Capítulo 5

Avery

Me levantei devagar. Ele também se levantou. Por impulso, ou desespero, estendi a mão. Ele apertou. O toque foi firme, seco, sem demorar um segundo a mais do que deveria. A mão dele era quente. A minha, gelada.

— Você vai se arrepender? — perguntei, sem pensar.

— Eu nunca me arrependo. — ele respondeu — Eu cobro.

Saí do prédio como quem acorda de um sonho ruim que insiste em continuar depois que você abre os olhos. O motorista abriu a porta. Eu entrei. A cidade passou por mim rápida, pontes, luzes, faces, vitrines. Tudo parecia igual, mas era outro mundo. Eu já não era a mesma.

Quando cheguei em casa, minha mãe estava na sala, as mãos entrelaçadas. Meu pai, em pé, olhando para o nada.

Eu corri até eles. Abracei os dois ao mesmo tempo. E chorei. Chorei como quem dá descarga numa represa dentro do peito. Chorei até ficar sem ar.

— Filha, meu amor… — minha mãe repetia, passando a mão no meu cabelo — O que ele fez com você?

— Ele… — tentei falar e falhei. Engoli o choro e deixei outro vir — ele não fez nada. Eu fiz.

— O quê? — meu pai perguntou, pálido mais uma vez — O que você fez?

— Eu resolvi — sussurrei, as palavras quebrando — Eu aceitei. Ele perdoou a dívida. Vocês… vocês vão ter a vida que tinham de volta.

Minha mãe ficou pálida. O olhar correu para o meu pai e voltou para mim.

— O que ele te pediu em troca?

Eu respirei, juntei o que sobrou de voz.

— Me pediu em casamento.

— Não! — meu pai explodiu, como se alguém tivesse apertado um gatilho dentro dele — Não, de jeito nenhum! Você não vai sacrificar a sua vida!

— Pai… — comecei, mas a mão dele tremia — eu já assinei.

Ninguém disse mais nada. O tipo de silêncio que não cabe em casa nenhuma.

— Você… você assinou? — minha mãe repetiu, devagar — Filha…

— Foi a única forma. — Lutei para falar sem soluçar — Ele disse que vai devolver tudo, recuperar a empresa, pagar as contas, os carros, a segurança… vocês vão ficar bem. Vocês vão ficar vivos.

Minha mãe sentou no sofá, como se as pernas tivessem esquecido o que fazer. O rosto dela encheu de uma dor que eu nunca tinha visto.

— Me desculpa. — ela disse — Me perdoa, meu amor. Me perdoa.

Meu pai passou as mãos no cabelo, desesperado.

— Eu arruinei a nossa família. — ele falou, olhando para as próprias mãos como se elas fossem culpadas por tudo — Eu arruinei a vida da minha filha.

Eu me ajoelhei na frente dele, segurando seus joelhos, forçando-o a me olhar.

— Pai, olha pra mim.

Ele olhou. Tinha água em todo lugar. No olho, na voz, no peito.

— Eu não me arrependo. — falei, e foi a primeira coisa que saiu inteira, limpa — Por vocês, eu vou até o inferno. Eu vou onde for preciso. Eu só quero vocês vivos.

Minha mãe começou a chorar de novo, baixinho, e eu a abracei. Senti os dedos dela tremerem quando tocaram meu rosto.

— Você é muito melhor do que nós, filha. — ela disse — Eu queria que a vida fosse justa com você.

— Vai ser. — menti por amor, e descobri que mentiras por amor doem menos — Vai ser do nosso jeito.

Ela se levantou devagar e foi até a cozinha. Voltou com um copinho e duas pílulas pequenas.

— Toma. — pediu, ajeitando meu cabelo atrás da orelha como quando eu tinha oito anos — É só para você dormir um pouco. Você está em choque.

— Eu tenho medo de dormir e… — engoli seco — e acordar lembrando que ainda falta uma semana.

— Falta. — ela disse, sincera — Mas hoje você descansa.

Tomei o calmante. Deitei na cama do meu quarto como quem deita num barco pequeno em mar aberto. Minha mãe sentou na beira da cama e ficou passando a mão no meu cabelo até o remédio puxar meus olhos para baixo.

Dormi. Acordei no meio da noite duas vezes, achando que alguém tinha falado meu nome. Era só a minha cabeça, o novo medo treinando minha casa.

De manhã, o sol entrou pelas frestas da cortina com a mesma cara de sempre, sem respeito por nada do que mudou. Tomei banho. Prendi o cabelo. Desci para a cozinha. Meus pais estavam na mesa, fingindo que tomar café conserta o mundo.

— Eu preciso contar de novo. — falei, puxando a cadeira — Sem chorar.

Eles levantaram os olhos, exaustos.

— Ontem eu aceitei casar com Apolo Darko. — continuei — Em troca, ele perdoou a dívida. Ele vai recuperar a empresa e manter tudo no nome dele até o fim do contrato. Daqui a três anos, no divórcio, ele transfere para mim. Tem regras. Eu não posso fazer perguntas. Eu não posso cobrar explicações. Eu não posso me meter na vida dele. Eu assinei.

Minha mãe pôs a mão na boca. Meu pai fechou os olhos, como se orasse para um santo que não atende telefone.

— Não faça isso. — ele pediu, a voz falhando — Filha, por favor, não faça isso. Eu dou um jeito. Eu vendo o que tiver que vender. Eu me vendo, se for preciso. Mas você não…

— Pai. — interrompi, indo até ele — É tarde demais. O casamento é em uma semana.

Ele se levantou tão rápido que a xícara tombou, faltou pouco para o café queimar a mão dele.

— Você pensou em como vai ser lá com ele? — perguntou, incrédulo — Isso é um sequestro!

— É um contrato. — corrigi, com a calma que me restava — E eu escolhi assinar.

— Ele é um demônio. — minha mãe sussurrou, fechando os punhos — Um demônio frio.

— Eu sei. — respondi, e a frase doeu — Mas eu vou casar com o demônio frio em poucos dias.

Meu pai me abraçou, apertado, como se meu corpo pudesse virar um cofre e guardar o que ainda era nosso.

— Me perdoa. — ele repetia — Me perdoa. Me perdoa.

— Eu não tenho nada para te perdoar. — respondi no ouvido dele — Eu tenho uma coisa para proteger. Vocês.

Ficamos assim por um tempo. Depois, sentamos de novo. O mundo continuou fingindo normalidade na janela. Um pássaro pousou no parapeito. Um carro tocou a buzina duas ruas adiante. A vida seguiu, indiferente ao fato de que a minha tinha virado outra.

— O que você precisa? — minha mãe perguntou, enxugando os olhos — O que a gente faz?

— Eu preciso que vocês não desmoronem. — falei, olhando de um para o outro — Eu preciso que vocês voltem a viver hoje. Que vistam suas roupas, liguem para as pessoas, apareçam nos lugares. Que não mostrem medo. Ele disse que ontem mesmo tudo voltaria ao normal. Então façam voltar. Se escondam na normalidade, até eu terminar o resto.

— E você? — meu pai perguntou — E você, minha menina?

Eu respirei.

— Eu? Eu vou aprender a andar no escuro. Sem tropeçar.

Ninguém respondeu. Às vezes a coragem não precisa de aplauso, só de silêncio para ficar em pé.

No fundo do peito, o nó continuava, pesado. Mas havia também uma certeza, pequena, teimosa, acesa. Eu escolhi. E, por eles, eu escolheria de novo. Se o inferno tivesse portas, eu mesma as abriria. E, se o preço fosse andar ao lado do demônio por três anos, eu andaria.

Por amor.

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Comments

claudia gomes

claudia gomes

Que historia! ja to nervosa cm o irmao dele. O qe vai acontecer? ela nao pode trair O demonio.

2025-11-02

2

Andreia

Andreia

Estou gostando muito desse livro👏👏👏❤️

2025-11-05

2

Damares🧚🍃

Damares🧚🍃

super empolgada mais com um fundo de medinho

2025-11-05

2

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