Existem fronteiras invisíveis que a gente só percebe depois que cruza.
A partir do momento em que abri aquele caderno pela segunda vez, percebi que já estava do outro lado.
E, lá, as regras são diferentes.
Dante começou a aparecer em todos os lugares onde eu estava.
No corredor. No refeitório. Na saída do colégio.
Ele não dizia nada. Só me olhava.
Mas era o suficiente.
Às vezes, parecia me vigiar. Outras, me proteger.
E, por mais errado que fosse, parte de mim se sentia mais segura quando ele estava por perto.
Talvez porque, de alguma forma, eu sabia que ele faria qualquer coisa por mim.
E esse “qualquer coisa” me assustava.
Na terça, durante o intervalo, encontrei um bilhete preso ao meu armário.
Não era como os outros.
A caligrafia era diferente — apressada, trêmula.
> “Se você soubesse o que ele fez, nunca mais o olharia nos olhos.”
O papel estava úmido, como se tivesse sido deixado às pressas sob a chuva.
Olhei em volta. Nenhum rosto conhecido.
Guardei o bilhete no bolso e o ignorei o quanto pude.
Mas o pensamento ficou martelando: o que ele fez?
Naquela tarde, o projeto de Literatura virou pretexto.
A biblioteca estava vazia. Só nós dois.
Dante parecia distraído, o olhar fixo nas janelas, como se esperasse algo ruim acontecer.
Quando finalmente falou, a voz veio baixa:
— Você confia em mim?
A pergunta me atingiu como uma lâmina.
— Por que está me perguntando isso? —
Ele desviou o olhar. — Porque acho que não devia.
Silêncio.
A chuva começou a bater contra o vidro, e o som preencheu o espaço entre nós.
— Você não está me dizendo alguma coisa, não é? — arrisquei.
Ele respirou fundo, apoiando os cotovelos na mesa. — Eu não sou a pessoa que você acha que eu sou.
— Então me mostra quem você é.
— Não posso.
— Não pode, ou não quer?
O olhar dele encontrou o meu — escuro, tenso, quase quebrado.
— Não posso, Isabella.
Levantei-me. — Você me deixa louca com esses segredos.
— E você me deixa vivo. —
As palavras dele me pararam no meio do movimento.
O jeito que ele disse…
Não foi um elogio. Foi uma confissão.
Ele se levantou também, e por um instante ficamos frente a frente.
O ar parecia mais denso, como se o mundo inteiro prendesse a respiração.
— Eu não quero te machucar — ele disse, baixo. — Mas é isso que vai acontecer se ficar perto de mim.
— Então por que não me afasta?
— Porque não consigo.
A voz dele falhou no final, e eu vi algo que nunca tinha visto antes: medo.
Não dele.
De si mesmo.
Nos dias seguintes, tentei me convencer de que deveria me afastar.
Mas cada vez que o via no corredor, o coração se traía.
Ele me olhava de um jeito que fazia o chão sumir — como se eu fosse a última coisa boa que restava.
E talvez fosse isso que me prendeu.
Na quinta-feira, depois da aula, fui até o ginásio pegar meu casaco.
As luzes estavam apagadas, mas ouvi passos.
Achei que fosse o zelador — até ouvir a voz.
— Você devia ter ido embora quando eu pedi.
Virei rápido.
Dante estava ali, encostado na parede, o rosto parcialmente coberto pela sombra.
— O que está fazendo aqui? — perguntei.
— Tentando não me perder de vez. —
Dei um passo pra trás, e ele outro pra frente.
— Dante, o que está acontecendo com você?
— Eu te disse. Eu sou um problema.
— Eu não me importo.
Ele riu — um riso curto, sem alegria. — Deveria.
— Você não entende — insisti. — Desde que te conheci, tudo mudou. Eu sinto coisas que não sentia antes.
Ele se aproximou mais. — E se isso for ruim?
— Então eu quero o ruim também.
Por um segundo, o tempo parou.
A expressão dele mudou — não era mais raiva, nem medo. Era dor.
Ele ergueu a mão, tocando meu rosto com a ponta dos dedos, leve, hesitante.
— Eu jurei que nunca mais me deixaria sentir isso.
— Isso o quê?
— Isso que você me faz sentir.
A voz dele era quase um sussurro, mas tinha a força de um grito contido.
E então, antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, ele se afastou.
Rápido. Como se fugir fosse a única forma de não quebrar algo dentro dele.
Quando voltei pra casa, o bilhete ainda estava no bolso.
"Se você soubesse o que ele fez..."
As palavras pareciam pulsar na minha mente.
Peguei o celular, abri o navegador e digitei o nome dele.
Dante Vasquez.
Nada nos registros escolares. Nenhuma rede social.
Mas então encontrei uma matéria antiga de um jornal local.
A foto estava borrada, mas o nome era o mesmo.
> “Jovem envolvido em caso de agressão grave é transferido de escola após investigação.”
O coração parou por um instante.
A data batia.
O nome, o colégio anterior. Tudo.
Fechei o celular e me sentei na cama, tentando respirar.
Não queria acreditar.
Mas, no fundo, eu sabia que era verdade.
E o pior é que nada disso me fez querer fugir.
Fez com que eu quisesse entender.
No dia seguinte, encontrei Dante no pátio, sozinho.
O vento soprava forte, as folhas giravam pelo chão.
Quando me viu, ele soube.
Pelo meu olhar.
— Você pesquisou. — disse.
Assenti.
Ele respirou fundo. — Então você sabe.
— Eu sei o que disseram. Quero saber o que aconteceu.
— O que aconteceu não muda quem eu sou agora.
— Então me conta pra eu decidir.
Por um momento, ele hesitou. Os olhos escureceram.
E então, finalmente, ele disse:
— Eu machuquei alguém. Mas não do jeito que parece.
— Como foi, então?
— Foi por alguém que eu amava.
As palavras dele ecoaram dentro de mim, lentas, doloridas.
Antes que eu pudesse perguntar mais, ele completou:
— E é por isso que eu sei o quanto o amor pode destruir.
A campainha tocou, chamando para a próxima aula.
Mas nenhum de nós se moveu.
Ficamos ali, presos entre o que foi dito e o que ficou no ar.
Dante me olhou uma última vez antes de se afastar.
E naquela última troca de olhares, percebi uma verdade simples e cruel:
Nós dois estávamos quebrados.
E, juntos, poderíamos nos salvar.
Ou nos destruir.
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Atualizado até capítulo 30
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