Capitulo 2

Minha vida nunca foi exatamente um conto de fadas. Cresci assistindo minha mãe ser humilhada, e a cada dia sinto mais raiva do silêncio dela diante das atitudes do meu pai.

— Geovana, o jantar está pronto! Vamos jantar, filha — disse mamãe, com aquele tom de voz manso, como se tentasse esconder a dor.

Olhei para a mesa posta e soltei, quase num desabafo:

— Não vamos esperar o papai?

Ela suspirou.

— Ele ligou. Disse que não volta para jantar, vai chegar tarde.

Ri com amargura.

— Com certeza vai se encontrar com a amante novamente. Ele já passou dos limites, mãe, não sei como você suporta isso.

Os olhos dela me cortaram, cheios de súplica.

— Filha, deixa de caluniar seu pai. Tamara é só amiga de trabalho dele.

— Não seja ingênua, mamãe. Papai encontra essa mulher fora do expediente, vive te comparando com ela... Sinceramente, eu não te entendo.

Ela desviou o olhar e o silêncio se estendeu entre nós como uma parede intransponível. Sentamos à mesa, mastigando mais mágoas do que comida.

Depois do jantar, subi para o meu quarto. Tranquei a porta e tentei me distrair. Meu coração batia acelerado — ainda não tinha resposta do hospital para onde enviei meu currículo. Era o meu sonho, a chance de finalmente sair dessa prisão emocional e construir algo só meu. Fechei os olhos e imaginei o telefone tocando com a boa notícia...

Quando dei por mim, o sono me venceu.

Na manhã seguinte, acordei ansiosa. Fiz minha higiene apressada e desci ainda de pijama para o café. O cheiro do pão fresco enchia a cozinha, mas o semblante da minha mãe denunciava o que eu já suspeitava: ele não tinha dormido em casa de novo.

Pouco depois, ouvi a chave girar na fechadura. Meu estômago se revirou. A porta se abriu e lá estava ele — Marcelo Lins, meu pai. O homem que deveria ser o exemplo da minha vida, mas que só me traz desgosto.

— Vou tomar um banho e já desço para o café — disse, como se nada estivesse errado.

— Sim, vai tomar seu banho, o café está pronto — respondeu mamãe, doce como sempre.

Fiquei em silêncio, mas por dentro gritava. O olhar cínico que ele lançou para nós me enojou, e o carinho com que minha mãe ainda o tratava me dava raiva. Como ela conseguia? Como suportava tudo isso?

Eu queria gritar, jogar a verdade na cara dos dois, mas engoli as palavras. Ainda não era a hora. Talvez o hospital fosse minha salvação, minha porta de fuga. Até lá, só me restava observar — e acumular forças para o dia em que não seria mais refém do silêncio da minha mãe, nem das mentiras do meu pai.

Eu ainda estava ali, remoendo minha raiva, quando ouvi o celular vibrar sobre a mesa da cozinha. Meu coração deu um salto. Peguei o aparelho rápido, quase derrubando a xícara de café.

Na tela, um número desconhecido.

Por um instante, pensei em não atender, mas algo dentro de mim sussurrou que aquela chamada poderia mudar minha vida. Respirei fundo e deslizei o dedo.

— Alô? — minha voz saiu trêmula.

— Bom dia. Falo com a senhorita Geovana Lins? — perguntou uma voz feminina, profissional, firme.

— Sim, sou eu.

— Aqui é Júlia, do setor de Recursos Humanos do Hospital Vida Plena. Estamos retornando seu contato em relação ao currículo enviado.

Senti as pernas bambas. Apoiei-me no balcão da cozinha, e minha mãe me olhava curiosa, tentando decifrar pela minha expressão o que estava acontecendo.

— Sim, claro… estou ouvindo — respondi, tentando parecer confiante.

— Analisamos seu currículo e gostaríamos de convidá-la para uma entrevista amanhã às 10h.

Meu coração disparou tanto que parecia querer sair pela boca. Era a oportunidade que eu sonhava, batendo à minha porta.

— Estarei lá! Muito obrigada, de verdade! — respondi quase sem fôlego.

— Ótimo. Traga seus documentos e boa sorte. — A ligação se encerrou.

Por alguns segundos, fiquei paralisada, ainda segurando o celular contra o ouvido, como se temesse que tudo não passasse de um sonho.

— O que foi, filha? — perguntou mamãe, preocupada.

Sorri pela primeira vez em dias, e lágrimas escorreram sem que eu conseguisse segurar.

— Mãe… o hospital me chamou para uma entrevista! Amanhã!

Ela abriu os braços e me abraçou forte, emocionada também. Mas, por trás do meu alívio, senti o olhar de meu pai, que havia acabado de voltar à cozinha. Ele nos observava em silêncio, com aquela expressão fria, como se nada disso tivesse importância.

Foi nesse instante que tomei uma decisão dentro de mim:

Se eu conseguir essa vaga, não vou mais depender dele, nem assistir minha mãe se arrastando atrás de migalhas de atenção. Eu vou construir minha própria vida.

Naquela manhã, mais do que nunca, eu soube que o meu futuro não estava naquela casa — estava além dela.

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Comments

roseli Sousa da silva lucas

roseli Sousa da silva lucas

infelizmente existe a dependia financeira e a emocional , na maioria das x a mulher se anula tanto , que não tem forças para sair de uma relação tóxica .

2025-10-10

6

Natacha Manoell

Natacha Manoell

a dor é nítida até lendo
uma agonia invade a gente e qndo ela em grita a vontade vem só d ler sobre o cinico

2025-10-14

1

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