A Muda e o Dono Do Morro
O sol das três e meia da tarde caía como chumbo derretido sobre as vielas e lajes do Morro do Alemão. Não era um calor aconchegante, era o tipo de calor que te sufoca, te lembra onde você está e o quão alto é o preço de um pingo de paz.
Letícia e Laura caminhavam lado a lado, as mochilas escolares contrastando com o peso daquele lugar. O uniforme, apesar do calor, era impecável: saia xadrez curta, camisa polo branca e uma gravata azul-marinho frouxa. Letícia estava cansada, mas o pensamento do refrigerante gelado que a esperava no Bar do Alemão era a sua gasolina.
Ela empurrou o portão de metal, e o som arranhado do ferro foi a sua saudação.
Lá dentro, na mesa de sempre, eles já estavam.
Felipe, o Coringa, Dono do Morro, ocupava a cadeira central. Sua presença era a lei, a frieza mascarada pela camisa preta de marca. Ao lado dele, Rafael, o Sombra, seu sub-chefe e irmão mais velho de Letícia, parecia mais um guarda-costas em seu silêncio atento.
Laura apertou o passo, os olhos brilhando para Sombra. Letícia soltou um som baixo na garganta — uma risadinha abafada que era apenas dela — e moveu as mãos rapidamente, na direção da amiga: 'Calma. Não. Baba.' (O sinal de babar em LIBRAS era usado ali como uma piada interna para a paixonite de Laura).
Laura revirou os olhos, mas sorriu. "Eu sei, sua sapeca," ela disse em voz alta, ciente de que todos na mesa liam a conversa silenciosa.
Letícia se dirigiu à mesa.
Coringa, que estava revendo alguns papéis com a indiferença de quem lida com meros relatórios, levantou o olhar. Instantaneamente, toda a rigidez deu lugar a uma ligeira, mas perceptível, suavidade. Aquele era o efeito Letícia.
Ela se aproximou, e como fazia desde que era criança, ela se inclinou sobre a lateral da cadeira dele. Os braços de Coringa já se preparavam para segurá-la.
O Dono do Morro a olhou de cima a baixo. A saia era curta demais para o seu gosto, e o jeito que ela havia amarrado a camisa polo na cintura, deixando um pedaço de pele à mostra, o fazia ranger os dentes.
"Viu o que eu vi, Sombra?" Coringa perguntou, ignorando Letícia por um segundo. "Esse uniforme é padrão ou ela que tá ousando?"
Sombra não desviou o olhar dos papéis, mas sua mão direita fez um sinal rápido, em LIBRAS: 'Ousando.'
Coringa voltou-se para Letícia. Ela
apenas sorria, sabendo que era o centro da atenção. Ela gesticulou, com os sinais limpos e ágeis: 'Calor. Eu. Quero. Coca.' O sinal de 'Coca' era o preferido de Coringa: a mão fechada, indicador e polegar juntos, simulando a garrafa pequena.
Ele soltou o ar pesadamente, balançando a cabeça. "Pode pedir, 'princesa'. E pode desamarrar essa camisa do umbigo, antes que eu mande."
O coração de Letícia deu um salto vitorioso. Ela desceu da cadeira e, em vez de sentar na cadeira vaga ao lado, fez o que sempre fazia e que o deixava louco: sentou-se na coxa dele. O tecido fresco da saia se roçou na calça jeans dele.
Coringa endureceu. A mão dele fechou-se com força na pistola debaixo da mesa, um reflexo nervoso. Sombra tossiu, Laura disfarçou tossindo também.
"Letícia!" Coringa repreendeu, sua voz grave e baixa. "Tu tem dezesseis. Desce daí agora. Não é mais criança."
Ela o ignorou com uma elegância irritante, cruzando as pernas e apoiando o braço no ombro largo dele.
Com as mãos e o olhar fixo, ela gesticulou em LIBRAS: 'Meu. Lugar. Preferido. É. Aqui.' (O sinal de 'preferido' feito com o dedo médio e polegar juntos e sendo levado ao peito).
O Coringa sentiu o cheiro de shampoo dela, a pressão leve do corpo jovem e o calor que ela irradiava. O Dono do Morro, o cara que dava ordens de vida e morte, estava sendo controlado por uma garota que o fazia sentir coisas que ele não podia permitir. Ciúme. O ciúme era uma praga no morro, e ele tentava matá-lo na raiz.
"Avisa sua amiga," ele sibilou, mas sua mão já estava em volta da cintura dela, a segurando firmemente no lugar, garantindo que ela não caísse. Ele não a queria ali, mas também não a tiraria. "Que se não for tomar Coca na mesa, vai tomar castigo no quarto."
Sombra riu, a risada silenciosa sacudindo seus ombros. Ele gesticulou para o irmão: 'Ela. Te. Testa.'
Laura, por sua vez, aproveitou a distração de Coringa e se sentou na cadeira ao lado de Sombra, quase colada. "Oi, Sombra," ela disse, a voz fina, enquanto a mão dela fazia um sinal discreto, quase imperceptível, para ele: 'Saudade. Sua.' (O sinal de 'saudade' com o polegar e o dedo indicador no peito).
Sombra, o sub-chefe frio, piscou rapidamente. Em LIBRAS, ele respondeu: 'Escola?' (Perguntando se ela tinha voltado da escola).
A prioridade dele era manter o foco, mas o crush de Laura o desviava.
Letícia observava a interação, sorrindo com a língua. Ela e Laura tinham um pacto: o crush de Laura em Sombra era tão óbvio quanto o crush que Coringa insistia em negar por ela.
O garçom trouxe as duas garrafas de Coca-Cola. Coringa esticou o braço, pegou a garrafa de Letícia, a abriu e ofereceu. Só quando ela pegou a garrafa é que ele a soltou, aliviado por ter algo para distrair as mãos inquietas.
"Seu documento de trabalho está pronto," Coringa disse, mudando o assunto bruscamente. Ele estava se referindo aos papéis para o trabalho de meio período na loja da Tia Cida, no asfalto. Era o plano de Sombra para mantê-la ocupada e longe da loucura do morro.
Letícia parou de beber a Coca, a expressão séria. Ela gesticulou com os dedos finos: 'Para. Que? Eu. Gosto. Ficar. Aqui.'
Ele olhou para a rua, onde alguns dos seus 'vapores' faziam a ronda. O olhar dele era duro. "Para você não ficar à toa o dia todo. Precisa de responsabilidade. E de uma vida normal."
O silêncio dela se tornou pesado. Letícia sabia que ele se preocupava, mas a maneira como ele a afastava do seu mundo a machucava. Ela queria a sua vida, não a vida normal que ele idealizava para ela.
Ela gesticulou, a frustração nítida em seus movimentos: 'Normal. É. Você. Perto.'
Coringa sentiu uma pontada no peito. A verdade. Ele era o Dono do Morro, o cara mais temido, e ela só queria a sua presença. Ele apertou a mão dela que estava sobre a perna dele, o gesto de um homem que estava perdendo o controle de suas emoções. "Eu sei, pequena. Mas você tem que crescer. E eu tenho que garantir que você fique bem. Longe de mim, às vezes, é o melhor lugar para você. É. Melhor. Para. Nós. Dois." Ele assinou a frase com o sinal de melhor, e os olhos dela se encheram de teimosia.
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Atualizado até capítulo 70
Comments
Gigliolla Maria
quem sabe nasce algo entre eles
2025-11-01
1
Rosângela Santos
Lendo agora 02/11/25
2025-11-02
1