O sol queimava, queimava muito. A essas horas quem poderia dizer mais sobre isso seriam os camelos dos peregrinos. sério! Mesmo que parem pra descansar, aquelas montanhas desengonçadas nas costas de cada uma, certamente queimavam.
O sol do meio dia é o maior castigo pra quem caminha nessas longas...
Longas...
Não são estradas
São milhas e milhas de areia e mais areia, fofa, claras, traiçoeiras quando de baixo de uma ventania.
Gostava de observar as caravanas de passagem pelo deserto.
Em um certo ponto de Fez dava pra enxergar, os bichos grandes, os homens não tão grandes assim. Mercadores, talvez? Peregrinos? Melhor... Balduínos?
Existiam mais perguntas do que respostas na cabecinha de Amir. Sua cabecinha de criança de apenas dez anos não lhe permitia responder suas questões pré-adolescentes. Na verdade, não foi criado pra ser um grande questionador, tão pouco um pensador. Foi criado pra levar as tradições de família e as religiosas a frente. Era isso, isso bastava! Não podia se dar ao luxo de pensar enquanto olhava a extensão de areia, nem ao olhar o horizonte aonde a luz do sol lhe cegava um pouco.
—Vamos, Amir. Sua Oummi (mãe) está esperando com o almoço pronto.
— Sim, Baba (pai)
Amir bate a túnica branca que usava, enrola o tapete que usara para o Dhuhr (oração) o colocando por baixo do sovaco assim como seu Baba fazia.
—Baba?
— Sim?
— Podemos ter mais orações assim no deserto? — Amir coça um pouco a ponta do nariz, comichou graças a areia que subiu com a leve brisa passageira.
— Se estivermos próximos, sim.
— Gosto do deserto. Apesar de não ter as flores lindas que temos no canteiro de casa.
Samir sorri, gostava da delicadeza que seu filho carregava quando o assunto era a natureza, afinal, uma criatura de Allah deveria mesmo contemplar todas as suas criações.
— Desertos não são bons para flores, pense que flores nascem nos lugares certos, lugares dados a elas por Allah.
— Allah pensou em tudo, Baba.
— Pelo profeta, não diga coisas assim nessa entonação, fica parecendo que nada ensinei a meu filho.
— Desculpa, não voltará a se repetir.
Samir coça a barba, pensou ter pego muito no pé de seu filho, mas Amir passa por essas fases de descoberta era o momento perfeito para doutrinar. Afinal, Amir levaria o legado da família, orgulharia sua mãe na Medina e no solo de todo o país, seria seu maior orgulho.
Amir caminhava encarando cada lugar com os olhos brilhantes, estava calor, a túnica de mangas longas o deixava aquecido, mas não reclamava, era filho do mais respeitado Imã deveria andar como o costume mandava.
Já em casa, tira as sandálias que usava, anda até a pia do pequeno quintal onde sua mãe gostava de lavar roupa enquanto cantava. Lava as mãos. Agradece a Allah pela água limpa, e pela oportunidade que muitos não tem de estar em casa.
Ao entrar, Zafira arrumava as coisas na mesa, ela tinha os cabelos soltos, e o cheiro de flores já alcançava as narinas do pequeno, misturada com o cheiro do carneiro assado que fazia seu estômago reclamar de fome.
— Oummi! —ele corre para sua mãe e abraça.
—Habib... — suas mão delicadas depositam um carinho nos cabelos negros de Amir, um beijo é estalado em sua testa e ela se endireita.
— Oramos no deserto, Oummi — ela sorri — a medina estava cheia, vi véus de seda que não estavam lá ontem.
—Veus de seda?
—Vou comprar muitos quando crescer, a senhora vai andar muito mais enfeitada.
— Habib, farás essas coisas pra sua esposa — um sorriso doce se desfaz ao ver Samir entrar na sala e se sentar nas almofadas — a esposa virá em primeiro — sua atenção volta ao homem que coçava a barba pra fazer, ela quase se curva enquanto forçava um sorriso a ele.
— Ela há de entender! Há de entender! —Amir diz com confiança.
— Vamos almoçar... —diz a mulher.
— Chega de assunto, Amir. —o pai diz com firmeza.
— Sim, senhor.
Quando todos estão perante a mesa de centro, Samir faz um agradecimento ao Mohammed, e a Allah. Comem em silêncio. Há muito já não se via festas, e nem sorrisos a mesa, mas Amir ainda era alheio ao que acontecia em casa, não entendia, embora estranhasse o fato de sua mãe não se enfeitar tanto, não usava seda bordada, e nem as jóias que usava há tempos atrás. Não era assunto pra criança, afinal
Depois da última oração do dia, o garotinho desceu as escadas para roubar algum doce na cozinha, peripécias de criança, nada muito fora do normal, foi nesse instante que algo lhe chamou a atenção, um gatinho andava no muro de sua casa, ele tinha algo preso em sua patinha. Amir correu para fora de casa, tinha a tal regra de não por os pés pra fora após a última oração, mas o gatinho é uma criação de Allah... Certo?
Certo!
Com calma e em silêncio, Amir se aproximou, o gato pulou o muro. Amir se chateou com isso. Abriu o portão e pegou o gatinho pelo cangote que se debateu. Se abaixou após levantar a túnica até os joelhos pra não atrapalhar. Tremeu um pouco de frio, já se arrependendo por estar fora a essa hora.
Levou uma leve mordida do gato, que se acalmou ao ver que Amir queria ajudar e não machucar. Mas foi aí que o menino olhou para frente, e depois para os lados, escutou uma risada e dispersou do gato que saiu correndo seguindo seu rumo de passeio noturno. Pôs os pés um pouco mais para a rua, cruzou os braços e viu de onde o som vinha.
O que seus olhos contemplavam era...
Lindo?
Achava lindo, e diferente de tudo o que imaginou.
Não sabia o que eram beijos, toques, e nem muito menos os sorrisos que surgem no rosto entre o roçar de lábios. Menos ainda sabia que isso era possível entre dois homens.
Aos seus olhos aquilo era poético.
Tão certo quanto o curso que o rio faz pra encontrar o mar.
Tão certo quanto a delícia das refeições preparada por Oummi.
Perfeito...
— AMIR!
O grito o tirou de órbita, assim como tirou do momento perfeito os dois homens que se beijavam nas sombras, a lua no céu não os tocava com sua luz, mas para Samir, deveria! Era lindo e perfeito para ser tocado por algo tão sublime. O que Amir não esperava era que seu pai fizesse um escândalo, o que fez toda Fez — ok, exagerei — melhor dizendo, aquela pequena ruela despertar. Não demorou muito para que vários homens saíssem de suas casas e começassem a ficar enraivecidos.
— Amir, entra! Quando voltar teremos uma bela conversa!
— Sim, Baba.
Entrou a contra gosto.
Não entendeu.
Porque se enfureceram tanto com algo tão bonito e que fez o coração de Amir bater de forma diferente?!
Entendeu quando disseram:
"Matem essas aberrações, em nome do profeta! Em nome de Allah!"
Foi aí que soube que, de alguma forma, algo tão bonito era proibido
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Atualizado até capítulo 22
Comments
Velha Dos Gatos
já começa mostrando a homofobia do país, e além disso, eu amei! Está tudo bem descrito, gostei.
2025-10-04
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