Capítulo 17

Maurício

Após deixar o cara amarrado e desacordado no chão do quarto de hotel, eu e Isadora saímos na surdina da madrugada que beirava quase ao amanhecer de um novo dia. Enquanto caminhamos em silêncio pelas ruas da cidade que já despertava a essa hora, observo nostálgico seus habitantes dirigindo-se para seus respectivos trabalhos, outros para escola ou faculdade, cada qual seguindo seu rumo, inertes em seus próprios mundos e problemas. E eu e Isadora não estávamos tão distantes ou diferentes de algum deles, mergulhados nos próprios pensamentos, porém o que nos tornava um tanto distintos, era a situação de perigo que nos cercava a cada segundo, ameaçando-nos até em nossos sonhos a durante a noite.

No momento, nós não podíamos ir até uma rodoviária ou ao aeroporto em busca de um meio de transporte, pois poderíamos ser identificados através das imagens das câmeras de segurança e seguidos novamente. Tínhamos que adotar uma nova tática para sair da cidade sem deixar pistas para trás.

-A opção mais razoável é tomar um táxi em um outro bairro e seguirmos viajem até a próxima cidade. -digo ajeitando a alça da mochila nas costas sem ao menos olhar sua direção. -De lá talvez possamos embarcar em um ônibus e atravessar o estado. -continuo, não esperando por uma interrupção.  -É mais seguro do que a possibilidade de ter outras pessoas nas paradas de ônibus ou mesmo no aeroporto de olho em nós. Fora que não seria nada fácil arranjar um voo de última hora. -explico as possibilidades diminuindo os passos na hora de atravessarmos a rua.

-Não me importo com a forma, só quero sair logo desse lugar infernal que somente nos deu dor de cabeça desde que colocamos nossos pés aqui. Nem uma noite decente de sono eu pude ter. -ela murmura em uma reclamação.

-Que bom que o que mais te preocupa no momento é dormir. -eu alfineto sarcástico.

-Você entendeu o que eu quis dizer. -ela revira os olhos.

-É claro que entendi. -ironizo. -Eu sempre tenho que entender tudo, não é mesmo, Isadora? Talvez eu tenha nascido como poderes especiais e saiba ler a mente das pessoa. Porque é o que parece, pois você vive me acusando, apontando meus erros e defeitos, adora joga-los na minha cara, como se eu tivesse noção das merdas que se passam na sua cabeça. Mas você precisa saber de uma coisa, garota, eu não sou advinha  -digo exasperado.

-Ei, qual é o seu problema? Por que está surtando assim do nada para cima de mim? Desde quando a conversa seguiu para esse rumo? -Isadora diz parando de andar e me forçando a fazer o mesmo ao espalmar uma mão em meu peito.

Tropeço alguns passos com a súbita parada, porém me recomponho a tempo de evitar uma queda.

-Provavelmente a partir do instante que você não parou de reclamar da sua vidinha até agora. -passo as mãos pelo cabelo com nervosismo. -Eu não sei se você se esqueceu, Isadora, mas você não está sozinha na droga dessa situação, eu também estou atolado nesses problemas até a cabeça, também estou cansado, com fome, com medo e... droga! Você parece não enxergar isso. Só sabe... Quer saber? Deixa para lá. Essa conversa que estamos tendo agora de nada vai adiantar mesmo. -digo dando a volta por ela e seguindo meu caminho.

Entretanto, Isadora não estava estava muito disposta a deixar o assunto de lado, querendo continuar aquela discussão, ela acelera os passos para poder acompanhar meu ritmo e puxa-me pela barra da camisa logo atrás de mim. Então eu percebo o exato instante em que ela nota o que eu venho trazendo escondido comigo por todo esse tempo.

-Mas o que é isso, Maurício? -Isadora questiona levantando mais uma vez minha camisa e examinando o cós da minha calça. -Pelo amor de Deus, me diz que isso não é uma arma de verdade. -ela exige em um misto de medo e fúria, os olhos estreitos não saindo do local.

-É claro que é, você não é cega e muito menos idiota, Isadora. -bufo e desço a barra da camisa de volta para baixo.

-E por que você está andando armado? Não me diga que pretende usá-la em algum momento.

-É meio óbvio a resposta para a sua pergunta. -respondo lhe dando as costas.

-Maurício, juro que estou tentando entender o motivo de você tomar uma atitude dessas, mas saiba que eu não quero andar por aí com uma coisa dessas tão perto de mim.

-Ainda bem então que a coisa está na minha cintura e não na sua. -rebato mais ríspido do que pretendo.

-Porque não se livra dela? Não precisamos disso. -ela ainda insiste.

-Porque não. Eu não quero e, sim, eu preciso, nós precisamos. Como acha que vamos nos defender? Com socos e chutes como um marginal qualquer? Acorda, Isadora, você viu pelo que acabamos de passar agora pouco. Quer que o mesmo se repita novamente? Nós demos sorte que a situação não fugiu do controle ou nós dois estaríamos agora... -balanço a cabeça em negação, querendo afastar aquelas lembrança da minha mente. -Muito ferrados ou coisa pior.

-Eu não concordo com você.

-Que bom, às vezes também tenho a mania de discordar de mim mesmo.

-Por que está agindo de modo cínico comigo, Maurício? Você não é assim.

-Porque eu não quero falar sobre isso. -digo querendo encerrar o assunto de vez, os ardendo e a vista embaçada dando indícios de que a qualquer momento eu poderia desmoronar.

Era muita pressão, minha cabeça estava um caos e eu não sabia por quanto tempo iria aguentar, antes que o fio de sanidade se partisse ao meio e eu explodisse.

-Mas deveria.

-Não, não deveria. Isso... tem haver com coisas que aconteceram há muitos anos. Uma parte do meu passado que você desconhece, mas que faz parte de mim, de quem eu sou, de quem eu me tornei a partir dessa experiência.

-Eu quero ouvir, se isso for te ajudar. Gostaria de conhecer um pouco mais sobre o meu parceiro de viajem. -ela brinca, querendo aliviar o clima tenso.

-Tudo bem. Se te contar o que aconteceu fizer você calar a boca pelo menos pelos próximos trinta quilômetros a nossa frente, então eu falo. -digo me dando por vencido.

-Feito. -ela concorda com um meio sorriso.

-Está vendo essa cicatriz aqui? -aponto para a região das costelas no lado esquerdo, onde há uma extensa marca, uma cicatriz irregular.

-Nunca tinha reparado antes. -ela comenta quando seu olhar recai sobre a marca antes que eu abaixe a camisa novamente.

-Eu a ganhei quando tinha apenas doze anos de idade. -faço uma pausa e resolvo me sentar no meio fio da calçada para dar um descanso as pernas por alguns minutos.

-Eu e minha mãe tínhamos marcado de almoçar juntos aquele dia em um restaurante perto do colégio onde eu estudava na época, depois do ocorrido meus pais até me mudaram para outro colégio mais com mais segurança, mas enfim... Minha mãe disse que queria conversar comigo naquele dia pois tinha algo importante para me contar, então não pensei duas vezes ao deixar a companhia dos meus amigos durante o almoço e fui encontra-la aonde havíamos combinado. Só que as coisas não saíram como planejadas, vi minha mãe sentada em nossa mesa reservada, quando ainda estava entrando no restaurante. Ela estava muito bonita em um vestido azul escuro e um sorriso contente ao também notar minha presença. Contudo, eu não havia dado nem mais um passo adiante, quando senti braços fortes me agarrarem por trás, ter sido encapuzado e arrastado para algum veículo perto dali.

Conforme as memórias eram relembradas em minha mente, as imagens saltavam vívidas diante de mim como se tivessem acontecido ontem e doía, ainda doía muito lembrar daquilo.

-Eu ainda me lembro bem do olhar assustado no rosto da minha mãe enquanto tudo acontecia. Alguns minutos depois sem saber direito o que estava acontecendo, eu ouvi a voz dela e o impacto de seu corpo se chocando de encontro ao meu no chão daquele veículo. Nós estávamos sendo sequestrados. Mas não parou por aí, eu e minha mãe fomos torturados por dois dias inteiros, por um dos capangas de um perigoso traficante da região que havia sido preso recentemente em uma operação especial da polícia que meus pais comandaram em conjunto. E o motivo daquilo tudo estar acontecendo conosco? Simples: vingança. Aquelas foram as piores quarenta e oito horas da minha vida, onde o que vivi era puro horror. Eu assisti minha mãe sendo chutada, levar choques, passar frio, ter a cabeça mergulhada em um tanque de água... -fungo desviando o olhar para longe, sem forças para continuar.

-Sabe, alguns dias é mais fácil apenas fingir que não aconteceu nada disso, tentar esquecer e soterrar as lembranças daqueles momentos. Agir como se fosse apenas uma página rasgada de uma história. -volto meus olhos para Isadora nesse instante e, tudo que consigo ver refletido nos seus é um triste pesar.

Mas eu não precisava da sua pena. Esse era um dos motivos pelos quais eu evitava me abrir para as pessoas. Não gosto de ser vitimizado em nenhuma circunstância. Ser tachado como um pobre coitado que sofre até os dias de hoje não era do meu feitio e não seria agora que eu iria assumir tal papel.

-A cicatriz que hoje carrego em nada se compara ao que vi minha mãe sofrer. E quando olho para esse pedaço de pele feio, essa parte de mim, eu me lembro que alguém sofreu muito mais em meu lugar, que perdeu algo muito mais importante e valioso que jamais voltará. -pisco por um segundo para conter as lágrimas que teimam em querer sair.

-Então, Isadora, desde que passei por essa situação, aprendi autodefesa e obtive porte legal de arma para me defender, eu passei a não querer me arriscar mais em certos casos. É claro que eu não saio por aí atirando nas pessoas, na verdade eu nunca fiz um único disparo em toda a minha vida. Bem, talvez agora seja a primeira vez que eu tenha que fazê-lo se for necessário. -dou de ombros não dando muita importância. -Agora você entende o porquê de eu não me desfazer da arma? É para nossa própria segurança, nunca se sabe quando vai chegar a hora. -pergunto, temendo que ela não entenda meu ponto de vista.

Algumas coisas só se aprende após ter vivido na pele e era isso que eu queria mostra-la.

-Agora eu o compreendo e sinto muito por tudo o que teve que passar. -ela responde depois de um tempo e afaga as costas da minha mão com a sua. -Mesmo assim, continuo não concordando com isso. Esse não é você e eu nem sei se você seria capaz de uma coisa dessas. Mas a escolha é sua e irei respeita-la, seja lá o que você decidir, ok?

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Comments

Celia Nazato

Celia Nazato

não estou gostando...

2023-10-16

0

Joelma Oliveira

Joelma Oliveira

espero q ela mude d atitude agora. eles estão em perigo constante e tem q descofiar de tudo e todos

2022-11-20

1

Joelma Oliveira

Joelma Oliveira

pq ele acha bunitin e só solta fogos d artifício. e vcs nem tão sendo caçados pela Tríade e nem foram traídos pelo cara q devria ter ajudado vcs a se esconder!

2022-11-20

0

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