Capítulo 8

Maurício

Transgressor: Aquele que transgride, que ultrapassa os limites de algo.

Uma hora a gente tem que tomar uma decisão. As fronteiras não mantêm os problemas para o lado de fora, elas os prendem dentro de nós mesmos. A vida é confusa mesmo, é assim que somos feitos. Eu posso desperdiçar minha vida criando barreiras ou então posso viver cruzando-as.

Mas há algumas que são perigosas demais para serem cruzadas.

Existe aquele pequeno e curto momento em que todo ser humano consegue observar como um mero espectador que assiste ao próprio filme em câmera lenta, o instante em que tudo muda de uma hora para a outra. Como por exemplo, o segundo em que fui abatido pela força e a beleza de um pequeno par de olhos cor azul-turquesa e longos fios dourados que emolduravam um rosto perfeito. Perfeito para mim.

Eu não saberia dizer ao certo o exato minuto em que me apaixonei por Isadora, mas sei que à partir daquele dia eu estava completamente arruinado para todas as outras mulheres. Eu bem que gostaria que existisse um manual sobre isso. Algum tipo de alerta que me avisasse que havia acabado de me perder. Seria legal se pudesse prever o que aconteceria, talvez eu pudesse evitar esse sentimento, afasta-lo de mim para bem longe.

Eu aguentei me segurar até onde pude, e tudo foi para os ares como em uma grande explosão, quando percebi que os sentimentos da princesinha poderiam ser recíprocos aos meus. Mas não deu certo, eu era praticamente um filho na casa da família Bertotti e sabia que um relacionamento com a caçulinha nunca seria bem aceito, principalmente por eu ser quase uma década mais velho do que ela. Então coloquei um fim em tudo, entretanto Isadora não compreendeu e me acusou de diversas coisas, inclusive de brincar com seus sentimentos. Tentei lhe dizer que jamais faria algo do tipo, porém ela não quis ouvir e expulsou-me de sua vida como se eu possuísse algum tipo grave de doença contagiosa. Nem ao menos restou a amizade que construímos ao longo dos anos, e isso me partiu o coração.

-Sente muita dor? -Isadora perguntou tirando-me do transe.

Eu queria responder que sim, mas não aonde ela estava pensado. Não era o meu ombro que mais doía no momento e sim o coração.

-Não muito. -menti.

-Precisamos sair daqui. Consegue se mexer? Temos que deixar o carro. - ela disse quando houve um intervalo entre o som dos tiros.

Eles estariam ali a qualquer instante. Eu conseguia ouvir o barulho de calçados que pareciam ser botas, batendo contra o asfalto e outras já no chão de terra, diminuindo o ritmo das passadas. Rastreando nossa localização.

E agora, o que faríamos?

Nada.

A exaustão consumia meu corpo da cabeça aos pés. Minha vontade era apenas ficar ali, caído no chão  entre as ferragens, e acabar logo com aquilo. Mas eu não poderia, não estava sozinho, ainda tinha Isadora, uma garota incrível que precisava ser salva e viver muita coisa pela frente.

 Não sabia com certeza quantas pessoas havia do lado de fora a nossa procura, mas rondavam por perto, se aproximando cada vez mais. Tínhamos que deixar o veículo rapidamente ou eles nos alcançariam.

Estávamos acabados. -pensei comigo mesmo.

Ainda escondido entre as ferragens, procurei por algo que pudesse usar como arma. Uma pedra, talvez. Uma barra de ferro. Alguma coisa. No entanto, tateando o chão à minha volta, não encontrei nada mais letal do que um grande caco de vidro que não seria de grande serventia contra as pistolas automáticas de nossos perseguidores. Porque eu tinha praticamente certeza de que as pessoas se aproximando de nós usavam  pistolas semi-automáticas.

-Maurício? -Isadora me chamou em sussurro.

Pelo tom de voz, Isadora estava amedrontada.

Arma... arma... Nada ainda.

Eu tinha que achar uma saída. Algo que tivesse serventia e ajudasse a pelo menos nos defender em um possível confronto corporal. O caco teria que servir.

-Escute, não faça nada . Só me siga em silêncio. Se... se algo der errado, eu quero que você corra, o máximo que puder, está me ouvindo? -eu disse segurando seu rosto com a mão boa e fitei seus olhos para assegurar que ela compreendia a instrução.

-Não, eu não vou a lugar algum sem você, Maurício. A culpa de tudo isso é minha e... -ela protestou inconformada.

-Me escuta, pelo amor de Deus, Isadora! -eu praticamente rosnei com o rosto muito próximo ao seu. -Você vai correr, vai fugir e pedir ajuda na estrada. Alguém vai te ajudar, eu sei. -eu disse dando um beijo em sua testa enquanto lágrimas grossas escorriam por seu rosto.

-Vai. -eu a empurrei para saísse pelo buraco da janela quebrada do seu lado do veículo.

Assim que Isadora pulou para fora, fiz o mesmo logo em seguida, mas com certa dificuldade já que estava com um braço imobilizado.

-Jìxù ba, nán háizi! Zhǎodào nǚhái hé lǜshī. (Andem logo com isso, rapazes! Achem a garota e o advogado.)  -uma voz masculina gritou aos demais.

Como eles sabiam que eu estava com Isadora? Óbvio. -dei um tapa mentalmente em minha testa. -Eles estavam nos seguindo o tempo, tudo fora armado, queriam nos eliminar aqui na estrada, um lugar aparentemente deserto e sem testemunhas. Que cretinos.

Eu precisa agir com cautela.

A vegetação era densa onde estávamos, além da escuridão da noite, por isso precisava recorrer aos ouvidos mais do que aos olhos.

-Me siga. -eu disse em tom baixo e apoiei minha mão em uma rocha escura e porosa que teve uma parte de si esfarelada ao menor dos toques.

Descemos por uma vala relativamente rasa e seguimos ladeira abaixo, eu acabei escorregando em um momento quando pisei em falso sobre alguns pedregulhos e acabei por ralar a mão nos mesmo ao buscar equilíbrio, entretanto continuei a caminhada sem me abalar, praticamente me arrastando sobre o chão para não chamar atenção indesejada.

Alguns segundos após pararmos para descansar a uns bons metros de distância do carro, uma movimentação estranha pareceu ocorrer, os homens que antes estavam atrás de nós começaram a discutir na própria língua nativa, mas como falavam rápido demais eu não conseguia compreender com clareza o que diziam.

Pude ouvir o som estridente de pneus cantando ao longe no asfalto e logo em seguida uma troca de tiros ser iniciada. O barulho das balas cortando o ar, acertando vidros e a lataria de outro veículo que possivelmente passava pelo local chegou aos meus ouvidos de maneira assustadora. Eu só pedia a Deus que nenhuma pessoa inocente se ferisse no processo, pela fatalidade de estar passando nessa estrada justamente agora.

-Larguem as armas, é uma ordem! -ouvi uma voz feminina dizer com autoridade em meio a cacofonia e caos de tiros e destruição.

Eu reconhecia muito bem aquela voz. Soltei o ar com força. Graças a Deus a ajuda havia chegado.

Os homens trocaram algumas palavras entre eles e iniciaram uma nova troca de tiros, resistindo assim a ordem que lhes foram dada.

-Joguem as armas no chão, é a polícia. -Tereza gritou mais uma vez. -Agora!

-Eles vão nos ajudar. -eu murmurei para Isadora que estava encolhida ao meu lado, mesmo sabendo que aquele confronto não iria ser nada fácil .

 Mais tiros foram disparados, muitos deles, depois de alguns minutos eu havia parado de contar, minha cabeça doía fortemente e eu sentia todos os músculos do me corpo protestarem pela má posição em que se encontrava e pelo esforço incomum que realizava no momento.

Após mais alguns disparos, houve um novo cantar de pneus e logo depois tudo ficou no mais absoluto silêncio.

-Droga, os desgraçados conseguiram escapar. Mande uma equipe atrás deles. Os suspeitos estão em um Honda preto, 4x4, com placa certamente adulterada. -Tereza dispensou a ordem a alguém próximo de si.

-Nada das vítimas até agora. Estamos vasculhando o perímetro nas proximidades, mas só encontramos o veículo totalmente destruído com a colisão e o capotamento . -uma segunda pessoa informou a tenente.

-Continuem as buscas. -ela respondeu seca, com o tom de voz firme.

Esse era um ótimo momento para revelar nossa localização para que fôssemos finalmente encontrados. Então foi o que fizemos, com um incentivo de minha parte, Isadora e eu começamos a gritar desesperadamente.

-Eiii, aqui. Aqui em baixo!

-Nós estamos aqui!

-Socorro, precisamos de ajuda!

-Estamos vivos. Bem aqui em baixo!

Depois do que pareceram horas, minutos ou segundos, eu não sei dizer, um vulto de cabelos escuros e olhos claros que compunham um rosto muito familiar para mim surgiu em minha frente com o rosto pálido a luz da lua e uma arma em punho na mão.

-Maurício?! -ela exclamou surpresa.

-Oi, mãe. -eu disse com desânimo e um meio sorriso cansado no rosto.

***

-Eu vim assim que soube do ocorrido. -Itan pronunciou assim que me viu parando a minha frente e olhando para os lados conferindo se alguém escutava nossa conversa.

Estávamos em uma sala privativa no hospital da Graça que fora isolada pela polícia para que eu e Isadora fôssemos atendidos em sigilo e segurança. Um outro policial que também havia sido ferido no confronto recebia atendimento ali. Apenas Rafael, amigo de Fernanda, fora autorizado a entrar na sala para realizar os procedimentos. Quanto menos pessoas soubessem da nossa estadia ali, mais seguro seria para todos nós.

-E o que conseguiu com o juiz? -perguntei em parte cansado e parte aflito.

-Nada. Liguei para o cara assim que tive conhecimento da situação. Conversei com ele e pedi que a data da audiência fosse adiantada, já que o caso é de maior interesse do Estado, além do acréscimo de que a testemunha corre perigo constantemente e já sofrera mais de uma tentativa de queima de arquivo, assim como também seu advogado, que no caso é você. Mas o velho não pode ou não quer facilitar o processo, Maurício. Apresentou um monte de burocracia do caramba e disse que não poderia acelerar o processo, que era inconstitucional e a merda à quatro.

-Droga. -resmunguei irritado.

Em minha opinião, o problema do nosso país é que a  justiça na maioria das vezes é cega, surda, muda e retardada. Retardada no sentido de sempre prorrogar por diversas vezes o improrrogável. Como era o caso de agora.

-Então o que vamos fazer? - perguntei querendo iluminação de alguém que entendia do assunto e sem possuir envolvimento emocional sobre, que pudesse me ajudar a pensar com clareza.

-Não resta outra opção, senão... você sabe. -ele disse deixando a frase morrer no ar.

-Não, eu não sei, Itan. Eu estou exausto, com muita dor e tive uma noite de merda. Então me desculpe não acompanhar seu raciocínio no momento. -cuspi com impaciência.

-Tem que sumir com a garota do mapa. E você também, é claro. Não podem continuar circulando pelas ruas daqui como se nada tivesse acontecido, de um jeito ou de outro, os dois estão marcados.

-Você está sugerindo tipo sair da cidade, do estado? -perguntei em dúvida.

-Não, meu caro amigo. Estou falando do país, se possível. Na verdade tem que ser possível, até porque, não quero ser o portador de más noticias, mas, como já o estou sendo, tenho que lhe dizer que a Tríade te encontraria em qualquer canto desse país, se não do mundo. Eles são muito perigosos e inteligentes, iriam até o inferno atrás de vocês só para não serem pegos. Mas há uma chance, se vocês dois escaparem sem serem vistos.

-Mas Isadora não pode deixar a cidade até o dia do julgamento. Seria uma transgressão. -rebati por mais lógico que parecesse a sugestão que Itan fizera.

-Eu entro com um pedido no processo de proteção a testemunha. Olha, você sabe que não há outra opção ou eu já teria dito, pensa comigo, Maurício. Seja racional. -ele insistiu.

-E para quando seria isso? Levaria séculos até obtermos a permissão para deixar o Brasil.

-Para hoje. Tomei a liberdade de contactar uns... amigos, que estão providenciando novas identidades e passaportes falsos para você e Isadora. Dentro de algumas horas terei tudo em mãos. E aí, o que me diz? -ele indagou e eu senti como se o peso do mundo estivesse sobre meus ombros com tamanha responsabilidade, que definiria o rumo de uma outra vida dali para frente, a vida de Isadora, com simples resposta.

Era muita coisa para se pensar assim, em poucos segundo depois de uma noite terrível. Eu só queria parar de pensar por um instante, sem ter decisões difíceis para tomar,  reflexões para se fazer.

E então percebi naquele momento, que a vida adulta é uma grande droga, com todos esses caminhos a percorrer, e ao final de um dia, a fé se torna uma coisa engraçada. Ela aparece quando você menos espera.

É como se, um dia qualquer, você percebesse que o mundo da utopia é um pouco diferente da realidade...

Transgressor: Aquele que transgride, que ultrapassa os limites de algo. Hoje em dia, o que te faria transgredir? Ou melhor, quem seria capaz de te fazer transgredir? Bom, eu sei bem o nome que me levaria a esse ponto.

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Comments

Carla Luz

Carla Luz

é a mais pura verdade

2023-02-23

0

Joelma Oliveira

Joelma Oliveira

jsutica lenta lerda e retardada. definição perfeita infelizmente. ela ja deveria ter sido incluída nesse programa desde o início. mas a tríade não deixou c certeza

2022-11-19

1

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