Prólogo

O turno da noite nunca perdoa. Nos corredores do Hospital San Carlo, a luz branca parecia desbotar as pessoas, como se cada paciente fosse apenas o contorno do que um dia tinha sido. Eu já tinha suturado um rosto rasgado por garrafas, corrigido uma pálpebra que não voltaria a piscar igual, e refeito os pontos de um garoto teimoso que insistia em arrancá-los. Eram quase duas da manhã quando tirei as luvas e senti o latejo conhecido na base do crânio. Café. Ar. Silêncio. Nessa ordem.

No vestiário, prendi o cabelo em um coque alto, enfiei o jaleco no armário e vesti um sobretudo preto. A cidade lá fora devia estar molhada Milão sempre cheira a ferro e chuva depois da meia-noite. O estacionamento do hospital ficava quase vazio a essa hora; só alguns carros dispersos de plantonistas e uma ambulância de emergência com as portas cerradas. Desativei o alarme do meu carro e, por um instante, fechei os olhos: três inspirações profundas para convencer o corpo a não desabar antes da cama.

Foi quando senti o deslocamento do ar mínimo, calculado e a sombra projetou-se ao meu lado.

A mão veio rápido, firme, cobrindo minha boca. Outra mão, no meu braço, com precisão de quem conhece tendões. O cheiro que me atingiu não foi de colônia, mas de pólvora velha, impregnada. Reagi mais por reflexo do que por coragem mordi, girei o cotovelo, tentei chutar o joelho do agressor. A voz no meu ouvido, no entanto, não elevou o tom.

— Tranquilla, dottoressa. Vai ser pior se lutar.

Agulha. Ardor. Um véu escuro começou a subir pelas bordas do meu campo de visão, engolindo o pátio, a ambulância silenciosa, o brilho úmido do asfalto. Ainda vi um segundo homem sair de trás da coluna e pegar minhas chaves no chão. O terceiro abriu a porta lateral de uma van preta sem placas. O mundo ficou pequeno, depois imenso, depois nada.

Acordei com um zumbido profundo, como se um motor respirasse ao meu lado. Metal vibrando sob as rodas. Era o chão ou o meu estômago? Meus pulsos estavam livres, mas pesados. Anestesia leve, um sedativo. O suficiente para dobrar vontade, não para apagar memória. Abri os olhos. A van tinha janelas escurecidas; o interior, forrado de um tecido áspero, com bancos rebatidos e caixas de metal presas por cintas. Um dos homens, o do antebraço tatuado com um rosário, me observava em silêncio.

— Água — pedi, a voz áspera.

Ele me ofereceu um frasco sem tirar os olhos de mim. Bebi aos goles curtos, tentando recuperar o ritmo do raciocínio. Se era sequestro por resgate, tinham escolhido uma médica ruim eu não era rica, e minha família… Minha família era um assunto que eu evitava até comigo mesma.

— Onde estamos? — perguntei.

O homem fez um sinal mínimo com o queixo, como quem diz “adiante”. O rosário no braço cintilou quando ele ajustou o colete. Não importava a resposta. O motor diminuiu. A van virou em estrada de paralelepípedo. Senti a mudança pela vibração irregular. Depois, silêncio de pedras antigas. Uma cancela subiu sem ranger. Cheiro de água fria. O Lago de Como. Eu saberia reconhecer aquele ar mesmo dormindo.

A porta abriu com um estouro controlado. A noite me recebeu com um vento cortante. A mansão se erguia numa simetria severa: paredes de pedra lisa, janelas altas, varandas com balaústres finos. Não era nova, mas tampouco decadente; era o tipo de casa que deixa claro que o tempo trabalha para ela.

Subimos por um corredor com tapete espesso e quadros de óleo escuros demais para perceber as figuras. O homem do rosário mantinha um passo atrás de mim, sem me tocar. O que me guiava usava luvas pretas e andava como quem já carregou armas pesadas: peso distribuído, calcanhar silencioso. Paramos diante de uma porta dupla.

— Dottoressa. — Ele abriu.

O cheiro veio primeiro sangue recente misturado a álcool isopropílico e fio cauterizado. Iluminação dirigida. Uma cama grande com lençóis brancos tingidos de vermelho. Um carrinho inox improvisado com bandejas, pinças, bisturis, suturas, soro pendurado em um suporte de luz teatral. E sobre os travesseiros, a metade de um rosto que eu reconheceria mais tarde em fotografias de jornais que eu jurava não ler maxilar anguloso, barba rala, cabelos escuros grudados de suor, e a palidez de quem combate algo mais profundo do que a dor.

— Adrian Lazzaro, — eu ouvi alguém sussurrar, talvez eu mesma.

O nome atravessou o ar como um veredicto. Don, disseram as ruas. Implacável. O tipo de homem que não precisa levantar a voz para que as pessoas corram. O tipo de homem que nunca sangra. Até sangrar.

A ferida estava na lateral do tórax, abaixo da axila, caminho oblíquo para trás entrada limpa, saída inexistente. O curativo improvisado estava ensopado e mal colocado, pressionando um ponto que ia agravar o sangramento interno. Se a bala tivesse ricocheteado na sexta costela… Eu não queria concluir antes de ver. Mas o tempo já tinha opinião.

— Por que eu? — perguntei, sem tirar os olhos da ferida.

— Porque você é melhor que eles — disse uma voz. Não a dos homens que me trouxeram. Grave, arranhada, vinda da cama.

Os olhos dele se abriram cinza, como aço esfriando. Havia febre ali, mas também lucidez. Não havia bravata. Havia um comando silencioso.

— E porque não podemos ir a hospital nenhum, — acrescentou o homem das luvas. — Capisce?

Eu avancei até a bandeja. Conferi luvas, fios, anestésicos, solução salina. Tudo ali era de qualidade… e, ainda assim, havia um erro gritante: eles tinham colocado lidocaína sem adrenalina ao lado de um torniquete de borracha um contrassenso em uma ferida assim. E um tubo endotraqueal um número abaixo do ideal. Respirei fundo.

— Preciso de mais luz. E silêncio. E vocês dois fora. — Apontei para os homens, sem questionar se obedeceriam.

— Quero um aspirador funcional, soro aquecido e… uma bacia mais funda. Se eu abrir e aspirar com esse brinquedo de dentista, ele morre aqui mesmo.

O das luvas hesitou. O rosário me lançou um olhar rápido para o homem na cama. Adrian não mexeu um músculo, mas uma sombra de gesto passou pelos olhos de ambos saíram. A porta fechou. Ficamos só nós dois e o ruído baixo do soro gotejando.

— Isso vai doer, — eu disse, calçando as luvas. — E você vai colaborar, porque eu não tenho tempo para o seu orgulho.

A boca dele curvou-se, quase um sorriso. O tipo de expressão que um homem faz antes de apertar um gatilho. Eu ignorei.

Trabalhei por instinto e método. Retirei o curativo, lavei a área, infiltrei anestésico local, pesei o risco de sedação maior numa sala improvisada. A hemorragia não era maciça, mas insistente. Abri com bisturi fino, aspirando o suficiente para não cegar a visão. O cheiro ferroso subiu com a fumaça leve do cautério. Respirei pelo nariz e mantive os movimentos curtos, econômicos. Encontrei o corpo estranho minutos depois: uma bala deformada alojada entre a quinta e a sexta costelas, próxima demais de onde eu queria. O caminho de entrada partira fibras que agora insistiam em despejar sangue como uma torneira malfeita.

— Fique comigo, Lazzaro, — eu disse, sem pensar.

— Estou aqui, dottoressa. Mais do que você imagina.

Retirei a bala com delicadeza e controlei a hemorragia. Suturei por planos, verifiquei a expansão torácica, auscultei com um estetoscópio portátil. A saturação subiu devagar no oxímetro. O zumbido do soro virou um companheiro. Quando terminei, minhas mãos tremiam menos do que deveriam. Lavei-as. Tentei esquecer que eu havia acabado de salvar a vida de um homem que, apenas por existir, condenava outras.

A porta abriu com um rangido discreto. O homem das luvas entrou e parou a dois passos, medindo a distância entre nós como quem avalia um alvo.

— Ele vive? — perguntou.

— Por enquanto. — Tirei as luvas com um estalo. — Agora ele precisa de antibiótico adequado, analgesia e alguém que saiba medir um soro sem achar que é decoração.

— Você vai ficar, — disse ele, como quem anuncia o tempo.

— Eu não vou ficar. — Minha voz saiu mais firme do que eu esperava. — Ele está estável. Vocês podem trazer outro médico. Eu vou para casa agora.

— Não, — disse Adrian.

Uma palavra. Fria. Eu a senti na pele, mais do que ouvi. Os olhos cinza me prenderam e, por um segundo, algo que não era medo me percorreu. Era alerta. Era reconhecer perigo… e reconhecer a si mesmo olhando de volta.

— Você não entende, dottoressa. — Ele respirou, medindo a dor. — A bala não era para mim. Era um recado. E você acabou de se colocar no caminho da resposta.

— Eu não pedi para estar aqui.

— E, ainda assim, está. — Ele inclinou a cabeça, como se algo nele pesasse mais do que o corpo. — Corsini, não é? Elena Corsini.

O nome caiu entre nós como uma faca deixada no chão.

— Como sabe meu nome?

— Porque nada encosta no meu sangue sem que eu saiba quem é a mão, — disse ele, aceitando a dor como quem aceita um preço. — E porque um Corsini não pisa na minha casa desde que o seu pai tentou comprar a cidade.

O ar ficou mais frio. Por um momento, ouvi apenas o gotejar do soro, um tic tic impessoal, como passos no mármore. Meu pai. Eu tinha jurado que não falaria dele. Nem comigo, nem com ninguém.

— Você está enganado, — consegui dizer. — Meu pai não…

— Não minta para mim, Elena. — O nome, na boca dele, soou como um pacto. — Não depois de ter enfiado a mão dentro do meu peito.

As mãos do homem das luvas se moveram, discretas. Ele aguardava um sinal. Eu sabia reconhecer quando o destino de alguém cabe no movimento de um queixo.

— O que vai fazer comigo? — perguntei, sem arredar um passo.

Adrian fechou os olhos por um segundo, cedendo ao peso de algo que não era só a dor. Quando abriu, a decisão já estava ali.

— Vai me manter vivo. Vai me dizer quem atirou e por quê. E, quando eu decidir que é seguro, eu mesmo a levo de volta.

— E se eu me recusar?

— Então me convença de que sua vida vale mais do que a guerra que começa ao amanhecer.

Ficamos nos olhando por tempo demais. Um relógio em alguma parede distante resolveu anunciar cada segundo como uma pequena execução. Eu quis odiá-lo com facilidade. Quis reduzir tudo ao estômago medo, nojo, fuga. Mas havia uma linha invisível entre nós o tipo de linha que separa bisturi de lâmina, cura de corte. E eu tinha atravessado.

Abaixei os olhos para as minhas mãos limpas, agora vazias. Ainda sentia o formato da bala, o peso ridículo que quase levou um império inteiro junto. Quando ergui o rosto, ele me observava como se tivesse aprendido a me ler no tempo preciso de uma hemorragia.

— Eu fico, — ouvi minha voz dizer, antes de eu decidir. — Até ele passar da febre.

— Ótimo, — disse o homem das luvas, já sinalizando para alguém do lado de fora. — Preparem o quarto da dottoressa.

— E uma coisa, — acrescentei, prendendo o olhar de Adrian. — Eu não trabalho de graça. Nem para Deus.

Aí, sim, um sorriso pequeno, perigoso, como a dobra de um lenço antes da faca.

— Vai sair caro, Lazzaro.

— Eu sei, Elena. — Ele deixou a cabeça afundar no travesseiro, exausto. — As coisas que valem a pena sempre saem.

Fiquei ali, por mais um instante, ouvindo o gotejar do soro e o som distante da água contra as pedras do lago. Do lado de fora, uma madrugada inteira aguardava ordens. Do lado de dentro, um homem que ninguém ousava contrariar respirava porque eu assim determinara.

E, pela primeira vez em muito tempo, tive certeza de duas verdades eu não estava segura e o disparo que atingiu Adrian Lazzaro não tinha sido um erro. Tinha sido um convite.

A guerra já tinha começado. E agora levava o meu nome costurado nela.

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Comments

love

love

achando bem interessante o começo!!!

2025-10-11

1

Claudia Teixeira

Claudia Teixeira

que coisa, excitando essa história já de início, vamos ver o que nos aguarda nessa leitura, mas desde já estou adorando 👏👏👏

2025-10-14

1

Layslla Vieira

Layslla Vieira

eita já rolou aí um climinha 🤭🥰❤️

2025-10-13

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