A garota da vitrine

Aurora

Aurora de 15 anos

Já eram três da tarde e eu ainda estava de pé, sob um fundo branco, com flashes explodindo diante do meu rosto desde as quatro da manhã, quase onze horas, onze horas! Em que a única coisa que entrou no meu estômago foi um copo de leite morno que minha mãe me trouxe na cama às três e quarenta e cinco, como se fosse um lembrete: “modelos disciplinadas não comem muito.” Talvez por isso eu seja tão magra, ela sempre diz que é um “bom sinal” que manter o corpo leve significa manter o sucesso por perto e eu tento acreditar nisso, mesmo quando minhas pernas tremem e minha cabeça gira sob as luzes do estúdio.

As roupas de hoje são de uma marca adolescente, camisetas coloridas, sorrisos falsos, poses espontâneas que não têm nada de espontâneas

o fotógrafo ri, diz que eu sou uma profissional nata e eu sorrio de volta, como se isso fosse um elogio e não uma lembrança de que nunca tive escolha. Desde os seis meses de idade, eu sou um rosto vendável, revistas propaganda de fraldas, comerciais, brinquedos, roupas, tudo o que podia ter uma criança sorridente na capa já teve a minha e por muito tempo, isso foi divertido.

Quando eu era pequena, eu achava bonito ver minha imagem nas vitrines, achava que isso me tornava especial, mas crescer dentro de uma câmera é um jeito estranho de perder a infância.

Hoje, com quinze anos, eu só queria ser uma garota normal, ir pra escola, comer batata frita com as amigas, dormir até tarde, reclamar das provas, sair escondida pra dançar qualquer coisa que tivesse cheiro de vida real mas eu aprendi cedo que querer e poder são verbos que não combinam comigo afinal, o sonho aqui nunca foi meu o sonho sempre foi da minha mãe e eu não posso decepcionar ela, ela e minha única família a única pessoa que sempre vai fazer de tudo pelo meu bem pela minha felicidade e o mínimo que eu posso fazer e aguentar alguns desconfortos para vela se realizar nas minhas conquistas bom na nossa conquista já que tudo que e meu e dele e tudo que e dela e meu, ela e minha mãe e uma mãe sempre quer o que e bom para os filhos bem deveria ser assim. Helena vega é o nome da minha mãe, ela é uma mulher que sempre quis ser modelo, mas “não tinha o perfil” ela se casou cedo, tentou engravidar por anos e, quando finalmente conseguiu, quase perdeu a sanidade no processo. Ela conta que entrou em depressão meses antes do meu nascimento, mas quando me viu, pequena e loira como as bonecas que ela colecionava, decidiu que eu seria o que ela não pôde ser e desde então, eu venho tentando sustentar o sonho que não é meu.

O meu pai foi embora quando eu tinha seis anos

ele era professor de artes, um homem gentil, mas distraído, sempre com o olhar perdido em alguma pintura um dia, ele se apaixonou por uma aluna e simplesmente desapareceu nunca mais voltou.

Desde então, só restou eu e a mamãe e em algum ponto entre o abandono e as câmeras, deixamos de ser mãe e filha pra virar uma sociedade: ela, a empresária; eu, o produto.

— Aurora, levanta o queixo. — A voz dela ecoa pelo estúdio, firme, impaciente, obedeço como sempre.

O incômodo no meu abdômen, que vinha rastejando desde de manhã, finalmente vira dor uma pontada funda, insistente. Eu respiro fundo e forço um sorriso para a próxima foto, mas o sorriso quebra antes que eu possa disfarçar, solto um pequeno gemido e seguro o ventre com a mão.

— Posso… posso fazer uma pausa? — minha voz sai trêmula.

Todos olham pra mim, o fotógrafo suspira, a assistente revira os olhos, Helena aperta os lábios, mantendo o semblante doce até que ficamos a sós, atrás do painel de tecido branco.

— Você quer arruinar o ensaio? — a voz dela é baixa, mas fria. — O que foi agora, Aurora?

— Eu tô com cólica, sério tô com muita dor.

Ela respira fundo, passa a mão na testa e, por um instante, parece ponderar entre ser mãe ou empresária, o resultado é sempre o mesmo do fundo da bolsa, ela tira uma cápsula e uma garrafinha térmica.

— Toma, vai te deixar desperta, ajuda a disfarçar a cara abatida.

— Mãe, eu só tô com fome — tento protestar, mas ela já está me observando como quem vê fraqueza.

O líquido que desce pela garganta tem gosto amargo e forte, e queima levemente não é novidade desde os concursos infantis, ela tinha esse “truque” pra me deixar “animada” eu nem penso mais sobre o que é certo ou errado só engulo e continuo. Mas hoje, pela primeira vez, algo dentro de mim se recusa, talvez porque eu esteja cansada demais pra fingir que tudo é normal talvez porque não seja.

Ela ajeita meu cabelo, sorri como se nada tivesse acontecido, e sussurra:

— Já era para você ter parado com isso, menstruação incha, te deixa cansada amanhã a gente fala com o médico para trocar a medicação já que essa visivelmente não tá funcionando.

Eu hesito, confusa.

— Mas, mãe, eu ainda não menstruei, ainda não desceu, eu só estou com cólica.

Ela apenas me encara, o olhar frio e avaliador.

— Mesmo assim, vamos ao médico.

E pronto, assunto encerrado, sinto o peso familiar do silêncio entre nós aquele em que não há espaço pra perguntas ela volta ao trabalho, ajustando o cronograma, os contratos, os números e eu, como sempre, volto ao set.

A luz me atinge de novo, o ar parece denso, o meu corpo dói mas eu sorrio porque é isso que eu faço porque é isso que esperam de mim. Cada flash é uma martelada lembrando que o mundo me vê como algo bonito e tudo que eu sinto é fome, cansaço e uma vontade absurda de desaparecer por um dia. A última coisa que me lembro, antes do clique final, é do gosto amargo ainda preso na garganta e da certeza de que, de alguma forma, eu estou sendo engolida viva por um sonho que nunca foi meu.

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Comments

Valcinete Barbosa

Valcinete Barbosa

nossa que absurda isso não é mãe, é um monstro 😡

2025-10-27

1

Strela

Strela

Não se esqueça de curtir 🩷🩷
Sei que é chato ficar pedindo isso +++ se você não curtir eu não consigo ser divulgado e perco chances nos concursos 🩷

2025-10-10

0

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