser pode até me chamar de homem da caverna, mas, por opção, não tenho celular.

Eu estava prestes a dizer que ele era mesmo um homem da caverna e também iria perguntar se havia por ali outro vendedor de uvas, mas meu celular vibrou.

[Silas] - Espero que não esteja bravo, meu amigo, mas, se for o caso, antes de brigar comigo, faça mais outro favor: dê uma olhada para a primeira pessoa da fila do banco e me diga se tem algo familiar.

Os olhos eram verdes e contrastavam com a pele fina e escura. Os cabelos eram lisos, finos e cortados bem rasteiros, além de serem tão pretos que mais pareciam azuis marinhos. Fiquei perplexo. Era ela.

Trazia consigo uma criança de seis anos de idade . Olhou para mim sem, contudo, ter me visto, entrou na cabine e fez uso dos serviços bancários. Saiu para passar bem juntinho a mim. Discutia com a criança, que fazia birra para ganhar um cacho de uvas.

[Eloá] - Pode parar, viu Luara! Você já sabe que nosso dinheiro não dá para comprar essas coisas.

[Eu] - Bom dia. Permita-me que eu compre uma caixa dessas para ela.

Olhou-me fixamente para mim. Aquele olhar deve ter durado alguns pouco segundos, porém, pareceu-me que durou longas e gostosas horas. E parecia que ela estava vendo um príncipe, mas, então, tornou-se séria e respondeu.

[Eloá] - Claro! Sem problemas. Pode dar, sim, até por que, pelo visto, ainda que fossem mil caixas, parece que não lhe fariam falta.

[Eu] - Está me chamando de rico? E essa menina? É sua filha? Parece muito com você.

[Eloá] - É minha filha, sim. Seis anos esse troço. Minha parceira de todas horas.

[Eu] - Muito linda.

[Eloá] - Se parece muito comigo e é muito linda, então só me resta agradecer por mim e por ela.

[Eu] - Claro. O elogio haveria de ser para você também.

[Eloá] - Que bom. Agradeça ao moço, Luara. Não é todo dia que se ganha uvas. Diga também que agora temos que ir porque a estrada é longa. Até logo, rapaz...

[Eu] - Julião.

[Eloá] - Eloá

Ela se foi e sumiu da face da terra. Não deixou rastros. Não houve ninguém que me desse pistas do paradeiro dela. Mas ali, naquele instante, se é que eu ainda tivesse alguma dúvida, tive a certeza de que aquela era a mulher pela qual eu lutaria e conquistaria a qualquer custo. Lembrei-me do sinal que recebi no dia da minha chegada a Florânia, quando tive a sensação de que ali eu seria mais feliz do que tudo que havia imaginado nessa vida e então fiquei ainda mais esperançoso de que aquele sinal haveria de ser concretizado e que aquela linda mulher faria parte daquele pacote de felicidade.

NA CASA DE DON'ANA

Estávamos os quatro na casa de Don'Ana: eu, Eliot, Valadares e Silas. Fizemos questão de, logo na chegada, conhecer a tal de Dona Ana. Pensávamos que fosse uma senhora, mas era jovem. Uma jovem lá com seus vinte e sete anos e muitas histórias boas e ruins para contar

Ela, porém, entendendo logo que o teor da nossa visita não passava pelo desejo de comercializar afetos, cuidou de nos entreter com a sua própria atenção e de nos fazer gastar dinheiro de outra forma, já que não teria o nosso investimento em programação sexual. Sentou-se conosco, embora tivesse que se levantar a cada instante para resolver algum probleminha ou até para dar boas vindas a algum outro cliente.

Quase todos que apareciam por lá queriam, ao menos, um dedinho de prosa com ela, um minutinho que fosse de sua atenção e, por isso, inteligentemente, ela se conduzia pelo salão, mesa a mesa, muitas vezes levando consigo uma de suas meninas, à qual incumbia de continuar encantando o cliente à mesa da qual ela, Dona Ana, tivesse que se levantar.

Conosco, porém, foi diferente. Demonstrou que queria ficar à nossa presença o tempo todo. Sentiu vontade de estar sempre ali entre nós quatro, trocando experiências, como se tivesse atinado para muita química entre nós cinco. Na verdade, seis, porque logo em seguida convidou Elvira para nossa mesa. Elvira era uma mulher com seus mais de quarenta anos e, portanto, um tanto mais velha que todas as outras. Era muito bonita, dessas que o artista fez questão de esculpir com material imperecível e, assim, não parecia sofrer ação do tempo.

[Ana] - Ah, meus queridos, Elvira para mim é tudo, é a minha fortaleza. Sem ela isso aqui viraria uma zona. Aliás, zona eu sei que é, mas estou me referindo a bagunça. Ela é meu porto seguro, e quando estou para baixo, é ela que faz o papel da mãe que tive por tão pouco tempo.

[Eu] - Eu já tive uma Elvira dessas na minha vida. Foi logo quando sai da casa de meus pais. Morei de aluguel em uma de suas casas, mas ela não deixava que eu pagasse o aluguel, muito menos que eu desse um espirro. Cuidava de mim como se eu fosse um filho querido. Tenho saudades de Dona Esperança.

[Ana] - Então você bem sabe do que estou falando, Eliot.

[Eu] - Na verdade, Dona Ana, meu nome é Julião. Eliot é o meu amigo aqui.

[Ana - voltando-se para Eliot] - Desculpem-me. Vivo me atrapalhando. Mas, diga-me uma coisa, Eliot: seus pais gostavam tanto assim do poeta estadunidense?

[Eliot - boquiaberto] - Não é à toa que a senhora é proprietária de tudo isso aqui, hein! Muita gente é curiosa com meu nome e sempre me pergunta se meu pai gostava de Os Indomáveis, um filme antigo que tinha o personagem Eliot Ness, mas essa pergunta sobre o poeta, ninguém jamais tinha feito.

[Valadares] - Eu mesmo estou incluído nesse grupo dos que perguntam sobre Eliot Ness, porque o filme é do meu tempo, mas sequer já ouvi falar de poeta norte-americano chamado Eliot.

[Ana] - Eu conheço muito bem a obra de T.S. Eliot, não somente porque faço faculdade de letras, mas, além disso, porque pretendo fazer mestrado e minhas pesquisas estarão dentro da bibliografia desse poeta, então, como já trago essa certeza, já venho adiantando muitas coisas.

Enquanto ela falava, teria sido interessante se alguém tivesse nos filmado, pois a contemplávamos embasbacados. Aquela mulher que estávamos conhecendo naquele momento, dentro de uma casa de prostituição, falava majestosamente sobre literatura e tantos outros temas intelectuais, deixando-nos daquela forma.

[Eu] - Dona Ana, como a senhora lida com tudo isso? De um lado, proprietária de um estabelecimento que a sociedade discrimina, de outro, tão inserida na elite pensante, já que cursar uma universidade ainda é prestígio para poucos. Já teve algum caso de ser importunada pelo fato de exercer essa atividade?

[Ana] - Diria que eu sabia que não passaria ilesa por tudo isso. E, justamente porque sabia, hesitei tanto para cursar uma faculdade, entrando somente aos vinte e cinco anos. É difícil, Julião. A cidade é pequena e todo mundo se conhece de alguma forma. Mas a gente vai se anestesiando e aprendendo a reagir bem diante das adversidades. Não gosto de contar sobre fatos ocorridos, mas foram muitos e, ainda assim estou aqui. É muito importante isso de não se deixar ficar no caminho

[Silas] - Eu lido diariamente com a questão da negritude. Também faço faculdade. Estudo nutrição. Percebi algumas vezes, em algumas disciplinas, que, para que eu tirasse um dez, teria que fazer uma prova mais brilhante que a de outros alunos com a mesma nota

[Eu] - Galera, Silas já tem uma proposta de emprego como nutricionista. Vai dar tchau ao ramo de hotelaria e migrar para o hospitalar, não é, meu amigo?

Silas sorriu confirmando e mostrando seu orgulho.

[Ana] - Esse negócio de ter prova corrigida com mais rigor eu também já senti o gosto amargo. Mas, sem falsa modéstia, eu driblei essa questão e hoje me destaco na faculdade, não somente porque sabem que sou prostituta, mas também porque, já no segundo ano consecutivo, fui eleita melhor discente de todo o curso. [pegou na mão de Elvira] - Mas de tudo isso, gente, eu devo boa parte a essa minha guardiã aqui, essa mulher que eu diria que até se anulou para que eu seguisse em frente, não que eu quisesse esse sacrifício dela, mas ela fez e continua fazendo isso.

[Elvira] - Mas não se esqueça, querida, do papel fundamental que algumas dessas meninas exercem na sua missão.

[Ana] - Claro! Verdade, Elvira! Mas você é a minha mola propulsora.

[Elvira] - Ela fala assim, mas é ela o anjo na vida de todas nós. Depois que a mãe morreu, eu ainda sem saber do rumo que daria a minha vida, ficamos todas desnorteadas, até por que Ana era ainda novinha, com a cabeça em outro destino, que era também o desejo de Cristina. Mas vocês pensam que a menininha sentou e chorou? Não. Abraçou a nós todas e tomou nossas rédeas. Hoje eu costumo dizer que ela é uma verdadeira resgatadora de dignidade.

[Valadares] - Que maravilha, hein! E a senhora, Dona Elvira, pode nos contar como chegou aqui?

[Ana] - Essa história é longa. Enquanto isso eu vou conversar com Eliane. Parece que ela está com algum problema. Cuide bem desses rapazes, Elvira.

[Elvira] - Pode deixar comigo, querida. Não se despeça deles ainda, porque vão amanhecer aqui com a gente, não vão?

Ana saiu e ali já pude constatar que tinha um olhar diferenciado para o nosso amigo Valadares.

[Elvira] - Eu era uma mulher feliz, mãe de duas crianças lindas, dona de casa, veículos na garagem..., mas um dia meu devotado marido me mandou levar um carro para a revisão. Passei a tarde na concessionária, recebendo cantada de um jovem gerente e acabei não resistindo aos encantos daquele safado. Fizemos amor ali mesmo, numa salinha de espera.

[Silas] - E como seu marido ficou sabendo?

[Elvira] - Eu acho que todo mundo que estava na concessionária, pelo menos na parte da oficina, viu o que aconteceu. E quando ele me colocou contra a parede, não tive escolha senão confessar. Depois que saí de casa tentei retomar minha vida profissional, mas ele me perseguia e obrigava meu empregador a me desempregar. Contratou gente para me perseguir o tempo todo e até me agredir. Até que um dia, por acaso, conheci Cristina, que me livrou de uma agressão e incitou populares a perseguirem o meu agressor. Foi aí que Otávio perdeu o meu rastro e Cristina me trouxe para Florânia. De imediato eu não podia me empregar para não correr risco de ser encontrada, então fui ficando e acabei me adaptando a esse lugar.

Após a narrativa, Elvira se mostrou tão abatida que me senti na obrigação de reanimá-la.

[Eu] - Há quanto tempo a senhora não dirige?

[Elvira] - Doze anos.

[Eu] - Tome aqui as chaves do meu carro. Dê uma volta por onde a senhora quiser.

Olhou-me em silêncio por cerca de vinte segundos.

[Elvira] - Poxa, rapaz! Quer me matar de emoção? Posso mesmo?

[Eu] - Sim. Claro.

[Elvira] - Olha, rapaz, deixa eu lhe falar uma coisa: a gente é feliz aqui dentro, sim, porque temos uma às outras, e ainda temos Ana. Mas basta pisarmos um pé fora dessa casa que tudo muda e já não somos pessoas dignas de respeito e consideração. Até mesmo os homens que vêm aqui e se divertem conosco, já não são os mesmos quando nos encontram lá fora. Por tudo isso, esse seu gesto de respeito mexe muito comigo. Jamais vou esquecer. Muito obrigada.

Abri uma de suas mãos e coloquei as chaves. Levantou-se, atravessou o salão e tomou a rua. Entrou no carro que indiquei, funcionou e saiu com muita elegância. Retornou após uns quinze minutos, devolveu-me as chaves e tornou a desabar em prantos.

Ana, já a par de tudo, apareceu e voltou a sentar-se conosco. Também me agradeceu por Elvira.

[Ana] - Ah, que bom. Elvira lavou a alma. Não vou mentir, se eu tivesse metade da habilidade dela eu pediria para também dar uma voltinha.

[Eliot] - Você não dirige?

[Ana] - Já fiz autoescola, tirei a carta e tudo, mas hoje não sei nem se conseguiria tirar o carro do lugar.

[Eliot] - Mas, pelo que vi, Dona Elvira lhe sairia uma ótima professora. E ainda, pelo que entendi, a habilitação dela está valida.

[Elvira] - Pois é, no ano passado Ana me deu isso de presente, a renovação de minha carteira de habilitação..

[Ana] - Você falou uma verdade, Eliot. Elvira seria uma ótima professora. Falta-me, pois, o carro. Quem sabe em breve?

[Eu] - Então vocês duas que se virem, porque meu carro vai ficar aqui com vocês.

Todos me olharam, atarantados com a minha decisão.

[Elvira] - Você é louco, doido? Por onde andou que nunca veio aqui antes?

[Ana] - Verdade, Elvira. Esse é dos nossos e não estava entre nós. Aliás, vocês quatro são especiais.

[Valadares] - Gostei de sua atitude, meu nobre, mas só não estou entendendo uma coisa e talvez eu já esteja sendo muito repetitivo: o que aconteceu com o funcionário que vinha para nossa agência, com fama de vaidoso, arrogante, ambicioso e antissocial? Pergunte a Eliot se os nossos auxiliares já não estavam tristes com a sua vinda? Porque o perfil que foi traçado para você era preocupante até para nós que não estaríamos sob sua subordinação.

[Eliot] - Verdade. E mesmo quando a gente almoçou junto a primeira vez, Julião, eu estava muito desconfiado. Depois que eu percebi que você veio trocado.

[Eu] - E podem acreditar: Eu vim disposto a me tornar ainda mais linha dura.

[Ana] - Ah, então quer dizer que estamos diante de um executivo que veio a Florânia em busca de poder e se transformou num mero emprestador de carro para prostituta? Ah, assim eu me apaixono.

[Eliot] - Toda essa transformação é porque já tem alguém ocupando essa vaga, Dona Ana.

[Eu] - Vocês estão aí falando e eu aqui pensando. Realmente, há menos de vinte dias eu era outra pessoa. E se quando pisei na cidade e respirei fundo, senti algo estranho, mas estranho ainda fiquei quando vi a cintura, as costas e o pescoço daquela menina. Perdi o rumo.

[Elvira] - Você ganhou o rumo, querido. Segue o amor, que é incomparavelmente melhor. Não importa se maternal, fraternal ou sensual, mas somente o amor justifica a existência. Não importa iate ou carro de luxo no leito de morte, mas, o amor, com certeza, há de mexer no coração do moribundo.

[Ana] - Essa é Elvira! Mas a gente pode saber o nome dessa sortuda?

[Eliot] - Eloá.

[Ana] - É de Florânia?

[Eliot] - Sim. Ela é sobrinha daquele verdureiro, Davi.

As mulheres se entreolharam.

[Ana] - Ah, Eloá! Que menina de sorte!

[Elvira] - Mas, convenhamos, Aninha. Ela merece.

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