(Lua narrando)
o sol atravessando as frestas da janela, o cheiro de café vindo da cozinha e um barulho estranho tipo pincel batendo em vidro. Quando abriu os olhos, levou um susto.
— Meu Deus do céu! — gritou, sentando na cama de uma vez. — Mirela, que coisa honrosa, quase me mata do coração, menina!
Mirela, com o rosto meio borrado de base e batom torto, arregalou os olhos e caiu na risada.
— Ah, para, Lua! Só tô tentando ficar bonita.
Nisso, dona Helena entrou apressada, o avental ainda amarrado na cintura.
— O que tá acontecendo aqui, meninas?
Mas bastou ela olhar pra Mirela pra soltar um grito.
— Vala, minha Nossa Senhora! O que é isso, garota? Quer matar a gente do coração?!
As duas caíram na risada de novo, e até Mirela se dobrou de tanto rir. Logo depois, seu Sebastião apareceu na porta, ajeitando o boné.
— O que foi agora, mulherada?
Quando viu o rosto da filha, deu um pulo pra trás.
— Eita, minha filha, que susto da gota!
Mirela fez cara de drama.
— Nossa gente, tá tão ruim assim?
Ele coçou a cabeça, sem graça.
— Ah, não liga não, minha filha… se cê tá se sentindo bem, é o que importa.
Aí ele levantou um saquinho de papel com um sorriso orgulhoso.
— Mas bora mudar de assunto. Tenho um presente pra vocês.
Quando abriu o pacote e mostrou duas sandálias novinhas — aquelas que as duas estavam sonhando há meses — Lua gritou e pulou no pescoço do pai.
— Ai, pai! O senhor é o melhor do mundo!
Quase derrubou o homem no chão, enquanto dona Helena balançava a cabeça rindo.
Lua adorava aquela vida simples. A casa era pequena, mas cheia de amor. Os pais não tinham luxo, mas tinham fé daquelas que não impunham medo, só ensinavam a ter o coração limpo.
Ela ia à igreja quase todos os dias. Cantava, fechava os olhos e sentia algo bom, uma leveza que nenhuma outra coisa trazia. Os pais nunca a obrigaram ela ia porque gostava. Gostava de sentir que, de algum jeito, Deus ouvia sua voz.
E o mais bonito era a forma como eles a entendiam.
Nunca implicavam com a roupa dela, se usava short ou calça.
Seu Sebastião sempre dizia:
> — Deus mandou vir como tu é, minha filha. Quando Ele voltar, não vai escolher ninguém pela roupa, e sim pelo coração.
E dona Helena completava:
> — Que adianta ter uma saia cobrindo os pés e o coração mais podre que o de quem nem vai pra igreja?
Essas palavras sempre ficavam ecoando na cabeça dela.
Enquanto se arrumava pra missa, lembrou de Theo ou Th, como o morro chamava agora. Lembrou do dia em que ele a protegeu de umas meninas que implicavam com ela na escola. Ele sempre foi seu porto seguro, o menino que ria fácil, que corria descalço com ela pelas vielas.
Mas tudo mudou.
— Acha que ele ainda lembra da gente? — perguntou pra Mirela, passando batom.
— Duvido, — a irmã respondeu. — Depois que virou o chefão aí do morro, deve nem olhar mais pra trás.
Lua suspirou.
— Mas ele não era assim… virou frio, distante. Só pensa em assumir o lugar do pai agora.
— É o destino, né? — disse Mirela, olhando o espelho. — Uns nascem pra cantar, outros pra comandar.
Lua sorriu de leve, ajeitou a Bíblia na mão e desceu a viela com os pais e a irmã. O morro fervia em som, cheiro de comida e conversas. Mas quando passou perto da esquina, o coração bateu mais forte.
Theo estava lá, parado no alto, com aquele olhar firme, impenetrável.
Ela fingiu que não viu, mas sentiu. Sentiu o peso de uma lembrança batendo no peito.
Na igreja, o clima era outro. As luzes coloridas refletiam nos vitrais, o cheiro de vela e incenso deixava o ar quente e calmo. Quando Lua subiu pro altar e começou a cantar, sua voz ecoou pelo salão.
As palmas acompanharam, suaves no início, depois firmes, ritmadas.
Ela fechou os olhos e sorriu.
Naquele instante, esqueceu de tudo do morro, do medo, até de Theo.
Ali, cantando, ela era só ela.
Lua.
A menina de fé…
…que um dia, sem querer, ainda ia cruzar o caminho do novo dono do morro.
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Atualizado até capítulo 42
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