Eu preciso sair daqui

A noite cai devagar, como se o tempo soubesse que qualquer ruído poderia quebrar o pouco que ainda me resta a luz atravessa a janela e pinta o chão do quarto com um brilho frio eu estou sentada ali, com os joelhos contra o peito, as lágrimas secando no rosto, a garganta doendo de tanto chorar. Faz horas que não escuto a voz dela pela casa, faz horas que tento entender como alguém que diz “eu te amo” pode fazer isso? Como uma mãe, que devia ser abrigo, pode se tornar o furacão que destrói o próprio lar? Eu passo a mão pelos olhos, tentando afastar a tontura, o corpo dói, mas o coração dói mas lembro das palavras dela, frias e afiadas, cortando como lâminas, “Você arruinou o que construímos" “Você destruiu tudo.” Tudo o quê? Eu só queria existir sem me sentir um produto, uma vitrine, um rosto vendido em embalagens coloridas mas se fosse para ter uma mãe amorosa eu aguentaria tudo calada mas agora saber que ela não se importa de homens abusando do fruto que saiu do seu ventre isso eu já não posso suportar.

O relógio marca quase duas da manhã quando a fome começa a latejar eu abro a porta devagar, o corredor mergulhado em silêncio, nenhum som, nenhum sinal de vida a casa inteira parece dormir e pela primeira vez, isso me traz alívio. A cozinha me recebe com um frio leve, um espaço grande demais para uma menina que sempre comeu sozinha, abro a geladeira, vejo frutas, iogurtes, verduras organizadas em fileiras perfeitas a dieta que mantém minha imagem “impecável” mas hoje não hoje eu quero pecar. Abro o celular, peço tudo o que minha infância reprimida sempre quis: pizza, hambúrguer, batata frita, chocolate, coisas simples, proibidas, sabor de liberdade quando a comida chega, eu rio baixinho não é um riso feliz é um riso de quem desafia o cárcere por alguns minutos. Sento no chão da cozinha, como uma fugitiva escondida, e devoro cada pedaço como se fosse o último o queijo escorrendo, o chocolate derretendo entre os dedos, o gosto doce e salgado misturado às lágrimas por um instante, sinto que sou eu de novo apenas uma menina com fome de ser livre, deixo tudo espalhado as caixas abertas, os guardanapos sujos, o refrigerante derramado na bancada quero que o caos fique ali uma prova silenciosa de que, por uma noite, eu desobedeci.

Mas então, do lado de fora, escuto o ronco familiar do motor, o carro dela, o medo me sobe à garganta corro de volta para o quarto, tranco a porta, apago a luz e me encolho na cama ouço os passos ecoando no corredor depois, o som seco da maçaneta tentando girar.

— Abra essa porta, Aurora! — a voz dela rasga o silêncio. — Eu sei o que você fez!

Fecho os olhos com força, como se pudesse desaparecer, mas ela continua.

— Você é uma ingrata! Passa a noite se entupindo de porcarias enquanto eu tento resolvendo o seu problema!

O som da palma batendo na madeira me faz estremecer, ela empurra, bate, insiste até que, cansada de resistir, eu abro ela entra como uma tempestade, os olhos dela queimam raiva, frustração, talvez medo.

— Você quer destruir o corpo que eu ajudei a moldar! Enquanto eu tentava salvar sua carreira, você se comportava como uma criança mimada!

— Resolver? — minha voz sai rouca. — O que você resolveu, mãe?

Ela respira fundo, e um sorriso torto aparece.

— O aborto, vai ser na semana que vem, já está tudo assinado.

Meu estômago se revira, mas ela continua, como se nada demais estivesse sendo dito.

— E tem mais, eu falei com o diretor com o pai dessa coisa, é ele também não quer isso.

Eu travo o ar me falta.

— Ele não é pai de nada, — digo, num sussurro trêmulo. — Ele é um estuprador.

Ela dá de ombros.

— Seja como for, ele está disposto a te ajudar vai suspender as gravações até você se recuperar, disse até que você é a preferida dele agora de você continuar sendo uma boa garota vocês podem até namorar daqui um tempo, já pensou? Seria uma maravilha.

O chão parece sumir.

— O quê? — minha voz falha. — Você tá louca? Quer que eu namore o homem que me machucou?

Ela se aproxima e diz com calma, como se falasse algo sensato:

— Você não entende, Aurora ele é influente pode te levar longe essas oportunidades não aparecem duas vezes vamos pensar no que aconteceu como uma benção agora ele precisa te proteger.

Eu dou um passo atrás, o medo dá lugar à fúria.

— Você devia estar presa, mãe junto com ele eu vou denunciar ele e você também.

— Você enlouqueceu?! — ela grita, e o rosto se distorce num misto de desespero e ódio.

— Quem enlouqueceu foi você! — eu devolvo. — Você quer que eu agradeça por ter sido ferida? Por ter sido vendida como um favor?! Eu vou na delegacia agora!

Dou um passo em direção à porta, mas antes que consiga, sinto a dor aguda no couro cabeludo, ela me puxa pelos cabelos com força, me joga contra o chão o ar some dos meus pulmões as mãos dela apertam meu pescoço.

— Você não vai arruinar os meus sonhos! — a voz sai grave, animalesca, como se outra pessoa falasse através dela.

Eu tento lutar, arranhar, respirar, os olhos ardem, o corpo enfraquece e então, de repente, ela para, e solta eu cai de joelhos.

— Meu Deus, o que eu fiz? — sussurra, tremendo. — Me perdoa, filha, eu perdi o controle.

Ela corre até o banheiro, volta com uma pomada e passa nos hematomas do pescoço, mas eu sei a preocupação não é comigo, é com as marcas as marcas que poderiam manchar a imagem perfeita de mãe dedicada que ela exibe para o mundo.

— Meu bebê, — ela diz, tentando acariciar meu rosto. — Você precisa entender eu só quero o nosso bem você acha que eu queria que as coisas chegassem a esse ponto? Entenda se denunciamos ele não teremos mais espaço na indústria.

Eu não respondo, não choro mais algo dentro de mim, morreu naquela hora e, no lugar, nasceu um silêncio firme até tudo se acalmar. Enquanto ela dorme, começo a planejar eu preciso sair daqui, preciso respirar. Nos dias seguintes, disfarço bem ela acredita que aceitei o aborto sorri, fiz planos, falei em “nova fase da carreira” mas meu plano já tinha começado. Vendi as bolsas, os colares, os sapatos que eu ganhei de umas marcas como temos muitos, ela nem percebeu e por ela achar que me tem sob controle ela não tá no pé.

Rapidamente, o dinheiro está pronto e ainda bem que naquela noite ela vai sair para uma festa, eu respiro fundo e a vejo partir. Faço uma pequena mala: roupas simples, documentos, um casaco, coloco o dinheiro dentro antes de sair, deixo um bilhete sobre a cama:

“Mamãe obrigada por cuidar de mim até agora, sei que deu o seu melhor, mas essa relação entre mãe e filha já não tá funcionando. Eu preciso ser a mãe que você não foi para mim, essa criança no meu ventre só tem a mim, então eu preciso a proteger. Eu não guardarei rancor, nem mágoas eu a perdoo e espero que me perdoe também, então viva bem com o fruto do sucesso que fiz até agora, cuide-se.”

Fecho a porta com cuidado, desço as escadas devagar, sentindo o coração bater alto demais, a rua está fria, o vento toca o rosto e eu me sinto pronta para a minha liberdade.

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Comments

Strela

Strela

Lembre-se de curtir os capítulos obrigada 🩷🩷🩷

2025-10-11

0

Luciana Silva Dias

Luciana Silva Dias

eu não perdoava jamais

2025-10-14

1

Strela

Strela

Lembre-se de curtir os capítulos obrigada 🩷🩷🩷

2025-10-11

1

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