descanso de mente.

Entrei na salinha do morro e o ar já vinha pesado cheiro de pólvora, de álcool barato, de ração fria e de coisa podre. Ali cheirava a morte, sempre cheirou. Acendi um bolão com a palma da mão trêmula, puxei a fumaça devagar como quem puxa lembrança ruim, e deixei o fogo subir na garganta até esquentar o peito.

Logo chegaram os que nunca faltavam: meu parceiro fiel, K2 meu tio de verdade, irmão da Mih, um grude de infância e atrás dele, o Matheus, o Ceifador. Quando o nome do homem é “Ceifador”, nem precisa explicar por que o silêncio corta quando ele entra. Ele é a régua do morro: quem não anda na linha, some do mapa. Vitin vinha atras, calmo como sempre, velho sangue da quebrada.

K2 já foi direto ao ponto, jogando a frase no ar como pedra numa vidraça:

— E aí, Th, que porra rolou com a sua irmã? — ele olhou sério, direto. — Tô sabendo de bagulho.

Ceifador soltou o riso curto, pesado como chumbo. — Eu vi ela na rua da 5 com um cara — não vou mentir pr’a vocês — e não parecia coisa boa. Tô dizendo: tava com um elemento de outra boca. — O olhar dele percorreu o rosto dos presentes, medindo reações.

O ódio me consumiu num instante. Sempre fui protetor com a Lorena ,desse amor bruto que corta e que complica e a ideia de alguém mexendo com ela daquele jeito me queimou por dentro. Eu não tava pra conversa; já tinha tirado vida por menos, seguia o legado do velho Martins com precisão cirúrgica quando tinha que ser feito.

A tensão deu espaço pra zoeira, porque é assim que a rua alivia o peso: com riso ácido. Vitin cospe um riso e pergunta, com aquela malícia de sempre:

— E a mãe, Mih, como que tá? Tá firme?

K2 não perde a chance. — Tu sabia que esse aqui era apaixonado pela tua mãe, Th? — ele cutucou, rindo alto.

Vitin faz cara de nojo, fingindo escândalo. — Sai daqui, K2, porra. Faz mó cota, mano. — A risada espalhou e eu não consegui segurar; ri também, um riso que veio torto, incrédulo.

— É verdade, pow. Sua mãe era da igreja e andava como santa.

Vitin me olhou de canto e sorriu. — Eu vi ela pelas roupas, sim. Mas quem liga? O que importa é o que ela é — e a rua respeita quem tem alma. — Ele bateu o peito, como se aquilo fechasse tudo.

K2 mudou o rumo, porque ele sempre tem uma língua afiada. — E falando nisso, achei a tal da Lua por aí. Aquela sua amiga de infância. Lembra? — Ele fez drama, como se tivesse encontrado relíquia.

Vitin riu baixo. — Lembra sim. Aquela menina lembra a Mih, mano. Tem algo nela que te puxa pra trás no tempo.

Eu cresci com ela na cabeça: Lua, pequena lua, cintura de menina e coragem que não cabia no corpo. Não queria pensar no que sentiria ao reencontrar aquilo tudo e também sabia que não era hora de romance. Eu tinha um trono pela frente.

Ceifador pigarreou, sério. — E como anda essa parada de sucessão? Martins ainda aguenta? — Ele não perguntou por maldade. Perguntou como quem mede o vento.

Martins, velho leão, já tava cansado.

— O coroa tá ficando velho, mano. — Ceifador riu baixinho, incrédulo. — Duvido. — Depois olhou pra mim e falou, quase sem querer: — Theo, o velho tá pensando se passa mesmo pra você.

“Theo.” O nome me deu nojo como sempre. Mas eu guardei o silêncio, deixei o fumo subir e respondi com calma cortante:

— Ele vai ver que eu tenho capacidade pra ser dono dessa porra toda. Não é papo, é fato.

A conversa acabou virando plano: tinha que resolver o caso da Lorena, tinha que mostrar resultado, tinha que provar serviço. Saí da salinha pesado, o bolão queimando o polegar, e fui pelo beco que levava pra casa dela. O sol batia meio torto nas paredes grafitadas; as sombras pareciam segredos.

No caminho ouvi umas vozes risinho alto, molecada. Quando me aproximei vi umas meninas tirando sarro da Lua. Ela tava de cabeça baixa, e elas falavam da saia, da forma dela, rindo como se aquilo fosse espetáculo. Aquelas garotas se expunham fácil, sem dignidade, e o som me cortou como navalha.

Puxei o revólver e dei um tiro por cima, um estouro único que fez silêncio cair como chuva. Não era pra matar ninguém era pra avisar que a rua tava acordando. As meninas pularam, assustadas. Eu fui até elas como quem vai pedir desculpas e encontrei Lua ali, pequena como sempre, o cabelo loiro cacheado brilhando no sol.

— Saiam daqui. — Minha voz foi grossa, sem dó. — Agora.

Elas me olhavam, cheias de medo e desaforo, e eu senti a raiva subir de novo. — Eu juro que eu deixo vocês carecas se não saírem daqui agora. — Era ameaça, era promessa. Elas desapareceram correndo, como ratazanas.

Me aproximei da Lua devagar. Ela não me olhou de imediato, mas quando ergueu a cabeça, o sol pegou nos cachos e fez auréola.

— Tá bem? — perguntei. Ela desviou o olhar, e eu não levei a recusa pro lado pessoal; conhecia a timidez dela, o jeito de quem carrega um mundo e tenta não mostrar.

— Tô. — ela falou baixo, quase inaudível. E aquilo me bastou.

Voltei pra casa, tomei um banho rápido que parecia tentativa de lavar culpa. Martins me esperava na sala, as mãos cruzadas. Quando pensei que ia ter sermão, ele me disse direto:

— Pensei bem, filho. Vou passar o morro pra você. Mas tem que entender que isso aqui não é brincadeira. É sangue e silêncio. É decisão e consequência. — Olhou nos meus olhos. — Você tem que provar que quer isso de verdade.

Meu peito bateu forte. Olhei pra ele, pro velho que me moldou e me quebrou. Respirei fundo e falei, sem rodeios:

— Eu não quero só o trono. Eu quero consertar o que precisa ser consertado. Quero que esse lugar valha a pena.

Martins assentiu, como se tivesse ouvido a resposta que já esperava. Lá fora, o morro seguia respirando, fazendo barulho de vida e perigo. E eu, Th, voltei a sentir o peso da coroa chegando devagar, como quem coloca ferro quente na cabeça e diz que vai aprender a usar.

se Tiver algun erro me avisem!!

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