O Herdeiro que o morro chamou

(Th narrando)

O sol nem tinha nascido direito e o quarto já cheirava a cigarro, suor e ressaca. A mesa do lado da cama tava lotada de copos, cinzas e a glock minha parceira de sempre.

Acordei com a cabeça pesada e a alma vazia. Duas mulheres ainda dormiam do meu lado, rindo baixinho no meio do sonho. Nem lembrava o nome delas. Nunca lembro. Só me levantei, peguei a camisa jogada no chão e passei a mão no rosto.

— Levanta. — minha voz saiu fria, rouca, sem paciência. — Acabou o turno.

Elas se entreolharam, confusas, mas entenderam o recado. Uma tentou sorrir, a outra resmungou qualquer coisa. Eu já tava com a arma na cintura antes de qualquer uma abrir a boca.

— Some daqui. — repeti, seco.

Minutos depois o quarto ficou em silêncio. E eu, sozinho. Do jeito que sempre fico quando a noite passa.

Me olhei no espelho rachado. Olhos fundos, barba por fazer, alma de quem já viu o inferno e achou bonito. Martins dizia que eu tinha o mesmo olhar dele e ele não tava mentindo.

"Theo"ele me chamava.

Odeio esse nome.

Aqui, no morro, ninguém me chama assim. Aqui, eu sou TH E isso já diz tudo.

Peguei a arma da mesa, engatei o pente e guardei no cós da calça. Passei o boné, fechei a porta e segui pelas vielas. O morro ainda tava acordando, mas as bocas já tavam abertas, as motos subindo e o povo acenando com respeito.

— Bom dia, TH — um guri gritou, empurrando uma bicicleta velha.

— Bom dia nada, muleque. Vai pra escola. — respondi sem olhar.

O respeito era nítido. Mesmo sem ser o dono ainda, o morro já me tratava como se fosse. Martins ainda comandava, mas todo mundo sabia: quando ele caísse, o trono já tinha nome.

Cheguei na casa dos velhos. A mesma de sempre — paredes descascadas, cheiro de café e tensão no ar. Antes mesmo de entrar, já dava pra ouvir a voz de Martins ecoando no corredor.

— Lorena, Eu já falei mil vezes pra você não sair escondido,porra! — ele gritava.

Respirei fundo e entrei. Milena tava no sofá, com o olhar cansado, olhos cheios de lágrimas. Lorena, encostada na parede, vestida como quem voltou de uma festa, com o batom borrado e o nariz vermelho. Adolescente e atrevida.

— Entra pra dentro do quarto, Lorena! — Martins rugiu, batendo a mão na mesa.

— Eu não fiz nada de mais, pai! Só fui respirar um pouco, cê quer me trancar aqui pra sempre? — ela retrucou, com o peito inflado de raiva.

O clima era puro fogo.

— Pra dentro caralho— ele repetiu, a voz rasgando o ar.

Ela bufou e virou o rosto. Foi aí que eu entrei de vez.

— Bom dia, pai. — falei, tentando não olhar pra cena.

— Bom dia, Th. — Martins respondeu, respirando pesado.

— Mãe. — beijei a testa dela, e senti o tremor. — Tá tudo certo?

Ela só balançou a cabeça, segurando o choro.

Mas aí veio o grito:

— Vocês são um inferno! — Lorena explodiu, a voz ecoando pela casa.

Foi o bastante. Eu virei num impulso, peguei o braço dela e puxei com força.

Ela tentou resistir, mas eu já tinha perdido a calma há muito tempo.

— Hoje tu vai aprender a respeitar quem te botou no mundo, garota! — rosnei, jogando ela no chão.

O barulho do corpo dela batendo ecoou. Milena gritou meu nome, mas eu nem ouvi.

— Olha pra você, Lorena! — falei, com a voz alta, raivosa. — Tá cheirando a bebida, saindo de baile escondido, achando que esses riquinhos do asfalto vão querer alguma coisa séria contigo? Acorda pra vida!

Ela me olhou com os olhos marejados e, mesmo tremendo, cuspiu as palavras que me atravessaram como faca:

— Você não tem direito de falar nada, Seu bastardo!

O tempo parou.

Martins ficou em silêncio. Milena levou a mão à boca.

Eu engoli seco. Senti a garganta travar, o sangue ferver. Mas não disse nada por alguns segundos.

Depois respirei fundo e murmurei:

— Tá vendo, mãe? Isso aqui é o resultado de tanto mimo. Cês criaram uma menina que acha que pode cuspir na cara de quem deu tudo pra ela.

Me aproximei da porta, ainda com a raiva borbulhando.

— Ensina ela enquanto é tempo. Senão um dia ela vai dar na sua cara também.

Saí batendo a porta com força.

O sol já tava mais alto. As vielas estavam vivas, cheias de som, riso e perigo. O povo me via passando e se endireitava.

— Fala, Th! — um cara da boca gritou. — Chegou o príncipe do morro!

— Príncipe, o caralho. — respondi, acendendo um cigarro. — Aqui não tem conto de fadas.

Caminhei sem pressa, o vento quente batendo no rosto. Lá do alto, o morro parecia respirar comigo — pesado, cansado, mas vivo.

Martins ainda era o dono, mas eu sentia…

O morro já sussurrava meu nome.

E quando o morro te chama, não tem volta.

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