Algumas verdades chegam como cortes: pequenas, quase silenciosas, mas profundas o bastante para nunca cicatrizarem por completo.
Desde o momento em que Dante disse “Eu machuquei alguém”, uma parte de mim passou a sangrar — não de medo, mas de dúvida.
Dúvida sobre ele.
Sobre mim.
Sobre até onde um amor pode ir antes de virar destruição.
Durante o resto da tarde, as aulas se arrastaram. As palavras da professora soavam distantes, como se viessem debaixo d’água. Cada som, cada respiração, parecia ecoar o nome dele.
Dante Vasquez.
O garoto que carrega o passado nos olhos e o futuro nas mãos.
O garoto que me fez sentir viva pela primeira vez… e que agora pode ser o mesmo capaz de me quebrar.
Quando o último sinal toca, espero a sala esvaziar.
Sinto o peso do olhar dos outros, as vozes sussurrando nas costas.
Desde o primeiro dia, as pessoas olham pra mim como quem observa algo frágil prestes a cair.
Mas hoje é diferente.
Hoje, sinto que há olhos me observando por um motivo que eu não consigo nomear.
Ao sair, vejo Dante no fim do corredor.
Encostado na parede, as mãos nos bolsos, o olhar fixo em mim.
A luz do entardecer entra pelas janelas e o cobre de dourado e sombra ao mesmo tempo.
— Precisamos conversar. — digo.
Ele apenas assente e caminha à minha frente, em silêncio.
Descemos as escadas e atravessamos o pátio, onde o vento frio já anuncia o fim do outono.
Paramos atrás do ginásio, onde o som do mundo parece morrer.
— O que aconteceu, Dante? — pergunto. — Quero a verdade.
Ele fecha os olhos por um segundo, como se reunisse forças.
Quando fala, a voz vem rouca, arranhada.
— Foi há um ano. Outro colégio. Outro lugar. Eu tinha um amigo… não, achava que era. —
Ele olha para o chão, chutando um pedaço de pedra com o sapato.
— Ele machucava alguém que eu amava. Eu tentei impedir. Só que perdi o controle. —
— Quem era? —
— Minha mãe.
O mundo parece parar por um instante.
Ele continua, a voz quase um sussurro:
— Ela vivia presa num ciclo. Sempre voltava pra ele, mesmo depois de apanhar. Naquela noite, cheguei em casa e ele estava lá. Gritando. Ela caída. Eu… não lembro direito o que fiz. Só lembro do sangue. —
Fico em silêncio, tentando digerir as palavras.
Ele respira fundo, como se o ar fosse uma punição.
— Ele sobreviveu. Eu fui levado pra delegacia, interrogado. Falaram em expulsão, em reformatório. Mas ela… ela mentiu por mim. Disse que foi acidente. —
Ele levanta os olhos, e pela primeira vez vejo lágrimas neles.
— Depois disso, ela sumiu. Não deixou endereço. Nem uma carta. Só desapareceu.
O vento passa entre nós, frio, cortante.
— E desde então, você carrega isso. — digo.
Ele ri, sem humor. — Carrego o peso de ter feito a coisa certa da forma errada.
Quero dizer que entendo, mas seria mentira.
Ainda assim, há algo no olhar dele que me desarma.
Não é violência. É dor.
Dor demais pra alguém tão jovem.
Dou um passo à frente. — Você não é um monstro, Dante.
Ele me olha, incrédulo. — Todos dizem isso antes de perceberem que é verdade.
— Eu não.
— Você devia ter medo de mim.
— Eu tenho. — admito. — Mas não o bastante pra ir embora.
Ele respira fundo, como se aquelas palavras o quebrassem e o curassem ao mesmo tempo.
Por um momento, ficamos em silêncio, cercados por vento, folhas e lembranças.
Então ele diz:
— Se eu te disser que não consigo parar de pensar em você… que cada vez que fecho os olhos, te vejo… você ainda ficaria?
O coração dispara.
Não por causa do medo.
Mas porque, naquele instante, percebo que sinto o mesmo.
— Eu ficaria. — sussurro.
Ele dá um passo à frente, tão perto que posso sentir o calor da respiração dele.
Mas, em vez de me tocar, ele desvia o olhar.
— Você não sabe no que está se metendo, Isabella. —
— Então me mostra. —
Ele fecha os olhos, exausto, e finalmente diz:
— Você é o único lugar onde eu ainda acredito que possa existir algo bom.
Nos dias seguintes, algo muda entre nós.
Não precisamos mais fingir que o que sentimos é amizade, ou curiosidade.
Mas também não falamos sobre o que é.
É um laço invisível — tenso, frágil, impossível de romper.
Durante as aulas, nossos olhares se encontram e desviam rápido demais.
Nos intervalos, ele me observa de longe, como se me guardasse.
Às vezes, quando todos já foram embora, o encontro acontece nos corredores vazios.
Não há toques.
Só palavras que ardem.
E silêncios que dizem mais do que deveríamos permitir.
Na sexta-feira, a professora entrega as notas parciais do projeto.
“Melhor dupla da turma”, ela diz, sorrindo.
Mas o que ela não entende é que cada linha que escrevemos ali é uma ferida aberta.
O texto que Dante escreveu começa assim:
> “Ela não percebe, mas carrega nas mãos o poder de curar o que nem o tempo conseguiu.
Mas tudo o que toca acaba queimando.”
As pessoas acham poético.
Eu entendo como um aviso.
Mais tarde, encontro outro bilhete.
Dessa vez, preso dentro do meu caderno.
> “Você não é a primeira. E pode não ser a última.”
As letras estão marcadas com força, quase rasgando o papel.
Olho em volta.
Nada.
Mas sinto o mesmo arrepio na nuca — o de estar sendo observada.
Guardo o bilhete no bolso e vou direto para a biblioteca.
Dante está lá, sozinho, como sempre.
— Quem mais sabe sobre nós? — pergunto, direto.
Ele franze o cenho. — O que quer dizer?
Mostro o bilhete. Ele o lê, e o rosto endurece.
— De onde tirou isso?
— Do meu caderno.
Ele passa as mãos pelos cabelos, inquieto. — Isso não devia estar com você.
— Então é verdade? Havia outra?
O olhar dele muda. Um lampejo de raiva, ou dor, ou os dois.
— Isso acabou.
— Então existiu.
— Sim. —
As palavras caem pesadas, como pedras.
— Ela era como eu? — pergunto.
— Não. — Ele hesita. — Ela queria me mudar. Você não.
— E o que aconteceu com ela?
Silêncio.
Longo demais.
— Dante?
Ele fecha o caderno, como se aquilo encerrasse o assunto.
— Ela se foi.
— “Foi embora” ou “se foi”? —
Ele não responde.
Mas o olhar dele… o olhar diz tudo.
Nos dias seguintes, o colégio inteiro parece observar a gente.
Sussurros. Olhares rápidos.
A atmosfera fica pesada, como se algo prestes a desabar.
Uma tarde, recebo uma mensagem anônima:
> “Você é a próxima.”
O estômago se contrai.
As mãos tremem.
Procuro Dante, mas ele não está.
Ninguém sabe onde foi.
Corro pelos corredores, pelas escadas, pela biblioteca.
Nada.
Até que vejo uma porta entreaberta nos fundos do prédio antigo.
A sala de manutenção — ninguém usa aquilo há anos.
Entro devagar.
A luz pisca, o chão range.
E ali, no meio do chão, vejo o caderno preto.
Aberto.
A última página escrita.
> “Ela merece a verdade, mesmo que me odeie por isso.”
Atrás de mim, a porta se fecha com um estalo.
Viro rápido.
Dante está ali, o rosto cansado, os olhos vermelhos como se não dormisse há dias.
— Você não devia estar aqui. —
— Então por que me trouxe? —
Ele respira fundo. — Porque eu não consigo mais mentir.
— Sobre o quê?
Ele dá um passo pra frente, e a voz sai baixa, quase quebrada.
— Sobre ela.
— A outra garota. —
Ele assente.
— Ela também acreditou em mim. E eu falhei com ela.
— Você… machucou ela? —
Ele fecha os olhos. — Não como estão dizendo. Mas o suficiente pra perder.
— E agora vai me perder também? —
Ele abre os olhos, e há algo novo neles — não raiva, não culpa, mas desespero.
— Eu não posso te perder.
— Então para de se esconder de mim.
Ele se aproxima, tão perto que posso sentir o calor do corpo dele.
Por um instante, acho que vai me tocar.
Mas ele apenas diz:
— Se eu te contar tudo, você nunca mais vai olhar pra mim da mesma forma.
— Tenta.
Ele respira fundo, e, enfim, diz:
— A verdade é que, desde o dia em que te vi, eu soube que você seria o meu fim.
Silêncio.
E, pela primeira vez, percebo que não quero salvá-lo.
Quero cair junto.
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Atualizado até capítulo 30
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