Dante Moreau...
A manhã tinha começado como todas as outras: previsível, organizada, fria.
O escritório estava mergulhado num silêncio metódico, quebrado apenas pelo som dos teclados e o tilintar ocasional do relógio de parede.
Mas, mesmo rodeado de papéis, números e decisões, o meu pensamento insistia em regressar à mesma inquietação: a nova funcionária.
Elena Duarte.
Vinte e três anos. Estudante de medicina.
O currículo não dizia muito, mas o olhar dela durante a entrevista dizia tudo o que eu precisava saber.
Sinceridade. Determinação. Uma estranha calma por trás da timidez.
E algo mais algo que eu não queria nomear.
Deixei claro a mim mesmo que ela estava ali apenas para um período de teste.
Nada mais.
Depois de tantas decepções com mulheres que confundiam trabalho com oportunidade, eu aprendi a ver além dos sorrisos e das palavras gentis.
Mas Elena... havia nela uma ausência de pretensão que me desconcertava.
Quando cheguei à empresa, sentei-me na cadeira de couro e acedi o sistema de segurança do meu telemóvel.
Tinha o hábito de verificar as câmeras da mansão todas as manhãs.
Não por desconfiança ou talvez sim , mas porque aprendi que confiança, no meu mundo, era um luxo caro demais.
As imagens começaram a surgir no ecrã:
o jardim, a cozinha, os corredores, e por fim, o quarto do meu filho.
Por instinto, deixei a tela ali.
Theo ainda dormia.
E, por alguns minutos, apenas observei a respiração tranquila dele, o peito a subir e descer lentamente.
Era o único momento do dia em que eu conseguia respirar também.
Mas então, a porta do quarto se abriu devagar.
A imagem mostrou Elena o cabelo preso, o rosto sem maquilhagem, e aquela expressão… suave, mas atenta.
Ela entrou com cuidado, como se o ar ali dentro fosse sagrado.
Fiquei imóvel, observando-a.
Ela olhou ao redor, avaliou o ambiente, e só então percebeu que Theo estava acordado.
E o que aconteceu a seguir...
Foi diferente de tudo o que eu estava habituado a ver.
As outras mulheres aquelas que eu contratara antes, quando o viam acordar, corriam a chamar a Dona Esmeralda, como se o meu filho fosse uma tarefa.
Mas Elena aproximou-se dele com naturalidade.
Falou-lhe com uma doçura que eu não ouvia há muito tempo.
Vi o meu filho rir "rir de verdade" pela primeira vez em semanas.
O som atravessou o ecrã, invadiu-me os sentidos e fez-me esquecer por um instante quem eu era.
Ela não hesitou. Pegou-o nos braços, trocou-lhe a fralda, brincou com ele como se o conhecesse desde sempre.
E eu ali, sentado, a observá-los, sem conseguir afastar os olhos da imagem.
Aquele gesto simples, espontâneo, despertou algo que eu julgava morto.
Não era apenas admiração era um desconcerto, uma vulnerabilidade que eu não tolerava em mim.
Ela riu, e Theo respondeu com gargalhadas.
O pequeno parecia outro.
E, de repente, percebi o quanto eu falhara em tentar compensar com presentes o que ele mais precisava: afeto.
Fechei os olhos por um segundo, sentindo um nó apertar-me a garganta.
O som da risada dele ecoava na minha mente, acompanhado pela voz suave dela.
Abri novamente os olhos, e lá estava, aquela cena tão simples e, ainda assim, devastadora.
Elena inclinava-se sobre o berço, e o sol que entrava pela janela iluminava o seu rosto.
Por um instante, parecia… uma pintura.
Algo puro demais para pertencer ao mundo em que eu vivia.
Mas a razão logo voltou, fria e impiedosa.
Aquele tipo de pureza é perigoso.
Porque desarma.
E eu não podia permitir que alguém me desarmasse outra vez.
Desviei o olhar do ecrã e fechei o telemóvel, tentando afastar o peso que se instalara no peito.
Mas a imagem dela o riso leve, o toque gentil continuava ali, como uma sombra suave.
Ao longo do dia, tentei concentrar-me nos relatórios e nas reuniões.
Falhei miseravelmente.
Cada vez que via o nome “Mansão Moreau” nas notificações de segurança, o dedo deslizava automaticamente até às câmeras.
Era ridículo.
Mas lá estava eu, a observar discretamente, como se precisasse confirmar que o que tinha visto de manhã fora real.
E era.
Ela trabalhava em silêncio, com uma dedicação que raramente se via.
Sem pausas desnecessárias, sem distrações, sem aquela vaidade típica de quem tenta ser notado.
Pela primeira vez, encontrei paz nas imagens da minha própria casa.
À tarde, liguei para a Dona Esmeralda.
A voz dela veio serena, como sempre.
Então, como está a nova funcionária? "perguntei, tentando soar indiferente".
Senhor Moreau, a menina é um anjo. Cuidadosa, educada, e o Theo… o Theo não larga mais dela.
Houve um silêncio do outro lado da linha, e depois um leve riso.
Acho que o pequeno finalmente encontrou alguém que entende o que ele precisa.
Fiquei calado, processando as palavras.
“Alguém que entende.”
Quantas vezes eu mesmo tinha falhado nisso?
Continue observando disse apenas. Quero garantir que ela mantenha esse comportamento.
Claro, senhor. Mas, se me permite, o senhor devia ver com os próprios olhos. Há algo especial nessa moça.
O comentário ficou a ecoar na minha mente muito depois de desligar.
Algo especial.
Sim, havia e era precisamente isso que me preocupava.
Quando cheguei em casa, já era noite.
A mansão estava mergulhada num silêncio tranquilo.
Passei pelos corredores e notei o aroma de lavanda no ar um detalhe novo.
Pequeno, mas reconfortante.
Subi até ao quarto de Theo.
Ele dormia, com o ursinho apertado entre os braços e um leve sorriso no rosto.
Sentei-me ao lado do berço, observando-o.
Toquei-lhe de leve o cabelo.
Riste hoje, não foi? "murmurei, com a voz quase trémula". E tudo por causa dela...
Por um instante, deixei que o pensamento se formasse, completo:
Quem és tu, Elena Duarte, para fazer o meu filho sorrir assim?
E, pior ainda... para me fazer sentir outra vez?
Levantei-me, ajeitei a coberta e saí do quarto.
O coração batia num ritmo que não me agradava.
Eu era um homem de controle,e sentia, pela primeira vez em muito tempo, que esse controle começava a escapar-me.
Amanhã eu a veria novamente.
E precisava lembrar-me de quem eu era.
Do que prometi a mim mesmo quando fui abandonado.
Mas, enquanto as luzes se apagavam, a última imagem que me veio à mente não foi a da mãe que desapareceu…
Foi a da mulher que, com um simples sorriso, devolveu à minha casa algo que eu já não sabia reconhecer.
***Faça o download do NovelToon para desfrutar de uma experiência de leitura melhor!***
Atualizado até capítulo 62
Comments
Nélia Pité
😀🥰🥰🥰 começou sim😀
2025-10-23
1
Silvania Balbino
O degelo começou
2025-10-23
1