Capítulo 4 — Vidro, Ouro e Farpas

•Tee

O carro deslizava silencioso pela avenida, um luxo sobre rodas. Eu observava as luzes da cidade refletirem no capô negro, tentando decidir qual personagem interpretar naquela noite. O herdeiro educado e complacente? O Namorado perfeito? Ou o garoto que só queria quebrar alguma coisa e ouvir o estalo dos seus próprios erros?

Bass dirigia com a mesma postura rígida e inquebrável de sempre. Às vezes, eu odiava o jeito como ele parecia fazer parte do carro, firme e funcional como o couro dos bancos. Mas uma parte de mim que eu não suportava admitir se acalmava com aquela presença constante.

— Não fale nada desnecessário — ele disse, sem tirar os olhos da rua.

—Ah, claro. Vou me limitar às frases do manual do namorado de vitrine, capítulo um: “Boa noite, foi um prazer.”

—Você sabe do que estou falando. Os pais dela fazem perguntas para encontrar fraquezas.

—E você? — virei o rosto, tentando capturar seu olhar no escuro. — O que você vê em mim?

—Defeitos. — Ele piscou as setas, mudou de faixa. — E pessoas que adoram explorá-los.

Meu sorriso veio automático, para esconder o desconforto que sua honestidade brutal me causava. Eu tinha um talento especial para estragar tudo que tocava; talvez esse fosse o único dom verdadeiramente meu.

A casa dos pais de Fah surgiu como uma fortaleza de vidro e ouro, imponente no ponto mais alto do bairro mais caro da cidade. Luzes ornamentais alinhavam a entrada; carros escuros e caros — a demonstração de poder usual da nossa gente. Bass parou diante do tapete de mármore com precisão absoluta. Abriu minha porta. O gesto era polido; sua mão, firme e decisiva.

— Não se afaste. — Ele falou baixo.

— Eu nunca me afasto. Eu me exibo. — Desci, ajustei o paletó, senti o peso frio do relógio no pulso.

Fah me esperava no topo dos degraus, sorrindo como uma imagem de revista. O vestido perolado colava perfeitamente em seu corpo, desenhado para ser adorado por qualquer lente de câmera. Ela pousou os lábios na minha bochecha; um beijo sem calor, sem sentimento. Apenas perfume.

— Chegou, finalmente. — Seu sorriso permaneceu fixo. — Meus pais estão na sala de arte.

—Que conveniente — murmurei. — Porque eu me sinto uma peça de museu hoje.

Ela ignorou a provocação, entrelaçando seu braço no meu com possessividade. Ao passar, seus olhos roçaram por Bass — um corte rápido e calculado. Ele inclinou a cabeça, impenetrável, e assumiu sua posição um passo atrás, perto o suficiente para intervir, distante o bastante para não ser notado.

Dentro, a casa respirava riqueza. O tipo de riqueza que não precisa se anunciar. Tapetes feitos à mão, esculturas de resina polida, vidro por todo lado; o mundo refletia versões de mim que eu preferia não ver.

— Tee! — A voz do pai de Fah encheu o salão. Um homem de porte imponente, cabelo grisalho cortado com precisão. — Rapaz, você parece mais maduro desde a última vez.

—Cresci sob responsabilidades — respondi, apertando sua mão firme.

—Responsabilidades são o preço do sucesso — ele retrucou, sorrindo com os dentes e com a mensagem por trás.

A mãe de Fah aproximou-se como uma fragrância rara: passos leves, sorriso preciso. Tocou meus ombros, me girou levemente como se ajustasse um objeto de decoração.

— Vocês estão lindos juntos. — O “vocês” não me incluía de verdade. Era sobre a imagem que ela queria projetar.

— O jantar está servido — anunciou um mordomo que parecia ter nascido para a função. Fah apertou meu braço; a aliança dela pressionou minha pele. Bass permaneceu ao fundo, encostado em um pilar.

À mesa, os pratos foram servidos com cerimônia. Conversas superficiais, risadas contidas, comentários que carregavam perguntas disfarçadas.

— Tee, seu pai mencionou a possível joint-venture com a família Rattanakorn — disse o pai de Fah. — Vocês progrediram?

—Depende do que chama de progresso. — brinquei.

—Chamo de contrato assinado. — Ele não brincou.

Senti o golpe. Sorri como me ensinaram a fazer diante de quem testa. Fah interveio, suave:

— Pai, hoje é um jantar, não uma reunião de negócios.

— Negócios são a melhor sobremesa, filha — a mãe comentou, e seu garfo tilintou no cristal. — A propósito, Tee, há rumores sobre sua vida social. Jovens serão jovens, mas as colunas sociais são implacáveis.

Eu não olhei para Bass. Não precisava. Senti o ar mudar atrás de mim, como se uma tempestade se aproximasse.

— Rumores vendem mais que verdades — respondi. — Mas posso garantir, senhora, que eu durmo muito bem.

— Dorme, mas não cedo — Fah falou. Seu sorriso não alcançou os olhos.

Um primo dela, Daran — rosto bonito demais para ser confiável — inclinou-se à frente, com ar provocador.

— E o seu guarda-costas? — apontou com o queixo em direção a Bass. — Ele dorme?

— Ele trabalha — respondi, rápido. — O que é mais do que posso dizer sobre alguns.

Daran riu. — Gosto dele. Tem presença. Mas é curioso… — virou-se para os tios — …como contratamos pessoas de fora para fazer o que a família não consegue, não é?

As palavras pairaram no ar, pesadas. Fah pousou o garfo. O pai dela sorriu, incentivando.

— Tee — a mãe retomou, — você sabe que todos observam. E Bass, é? — Ela finalmente o encarou. — Suponho que entenda que sua presença é… necessária enquanto o jovem amadurece.

— Entendo. — A voz dele veio baixa e afiada. — E entendo melhor do que qualquer um aqui o que acontece quando alguém cai.

Ninguém respondeu. O barulho de um copo sendo acomodado quebrou o silêncio. O mordomo surgiu com o próximo prato, um salvador oportuno.

Eu respirei; meu corpo relaxou lentamente, como alguém saindo de águas profundas. E então, sem aviso, o ambiente foi invadido por um som seco — o estalo de uma câmera.

— Paparazzi no corredor leste, senhor — sussurrou alguém ao ouvido do pai de Fah.

Cadeiras arrastaram no mármore. Instinto. Pessoas ricas odeiam câmeras mais do que odeiam perder dinheiro.

— Por que eles estão dentro da propriedade? — a mãe perguntou, com voz cortante.

—Portão de serviço — alguém sugeriu. — Daran trouxe amigos?

Daran ergueu as mãos, inocente. — Eu não convido intrusos.

Eu já estava de pé antes de pensar. E Bass… Bass já não estava por perto. Ele se movia como uma sombra com propósito. Vi seu ombro cruzar o corredor, o terno escuro cortando a luz das lâmpadas. Eu o segui, porque era o que meu corpo fazia quando esquecia as regras: seguia o que podia me salvar de mim mesmo.

O corredor leste era uma redoma de vidro — e do lado de fora, no jardim, duas figuras se esgueiravam entre os arbustos com lentes longas. O primeiro clique me capturou de perfil. O segundo, eu levantei a mão. O terceiro, Bass inclinou a câmera para o chão com a calma de quem sabe exatamente como imobilizar.

— Você está em propriedade privada — ele disse. — Saia por onde entrou.

— Liberdade de imprensa — o homem tentou, mas a voz falhou.

Os seguranças da casa chegaram tarde, como sempre. A confusão dissolveu-se na promessa de que nada seria publicado.

Bass me olhou de cima a baixo, avaliando se eu tinha me machucado, se eu tinha me exposto, se eu tinha adicionado mais um erro à minha coleção.

— Você deu a eles o que queriam ao vir até aqui — disse, simples.

—E você deu a eles uma história menos interessante. — Eu ri. — Herdeiro entediado é salvo por seu muro de mármore.

Em quanto caminhamos pelo corredor tive vontade de tocar o punho de sua camisa; um impulso absurdo.

— Volte para a mesa — ele disse, com uma ordem que carregava uma promessa indecifrável. — E não se afaste de mim.

— Isso soa quase íntimo — provoquei.

—Não é. É seguro.

E, por algum motivo tão ridículo quanto vital, obedeci.

---

• Bass

O cheiro de grama molhada impregnou o tecido do meu paletó, misturado ao perfume caro que Tee sempre deixava no ar. Eu caminhava meio passo atrás dele, observando a postura, as mãos nos bolsos, o queixo erguido por puro instinto de defesa social. Não era coragem; era sobrevivência. Às vezes ele confundia as duas.

A mesa nos recebeu de volta com taças cheias e sorrisos. A mãe de Fah agradeceu aos seguranças com frugalidade; o pai comentou sobre reforçar a equipe; Daran revirou os olhos, achando o perigo parte do entretenimento. Fah… Fah pousou a mão na manga do paletó de Tee e apertou, devagar. O gesto tinha dois destinatários: as câmeras que já se foram e eu, que nunca deveria ser notado.

— Acho que o susto passou — ela disse, misturando doçura e reprovação. — Vamos ao brinde?

O pai ergueu a taça. Os negócios seriam retomados depois. Eu permaneci em pé, um passo atrás da cadeira de Tee, postura que me ensinaram a manter por horas sem vacilar. O olhar de Daran percorreu meu rosto como quem procura uma falha. Não encontrou.

— Conte-me, Bass — ele insistiu, admirando seu próprio reflexo —, onde aprendeu a imobilizar câmeras assim?

—Em lugares onde não eram câmeras que apontavam para mim. — Não sorri.

O pai de Fah gostou da resposta. Alguns homens apreciam quando a violência está do lado certo.

Tee mexia a taça sem beber. Seus olhos pousavam na borda, no vazio, em mim, e retornavam como se buscassem constantemente uma rota de fuga. Eu preferia quando ele estava irritado; seu silêncio era perigoso. Conheço o som de quem quer testar seus limites até sentir medo o suficiente para seguir vivo.

— Vocês dois — a mãe de Fah encaixou as palavras entre um prato e outro — deveriam considerar a data da festa de anúncio. Nada exagerado; elegante.

—Naturalmente — o pai completou. — E mantendo, é claro, a postura que esperamos de vocês… em tudo.

O garfo de Tee parou no ar. Seus dedos apertaram o cabo com força suficiente para embranquecer as juntas. Inclinei-me um milímetro, quase imperceptível, caso ele decidisse bater na mesa. Ele não bateu. Engoliu a raiva com o olhar e sorriu.

— Postura é o que não nos falta.

Fah sorriu de volta, vitoriosa. Mas seus olhos pousaram em mim por um segundo a mais do que era necessário. Não havia ódio ali. Havia cálculo. E um tipo especial de antecipação: a de quem fareja conflito e já escolheu seu lugar para sair ilesa, não importa quem caia.

Quando o jantar terminou, veio o ritual das despedidas encenadas. Tee caminhou pela galeria com Fah grudada em seu braço, os dois formando a imagem que todos desejavam registrar. Eu os seguia, catalogando saídas, observando detalhes. O vento do jardim tentou entrar pela porta lateral. O vidro não permitiu.

Na escadaria, antes de chegarmos ao carro, Fah se virou para mim.

— Obrigada por sua… diligência. — A palavra foi colocada exatamente onde ela queria: um degrau abaixo. — Espero que entenda como certas aparições indesejadas prejudicam… reputações.

— Meu trabalho é impedir danos — respondi. — E garantir que nenhuma reputação precise se sustentar sem base.

Ela inclinou levemente o queixo, reconhecendo o golpe embrulhado em polidez. Depois se voltou para Tee, e ali executou a última cena: a mão em sua cintura, o rosto próximo, o beijo no canto da boca. Um beijo que dizia ao mundo tudo o que, no fundo, não significava nada.

Eu desviei os olhos por disciplina. Mas o som que veio depois não era de beijo: era de vidro. Tee vacilou por um instante, como se seu rosto tivesse lembrado algo que seu corpo tentava esquecer. Quando nossos olhares se encontraram por acaso — e talvez nada na minha vida tenha sido menos acidental — houve um estalo silencioso. Foi rápido. Foi o suficiente.

— Vamos — eu disse, porque era a palavra segura.

No carro, o silêncio pairou entre nós como um terceiro passageiro. Liguei o motor. Ele observava a cidade. Metade de minha mente planejava a rota mais eficiente; a outra tentava não reviver o olhar do corredor — o olhar que destrói coisas.

— Você vai dizer que fui imprudente por levantar da mesa quando ouvi as câmeras — ele falou, finalmente.

—Vou dizer que você agiu como você.

—E você? Agiu como o quê?

—Como o que sou.

—Uma pedra?

— Um muro. — Engatei a marcha. — Até alguém decidir que quer uma porta.

Ele não respondeu. Mas o espelho me mostrou um sorriso breve, sem dentes, que veio e se foi como um farol em mar revolto.

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• Fah

Aprendi cedo que nada é mais valioso que a ilusão de controle. Minha mãe diz que a verdadeira riqueza é não precisar discutir, apenas ajustar. Meu pai diz que a maior força é não precisar demonstrá-la, apenas existir. Eu digo que o mundo pertence a quem entende o momento exato de sorrir.

Tee é perfeito para o papel — quando quer. Quando esquece o roteiro, no entanto, algo em mim se inquieta. Não por amor; essa palavra é grande demais para ser desperdiçada. Por garantia. Eu não cedo espaço. Eu não perco o palco.

No topo da escadaria, testemunhei aquele instante fugaz: o olhar que não era meu, a tensão que não era para as câmeras, o raio que não cai duas vezes no mesmo lugar porque, da primeira, a gente remove o lugar.

Bass é um problema interessante. Jovem, correto, severo de um modo que as pessoas confundem com integridade — e às vezes é. Tee reage a ele como o fogo reage ao oxigênio: não é que precise, é que queima melhor.

Posso lidar com isso. Sou filha da casa de vidro e ouro. Sei o que fazer com rachaduras.

— Mãe — disse, quando retornei à sala —, a festa de anúncio… vou escolher um vestido que apague qualquer sombra.

—Querida — ela sorriu —, nenhum vestido faz isso sozinho.

—Eu sei — respondi. — Por isso vou escolher também a iluminação.

E, enquanto os seguranças refaziam o caminho das câmeras, eu refiz o mapa em minha mente, mais crucial que qualquer alarme: o mapa das pessoas. Onde cada uma entra. Onde cada uma sai. E onde eu estarei quando as portas se abrirem.

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• Tee

A cidade reverberava nos vidros do carro quando passamos pela rotatória que leva de volta ao meu mundo. A mão de Bass estava no volante como se pudesse dirigir o destino. Eu queria dizer algo que machucasse e aliviasse ao mesmo tempo, mas não existe frase assim. Sempre se escolhe um lado.

— Eles querem marcar uma data — falei.

—Eu ouvi.

—E você?

—Eu não caso com você, Tee. — O canto de sua boca sugeriu um quase-sorriso. — Só te mantenho vivo até lá.

— Até onde? — Ouvi minha própria voz e me odiei pela vulnerabilidade nela.

—Até o próximo erro — ele disse, com uma honestidade tão pura que cortou como lâmina.

Eu ri. Não porque fosse engraçado, mas porque às vezes o riso é o único abrigo possível.

— Sabe o que é engraçado? — perguntei. — Quando as câmeras disparam, eu me sinto menos… invisível.

—Você não é invisível — ele disse, e só então me olhou. — Só está olhando no espelho errado.

Fiquei quieto. O carro entrou na alameda da mansão. As luzes do jardim iluminaram o painel. Um desejo estúpido de pedir que ele ficasse comigo até eu adormecer surgiu em meu peito e se desfez antes de virar som. Em vez disso, soltei o cinto, abri a porta, desci.

— Boa noite, Bass.

—Boa noite.

Dei três passos. Parei. Virei. Ele ainda estava lá, a mão no volante, o rosto no escuro, apenas os olhos captando o restante de luz. Por um segundo, não éramos patrão e empregado,Por um segundo, éramos apenas a coisa que dois corpos reconhecem quando a mente demora a entender.

— Obrigado. — A palavra saiu pequena.

—Tranque a porta. — A dele saiu sólida.

Entrei. Tranquei. Encostei as costas na madeira e deslizei até o chão frio, mãos no rosto, o coração batendo forte na garganta.

Eu não tenho medo de câmeras. Tenho medo do que elas não veem.

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