Julho de 2014 - seis meses antes
Marcos Assunção
Mais um dia exaustivo no tribunal.
Com minha pasta em uma mão, pego o celular que não para de vibrar dentro do bolso com a outra. Clarissa.
Ultimamente ela está um pé no saco. E para o azar dela, minha paciência está se esgotando. Penso em não atender, ainda tenho que conversar com meu cliente, mas se não o fizer, ela ficará ligando, infernizando a minha vida. Não sei por que ainda estou com ela.
— Alô.
— Oi, amor. Estou ligando para saber que horas você vai chegar, quero que me leve para jantar.
— Clarissa, eu ainda estou no tribunal. Faltam — olho para o relógio no meu pulso. — Duas horas para eu ir para casa.
— Eu sei, amor, mas...
— Mas nada. Estou trabalhando, quando estiver desocupado ligo para você. Beijo.
— Beijo — encerro a ligação e vou atrás do meu cliente.
Meia hora depois estou a caminho do escritório, o trânsito no Rio nesse horário é um caos, mas não tem outra saída, preciso passar lá primeiro.
Enquanto espero o sinal de trânsito abrir, fico pensando no rumo que minha vida está tomando. Achei que aos trinta e sete anos já estaria casado e com filhos, mas infelizmente namoro uma pessoa que não serve para isso. Clarissa Pinheiro é filha de uma das amigas da minha mãe, dona Joana Assunção.
Quando a conheci há três anos, ela era uma mulher totalmente diferente do que é hoje. Era simpática, doce, educada, era uma mulher espetacularmente linda, não só por sua beleza, mas também por seu carisma, foi mais o seu jeito do que o seu corpo que me conquistou.
Passamos a nos encontrar em vários jantares e festas, minha mãe adorava promover esses encontros. Depois de um tempo, passamos a ser amigos com benefícios e ela sendo a mesma mulher doce e pacífica que eu conheci. Achei que estava apaixonado, achei que ela era a pessoa certa. Eu a pedi em namoro e desde então não nos separamos, mas nesses dois anos ela mudou muito.
Passou a ser mais egoísta, fria e fútil, muito fútil. Já tentei terminar essa relação, na verdade, tentei pouco. Para ser sincero, a única coisa de bom que Clarissa tem é o corpo, o sexo com ela é bom. E para terminar com essa e arrumar outra igual ou pior, é preferível continuar com ela.
Tento a todo custo ser um bom companheiro. Eu a levo para jantar, dou presentes caríssimos que ela gosta e o principal, dou carinho e atenção. Mas, ultimamente, sinto que estou empurrando com a barriga, nossa relação estagnou e eu não vejo como posso melhorar isso.
Minha mãe e Clarissa vivem insinuando que já está na hora de casarmos, mas não vejo isso acontecendo, não com ela.
O sinal abre e sigo meu caminho para o escritório, com uma música suave e meus pensamentos de fundo.
Resolvo o que ficou pendente no escritório, junto com Munique, minha secretária. Clarissa não gosta dela, já me pediu várias vezes para demiti-la, mas não vejo motivo para isso. Até entendo um pouco essa implicância da Clarissa com Munique, ela é um mulherão. Loira, olhos claros, corpo de fazer qualquer um babar.
Superprofissional e uma excelente amiga. Quando ela começou a trabalhar comigo, foi difícil segurar as pontas, porque Munique se veste para matar.
Porém, por mais que se vista para tentar qualquer um, sempre se deu ao respeito.
E depois de quatro anos trabalhando juntos, já sou imune ao seu charme.
Pego uns documentos de outro caso, Munique me informa os horários de duas reuniões que terei no dia seguinte, e antes de ir para casa, eu mando uma mensagem avisando à Clarissa que passarei no apartamento dela às oito horas para levá-la para jantar. Despeço-me da minha secretária e entro no elevador.
Como eu disse, faço o possível para agradá-la, mesmo ela não fazendo o mesmo por mim. Moro no Leblon, relativamente perto do trabalho, consigo chegar ao prédio em vinte minutos.
Quando abro a porta do meu apartamento, já passam das seis horas da tarde. Minhas ajudantes do lar já devem ter ido para casa, o apartamento está muito silencioso, elas passam o dia ouvindo música. V ou direto para o quarto, coloco minha pasta em cima da escrivaninha, afrouxo a gravata e a tiro, indo direto para o banheiro.
Tiro toda a roupa e entro embaixo da ducha gelada, refrescando meu corpo do calor intenso que está fazendo. Ensaboo meu corpo com calma, pensando no tédio que será esse jantar. Clarissa não fala nada que preste, só sabe falar de compras, viagens e tratamentos estéticos. Termino o banho, me seco e volto para o quarto, entro no closet e escolho uma bermuda branca, camisa azul marinho de botão e um sapatênis estiloso; passo um perfume, coloco o relógio novamente, pego meu celular, carteira e a chave do carro.
Tranco tudo e entro no elevador, que estava parado no meu andar, então vou direto para a garagem. Entro no carro, dou partida e volto ao fluxo do trânsito do Rio de Janeiro. Em meia hora já estou parado em frente à porta da mansão da família Pinheiro. Mando uma mensagem para Clarissa avisando que estou à sua espera. Não me dou o trabalho de descer do carro e entrar na casa, os pais dela são mais chatos ainda e hoje estou muito cansado para isso.
Quinze minutos depois, estou tamborilando os dedos no volante do carro, quando a porta da casa é aberta, Clarissa passa por ela.
Saio do carro, dou a volta e a encontro no meio do caminho. Ela está muito bonita com um vestido vermelho justo, saltos magníficos e o rosto maquiado como se fosse para uma festa.
Ela é bonita, mas muito exagerada, já pedi que não se maquiasse tanto. Ela não precisa de nada artificial, mas toda vez que toco nesse assunto, ela desanda a falar que eu não a entendo, que ela não vive sem maquiagem e que é para eu me acostumar. Quase reviro os olhos só de lembrar de todas as vezes que voltamos nesse assunto. Dou um leve beijo em sua boca e a conduzo para dentro do carro.
V amos todo o caminho em silêncio, apenas ouvindo a música que ecoa dentro do carro.
Clarissa me pediu que a levasse em um restaurante francês que inaugurou há pouco tempo. Eu não queria mesmo ir a um lugar assim, com tanta gente esnobe, mas faço o que ela me pede. Não aguento isso. Se você não está vestido como os padrões da alta sociedade, eles o olham torto. Bom, hoje vão olhar torto para mim. Assim que estaciono, desço e abro a porta para Clarissa. Ela ajeita o vestido, depois o cabelo e me dá a mão, porém antes de entramos...
— V ocê poderia ter se vestido melhor, querido.
Sabia. Estava demorando.
— Estou me sentindo muito bem com minha roupa, querida — ela entorta a boca de leve e não fala mais nada.
Seguimos para dentro do restaurante, que é puro requinte, o estilo francês bem descrito por todos os lados. Paramos duas vezes para cumprimentar alguns conhecidos da Clarissa, o maître nos guia até nossa mesa, que é um pouco afastada do centro do restaurante. Puxo a cadeira para que ela se sente, depois me sento à sua frente. O garçom se aproxima trazendo a carta de vinhos, escolho um e logo em seguida ficamos sozinhos.
— Como foi seu dia, Clarissa?
— Foi maravilhoso, amor. Na parte da manhã fui ao SPA e fiz minhas massagens. Depois fui almoçar no bistrô do seu amigo Fred. À tarde fui às compras, amor, eu estou praticamente sem roupa... — não sei por que perguntei. Ela passa uns dez minutos me contando como foi ficar o dia todo envolvida nas suas futilidades.
O garçom chega com o vinho, nos serve e ela continua falando e falando, e eu me desligo desse mundo. Começo a pensar nas reuniões que teria no dia seguinte, no almoço marcado com a minha mãe, penso em tanta coisa que nem sei quanto tempo passou.
— Amor, você está me ouvindo?
Marcos?
— Oi, desculpa. O que você disse?
— Eu estava dizendo que estamos juntos há bastante tempo e que já está na hora de darmos o próximo passo — ela para o que está falando no momento que o garçom chega com o cardápio. — Podemos morar juntos primeiro, o que acha?
Meus olhos estão fixos em seu rosto, enquanto ela olha para o cardápio como se não tivesse dito nada demais. De onde ela tirou isso?
— Acho que essa não é uma conversa para termos em um restaurante. V amos escolher nossa refeição e mais tarde falamos sobre isso.
Clarissa fica tensa. É nítido. Ela continua olhando o cardápio, de cabeça baixa e quando levanta o rosto, está com um sorriso estranho.
— Claro, querido. Já escolhi o que eu quero e você?
— Também.
Chamo o garçom com um aceno de cabeça e fazemos os nossos pedidos.
Jantamos em um clima ameno, mas essa história de darmos mais um passo no nosso relacionamento, de irmos morar juntos, não sai da minha cabeça. Não consigo aceitar isso. Se morando separados já está fadado ao fracasso, imagina morando juntos?
No caminho para casa, Clarissa começa a reclamar sobre eu não dar atenção ao que ela disse no restaurante.
Hoje não tenho paciência para aturar isso, estou cansado, tenho que acordar bem-disposto amanhã, e se ela for dormir comigo, com certeza não conseguirei descansar. Faço um desvio no caminho e dirijo em direção à casa dela.
— V ocê está me levando para a minha casa? Por quê? Pensei que fossemos dormir juntos hoje — ela fala, enquanto cruza os braços e vira o tronco do seu corpo de lado para que me possa me olhar.
— Clarissa... — dou um suspiro. — Estou muito cansado. Só quero tomar um banho, deitar e dormir. E se você estiver comigo, isso não acontecerá.
— Marcos, o que está acontecendo com você? Ultimamente você está mais distante.
Fixo meus olhos na estrada e penso se devo ou não conversar logo com ela e terminar essa relação. Preciso dar um ponto final, mas não dentro do carro.
Até porque não são três meses, mas sim três anos de relacionamento. Olho de relance para ela e a vejo me encarando.
— Clarissa, vamos conversar, mas não agora. Realmente estou muito cansado, tenho muito trabalho amanhã e não quero me estressar.
— Tudo bem, amor. Conversamos quando quiser.
Assim que paro o carro, desço e abro a porta do passageiro para ela. Clarissa envolve seus braços no meu pescoço e pousa sua boca na minha. Seguro sua cintura e a trago mais perto do meu corpo. O beijo leva poucos minutos, nada que me tire a razão, já estou acostumado com a sua boca, mas o tesão não consegui controlar, meu corpo reage, porém não o deixo me comandar.
Hoje será do meu jeito. A beijo mais um pouco, e vou me afastando devagar.
— Tem certeza que não quer que eu vá com você, amor?
— Tenho sim. Preciso mesmo descansar.
— Amanhã, então? — sua voz melosa entra em meus ouvidos e não há reação alguma em mim.
— No fim do dia eu ligo para você.
— Ok — me beija mais uma vez e se afasta. — Te amo.
— Boa noite, Clarissa.
Fico olhando ela se afastar, indo em direção à entrada da mansão e assim que fecha a porta, entro no meu carro e vou para a minha casa. Já em meu apartamento, faço como disse para a Clarissa. Tomo um banho, deito em minha cama king size, ligo a TV , mas nada me interessa. Relaxo aos poucos e quando menos percebo, durmo.
O dia seguinte começa bem agitado.
Chego ao escritório às oito em ponto.
Munique já está na minha sala com uma pasta no colo e meu café em mãos. Ela está sentada em frente à minha mesa, e antes que eu feche a porta, escuto sua voz.
— Bom dia, Marcos.
— Bom dia, Munique. O que temos para hoje? — pergunto antes de sentar em minha cadeira. V ejo seu braço estendido me oferecendo o café. — Obrigado.
— Eu trouxe os relatórios que você me pediu ontem — ela estende a mão e me entrega a pasta. — Agora pela manhã, você tem uma reunião com o doutor Gustavo às dez horas — meu sócio. — E à tarde, outra reunião, mas essa é com o seu cliente, o senhor Douglas Ferreira. E será na empresa dele.
— Tudo bem, Munique. Pode ir, qualquer coisa eu a chamo.
Ela concorda com a cabeça, se levanta e me deixa só. Depois da reunião com Gustavo, eu me afundo em processos, relatórios, clientes e quando vejo, já é meio-dia. Como a próxima reunião será uma hora da tarde, digo à Munique que vou almoçar e depois irei direto para a empresa do Ferreira, e qualquer coisa é só ligar para o meu celular.
Depois de uma hora e meia de reunião, saio do prédio do Douglas com a cabeça a mil. Esse caso será mais estressante do que pensei. Assim que piso na calçada, sinto um calor escaldante, afrouxo um pouco a gravata e vou andando em direção ao meu carro, então meu celular apita. Olho e vejo que é uma mensagem da Clarissa.
Amor, vou dormir com você hoje e nem adianta dizer não. Bjs, te amo.
Bloqueio meu celular e continuo andando. As calçadas lotadas com muitas mulheres de biquínis e homens apenas de bermuda, e eu de terno e gravata. Minha mão está suando, mas seguro firme a minha pasta. Ando mais um pouco e quando estou quase chegando em frente ao Shopping Leblon, que por sinal é próximo ao meu apartamento, me deparo com uma loira linda. Um vestido listrado simples, preto de alcinha com um cinto marcando a cinturinha fina, junto com uma bolsa preta, saltos. Simples. Ela está vindo na direção contrária e parece aborrecida.
Não consigo ver seus traços com clareza, ela ainda está longe.
Continuo andando, agora fascinado com tamanha beleza. De repente, ela olha para o céu, fecha os olhos e pragueja. Nesse momento, sinto as primeiras gotas de chuva. Aqui no Rio é assim mesmo, o dia começa com um sol de rachar e pode terminar com um temporal. Eu a vejo andar mais rápido em minha direção, mas eu simplesmente não consigo apressar o passo. Quero apreciar a sua visão, a sua beleza.
Por alguns instantes, não existe mais ninguém à minha volta, nem barulho, nem carros, nem meu celular que não para de apitar, nada. Simplesmente nada.
De onde estou agora, posso ver melhor seu rosto. Um rostinho fino, queixinho marcado, nariz anguloso, cabelo loiro que cai em cascata sobre os seus ombros e os olhos. Meu Deus! Que olhos são esses? Os mais lindos que já, são cor de mel e parecem olhar minha alma.
Nos encaramos mutuamente, descaradamente e quando vejo nos seus olhos o reconhecimento do que estava fazendo, sorrio de leve. Passamos um pelo o outro sem desviar o olhar e quando ela sai do meu campo de visão, tudo volta ao normal. Escuto meu celular apitando incansavelmente, ele estava na minha mão todo o tempo. Olho o visor e vejo que é Munique.
Atendo assim que entro no carro.
— Oi, Munique.
— Oi, Marcos, o senhor Fernando Alvarez o aguarda aqui no escritório. Eu disse que você poderia demorar, mas ele não quis arredar o pé daqui até falar com você.
— Tudo bem. Daqui a pouco chego aí — desligo a tempo de ver a loirinha entrando no ônibus.
Estranho. Ela não parece alguém que andaria de ônibus. Ela tem altivez só no andar, fora as bolsas de marcas internacionais que ela carrega. Bem, quem sou eu para julgar? Gostaria de ouvir sua voz, saber seu nome, conversar, ver seu sorriso, porém, provavelmente nunca mais a verei. Ligo o carro e entro no trânsito logo atrás do ônibus.
Uma ideia me ocorre e não penso muito, já a coloco em prática. Tenho que parar o ônibus, preciso saber seu nome, ouvir sua voz. Buzino algumas vezes e continuo seguindo o ônibus. O motorista segue seu caminho normalmente, mas eu não sou de desistir fácil, e depois de inúmeras buzinadas, ele liga a seta para a esquerda e para o ônibus na lateral da pista. Paro o carro logo atrás, desço e abotoo o meu terno, andando vagarosamente em direção à janela onde vejo seu rosto. Ela arregala os olhos ao me ver, e depois cora feito uma adolescente. Sorrio mais uma vez.
Chego o mais próximo possível do ônibus, ergo minha cabeça e fito seus olhos cor de mel. Quase me perco no seu olhar, mas o motorista falando palavrões e as pessoas do ônibus cochichando me despertam. Enfio a mão no bolso e tiro um cartão com meus dados e estendo para ela. Percebo que ela vacila por um instante, olha da minha mão para o meu rosto e depois coloca seu braço para fora do ônibus e pega o cartão.
— Qual é o seu nome? — pergunto e percebo seu olhar mudar.
— Helena — ela responde, quase não consigo ouvir, porque nesse momento o motorista liga o motor do ônibus. Tenho uns segundos para me afastar antes que ele saia em disparada.
Helena.
Entro no carro e volto para o escritório.
E nessa noite, sonho com olhos cor de mel, cabelo loiro no meu travesseiro e um único nome. Helena.
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Comments
Amanda
Uau 🤭🤭🤭
2023-08-14
4
Maria Izabel
E Marcos só aguardando pois acho que Helena vai precisar de seus serviços de advogado😍🥰❤️
2023-07-25
5