A chuva daquela noite parecia não ter fim, cada gota batendo no telhado da igreja soava como um lembrete de que o mundo lá fora ainda existia, mesmo quando eu queria que ele parasse um pouco só pra eu respirar. Eu não lembrava exatamente a última vez que tinha sentido o corpo quente, o vento frio atravessava as minhas roupas, estou a dias viajando com essas roupas no corpo, e o tecido colava na pele como se quisesse me lembrar de tudo que eu deixei pra trás, também estou usando uma peruca preta curta e lentes de contato quero evitar ser reconhecida de qualquer forma.
Fazia horas que eu andava sem saber pra onde a cidade parecia minúscula, um ponto esquecido no mapa, e mesmo assim era o bastante, bastava não ser Nova York, bastava não ter ninguém me chamando de “minha boneca”, bastava não ouvir a voz dela. Quando o padre me encontrou, eu já tremia demais pra falar qualquer coisa, ele só colocou o casaco dele nos meus ombros e disse que eu podia descansar no abrigo atrás da igreja
ele chamou de depósito mas pra mim, parecia um milagre. Era uma casinha de madeira, com cheiro de poeira antiga e livros esquecidos, tinha uma cama pequena, um fogão de duas bocas, uma janela que rangia quando o vento passava e mesmo assim, era o lugar mais bonito em que eu já estive, pela primeira vez, ninguém esperava nada de mim, nos primeiros dias, eu quase não dormia tinha medo que alguém descobrisse quem eu era que vissem a garota das revistas, das campanhas, das vitrines das séries mesmo estando disfarçada no espelho, eu mal reconhecia o rosto que olhava de volta, Lena Monroe foi o nome que escolhi o nome de uma personagem de uma série antiga, de uma atriz que eu amo era mais fácil fingir ser ela do que continuar sendo eu.
O tempo passou devagar e eu aprendi a viver com pouco, aprendi a economizar cada centavo das bolsas e joias que vendi, aprendi a agradecer o que o destino ainda não me tirou. As senhoras da igreja foram as primeiras pessoas que me trataram com gentileza sem querer nada em troca, elas me ensinaram a cozinhar a fazer tricô e eu descobri que as mãos tremem menos quando estão ocupadas. Passei a fazer tapetes, roupinhas de bebê e toalhinhas de mesa. Vender aquilo era o que me sustentava, e cada peça que eu terminava parecia um pedacinho de mim reconstruído eu era grata por todos que me acolheram, as pessoas da igreja idosas principalmente me tratavam como sua neta elas sempre faziam doações foi assim que consegui ter minhas coisinhas.
Meu corpo mudou tanto nesse tempo a cada dia, a barriga crescia mais e, junto dela, um tipo de amor que eu não sabia que podia existir. Eu
chamei o meu amado bebê de Pudim talvez porque era o que eu mais sentia vontade de comer, talvez porque soava doce o bastante pra tentar adoçar o que restou da minha vida. Às vezes eu passava horas acariciando a barriga, falando baixinho com ela, contava que logo a gente ia se conhecer, que eu estava tentando ser forte, mesmo quando o medo me paralisava ela e minha melhor amiga, meu porto seguro mesmo antes de nascer. Também comecei a escrever um diário do bebê, cada chute, cada enjoo, cada sonho às vezes, escrevia pra ela; outras, escrevia pra mim pra não esquecer o que me trouxe até ali.
Eu estava sentada na cama escrevendo quando ouvi umas batidas na porta, me levantei com calma e fui atender, era o Bernardo, o policial da cidade, ele tinha uns vinte e seis anos, sorriso fácil e olhos que pareciam tentar entender demais. Ele sempre aparecia com algum pretexto: levar mantimentos, ver se eu precisava de algo.
— O padre me contou que a água quente não tá funcionando, vim dar uma olhada— ele disse, encostado na moldura da porta.
— Ah, sim. — respondi, abrindo só o suficiente pra ele passar. — A resistência deve ter queimado.
Deixei a porta apenas encostada, um hábito que virou instinto. Confiar nas pessoas ainda era um luxo que eu não podia me permitir.
— Sua barriga cresceu bastante, hein? — ele comentou, enquanto ia em direção ao banheiro
Passei a mão sobre a barriga e sorri, meio sem graça.
— É em pouco tempo, vou poder ver o rostinho do meu bebê.
Ele olhou pra mim com um ar de quem queria dizer algo mais, mas hesitou.
— Agora que é mãe não te faz pensar na sua mãe também? O padre me contou que ela morreu, né?
Demorei a responder.
— Sim — murmurei, tentando sorrir. — Ela faz falta.
Naquele instante, o peito apertou porque, por mais que tudo tenha acontecido, uma parte de mim ainda amava aquela mulher. Tentei disfarçar as lágrimas, mas falhei, pedi licença e saí pra respirar o ar frio lá fora. Fiquei um tempo andando em volta da igreja, olhando as janelas acesas das casas vizinhas, cada luz parecia uma vida diferente, uma vida possível, uma vida que não era a minha. Foi aí que me lembrei dos documentos, os verdadeiros eles estavam mesinha do quarto eu coloquei lá pôs estava arrumando a gaveta, minhas perucas também estão por lá, o Bernardo ainda estava lá dentro. Meu corpo inteiro se arrepiou, corri de volta, o coração batendo no pescoço, como eu fui descuidada? Como? Quando cheguei, ele já estava do lado de fora.
— Aconteceu alguma coisa? — ele perguntou.
— N-não, nada só fiquei um pouco tonta — respondi, tentando esconder o nervosismo. — Acho que vou deitar um pouco.
Ele me olhou com um olhar sério, intenso demais pra minha paz.
— Você sabe que pode confiar em mim, né?
Eu sorri, o tipo de sorriso que se usa pra evitar perguntas.
— Eu sei. Obrigada por consertar o chuveiro.
Dei alguns passos, e antes que eu entrasse, senti a mão dele segurar meu braço não foi forte, mas o suficiente pra despertar aquele medo que mora em mim desde sempre.
— Por favor me solta — pedi, baixinho.
Ele pareceu perceber o que fez e soltou na mesma hora.
— Desculpa! Foi um reflexo bobo.
Assenti, tentando manter a voz firme.
— Tá tudo bem, boa noite, Bernardo.
Entrei em casa e fechei a porta devagar, apoiando a testa na madeira, fiquei ali, parada, até o som dos passos dele se perder na rua, corri até a mesinha e lá estavam os documentos, intocados tudo no lugar. Suspirei fundo pela milésima vez, desde que fugi, prometi a mim mesma que seria mais cuidadosa, mas eu sou apenas uma menina de 15 tentando ser uma adulta, mas eu preciso conseguir, tentar não é suficiente, deitei na cama, abracei a barriga e sussurrei:
— Tá tudo bem, Pudim mamãe tá aqui.
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Atualizado até capítulo 41
Comments
Valcinete Barbosa
estou gostando da história, mas eu estou com pena dela 😢
2025-10-27
1
Marcia Mota
🥰💞TÔ achando a estória maravilhosa!
2025-10-11
1
Strela
lembre-se de curtir o capítulo 🩷🩷
2025-10-11
1