Capítulo 3 — O Peso do Não-Dito

Na manhã de sábado, o sol entrava preguiçoso pela janela da cozinha. Clara já estava sentada no chão, rodeada por bonecas e peças coloridas, inventando um mundo onde todas as princesas eram também guerreiras. Elisa olhava para a filha e sentia uma ternura que quase a salvava de si mesma. Quase.

Arthur havia saído cedo, alegando uma reunião emergencial. Elisa não acreditava mais nessas desculpas, mas não ousava perguntar. Guardava as palavras na garganta como quem segura um copo de vidro: sabendo que, se deixasse cair, o estrondo seria irreversível.

Foi Marina quem ligou, a voz animada do outro lado da linha:

— Preciso te tirar de casa hoje. Café, cinema ou até feirinha de rua, você escolhe.

Elisa pensou em recusar, como vinha fazendo nas últimas semanas. Mas, ao olhar para o recibo que ainda guardava na memória — o restaurante caro, do outro lado da cidade —, sentiu que precisava respirar fora daquelas paredes.

— Café está ótimo — respondeu, a voz mais fraca do que pretendia.

O encontro aconteceu em uma cafeteria charmosa do centro. Marina chegou com sua energia habitual, cabelos soltos ao vento, um sorriso largo que sempre parecia iluminar os espaços. Elisa, por outro lado, entrou carregando um silêncio que não sabia como traduzir.

— Você está abatida, amiga. — Marina não demorou a observar, apoiando a mão sobre a dela. — O que está acontecendo?

Elisa desviou os olhos para a xícara, observando o café preto refletir a luz da manhã. O coração batia forte, como se quisesse empurrar as palavras para fora. Ainda assim, demorou.

— Acho que Arthur… — começou, mas a voz falhou. Respirou fundo e recomeçou. — Acho que ele não é mais o mesmo.

Marina franziu a testa, inclinando-se para mais perto.

— O que você viu?

Elisa não contou tudo. Não falou do perfume, da voz baixa no escritório, do recibo escondido no bolso do paletó. Limitou-se a dizer:

— Ele anda distante. E eu sinto que tem alguma coisa errada.

Marina ficou em silêncio por alguns segundos, avaliando as palavras com cuidado.

— Elisa, você sempre foi generosa demais. Mas não pode ignorar sinais. Precisa abrir os olhos.

A frase bateu fundo, como um empurrão. Elisa sabia que Marina estava certa. Mas encarar significava admitir. E admitir significava desmoronar o mundo que havia construído com tanto esforço.

Quando voltou para casa, encontrou Clara adormecida no sofá, abraçada a uma das bonecas. Arthur não estava. Sobre a mesa, apenas um bilhete rápido: Reunião demorou, volto tarde. Não me esperem.

Elisa o leu em silêncio, passou a mão sobre o papel como se pudesse decifrar algo nas entrelinhas. Mas só encontrou o vazio.

O vento frio da noite trouxe o cheiro das árvores do quintal. Elisa abraçou os próprios braços, tentando se aquecer, mas percebeu que o frio vinha de dentro. Havia algo que não se dissipava com casacos ou mantas. Era um vazio que se expandia.

Ela pensou em ligar para Marina de novo, mas não quis parecer frágil. Guardou o celular na mesa, como quem teme que o aparelho revele mais do que deve. Os olhos insistiam em buscar a tela acesa, na expectativa de uma mensagem de Arthur, alguma justificativa, qualquer palavra que quebrasse o silêncio. Mas nada chegou.

Lá pelas onze, a porta da frente se abriu. Arthur entrou, já sem paletó, a gravata desfeita, o perfume adocicado novamente impregnando o ar. Ele tentou sorrir, mas o sorriso não chegou aos olhos.

— Vocês jantaram? — perguntou, como se o cuidado ainda fizesse parte de si.

Elisa apenas assentiu, olhando de longe.

— Clara já está dormindo.

Arthur se aproximou, deu-lhe um beijo breve na testa e subiu as escadas. Nenhuma explicação, nenhum detalhe, apenas a pressa em se recolher.

Elisa ficou sozinha na sala, o coração batendo como se tentasse avisá-la de algo que a mente não queria ouvir. Foi até o sofá, recolheu a manta caída, e ao ajeitá-la percebeu o celular de Arthur esquecido entre as almofadas.

A tela ainda acesa mostrava uma prévia de mensagem: “Foi perfeito. Já com saudade.”

O coração vermelho pulsava no canto da notificação.

Elisa congelou. Os dedos tremeram, a respiração falhou. Por um instante, pensou em deslizar a tela, abrir a conversa, arrancar de vez o véu da dúvida. Mas a mão recuou. Deixou o aparelho ali, como se queimasse.

A mente se dividiu em duas vozes: uma que gritava que precisava saber, e outra que implorava para manter a farsa, pelo menos mais um pouco.

Ela escolheu o silêncio. Subiu as escadas, deitou-se ao lado dele, fingindo não ver, fingindo não sentir.

Mas, naquela noite, a palavra confiança se quebrou dentro dela como um vidro fino. Não em pedaços grandes — que se varrem, se juntam —, mas em estilhaços miúdos, impossíveis de recolher.

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Comments

Sandra Camilo

Sandra Camilo

que raiva Elisa, acorda, já estou ansiosa, posta mais capítulos hj por favor autora linda

2025-09-06

0

Maria Jussara

Maria Jussara

menina vc tem sangue frio demais ,eu teria lido essas mensagens todas já

2025-09-06

0

MARIA RITA ARAUJO

MARIA RITA ARAUJO

misericórdia, isso que é ser paciente demais 🤦🏻‍♀️

2025-09-07

0

Ver todos
Capítulos
1 Prefácio — As regras invisíveis
2 Capítulo 1 — A Fenda na Rotina
3 Capítulo 2 — O Silêncio das Portas Fechadas
4 Capítulo 3 — O Peso do Não-Dito
5 Capítulo 4 — Estilhaços Invisíveis
6 Capítulo 5 — A Primeira Ruptura
7 Capítulo 6 — A Primeira Centelha
8 Capítulo 7 — O Mundo Além das Paredes
9 Capítulo 8 — A Porta Entreaberta
10 Capítulo 9 — O Primeiro Sim
11 Capítulo 10 — Entre Vidros e Silêncios
12 Capítulo 11 — O Olhar por Trás do Vidro
13 Capítulo 12 — Depois do Vidro, a Cidade
14 Capítulo 13 — Entre o Rigor e o Acaso
15 Capítulo 14 — O Desconforto dos Acostumados (I)
16 Capítulo 14 — O Desconforto dos Acostumados (II)
17 Capítulo 15 — O Jogo das Aparências
18 Capítulo 16 — As Máscaras em Ruína
19 Capítulo 17 — A Brecha no Muro
20 Capítulo 18 — A Arma do Silêncio
21 Capítulo 19 — O Peso das Provas
22 Capítulo 20 — As Peças em Movimento
23 Capítulo 21 — Entre Linhas e Olhares
24 Capítulo 22 — Frestas no Concreto
25 Capítulo 23 — Quando o Vidro Respira
26 Capítulo 24 — O Desespero Bate à Porta
27 Capítulo 25 — O Coração Entre Linhas
28 Capítulo 26 — O Fim das Correntes
29 Capítulo 27 — O Peso da Rotina e a Luz por Trás do Vidro
30 Capítulo 28 — A Linha que se Rompe
31 Capítulo 29 — O Incêndio Silencioso
32 Capítulo 30 — A Noite que Rompeu o Vidro
33 Capítulo 31 — Segredos em Chamas
34 Capítulo 32 — A Noite Inteira
35 Capítulo 33 — O Amanhecer das Consequências
36 Capítulo 34 — Quando as Sombras Gritam
37 Capítulo 35 — A Confrontação
38 Capítulo 36 — O Escândalo
39 Capítulo 37 — A Outra Verdade
40 Capítulo 38 — O Último Golpe de Arthur
41 Capítulo 39 — Vozes no Tribunal
42 Capítulo 40 — O Julgamento do Silêncio
43 Capítulo 41 — Entre Verdades e Promessas
44 Capítulo 42 — O Sopro da Paz
45 Capítulo 43 — Entre o Amor e os Restos da Guerra
46 Capítulo 44 — Asas de Liberdade
47 Capítulo 45 — Epílogo: Asas Abertas
Capítulos

Atualizado até capítulo 47

1
Prefácio — As regras invisíveis
2
Capítulo 1 — A Fenda na Rotina
3
Capítulo 2 — O Silêncio das Portas Fechadas
4
Capítulo 3 — O Peso do Não-Dito
5
Capítulo 4 — Estilhaços Invisíveis
6
Capítulo 5 — A Primeira Ruptura
7
Capítulo 6 — A Primeira Centelha
8
Capítulo 7 — O Mundo Além das Paredes
9
Capítulo 8 — A Porta Entreaberta
10
Capítulo 9 — O Primeiro Sim
11
Capítulo 10 — Entre Vidros e Silêncios
12
Capítulo 11 — O Olhar por Trás do Vidro
13
Capítulo 12 — Depois do Vidro, a Cidade
14
Capítulo 13 — Entre o Rigor e o Acaso
15
Capítulo 14 — O Desconforto dos Acostumados (I)
16
Capítulo 14 — O Desconforto dos Acostumados (II)
17
Capítulo 15 — O Jogo das Aparências
18
Capítulo 16 — As Máscaras em Ruína
19
Capítulo 17 — A Brecha no Muro
20
Capítulo 18 — A Arma do Silêncio
21
Capítulo 19 — O Peso das Provas
22
Capítulo 20 — As Peças em Movimento
23
Capítulo 21 — Entre Linhas e Olhares
24
Capítulo 22 — Frestas no Concreto
25
Capítulo 23 — Quando o Vidro Respira
26
Capítulo 24 — O Desespero Bate à Porta
27
Capítulo 25 — O Coração Entre Linhas
28
Capítulo 26 — O Fim das Correntes
29
Capítulo 27 — O Peso da Rotina e a Luz por Trás do Vidro
30
Capítulo 28 — A Linha que se Rompe
31
Capítulo 29 — O Incêndio Silencioso
32
Capítulo 30 — A Noite que Rompeu o Vidro
33
Capítulo 31 — Segredos em Chamas
34
Capítulo 32 — A Noite Inteira
35
Capítulo 33 — O Amanhecer das Consequências
36
Capítulo 34 — Quando as Sombras Gritam
37
Capítulo 35 — A Confrontação
38
Capítulo 36 — O Escândalo
39
Capítulo 37 — A Outra Verdade
40
Capítulo 38 — O Último Golpe de Arthur
41
Capítulo 39 — Vozes no Tribunal
42
Capítulo 40 — O Julgamento do Silêncio
43
Capítulo 41 — Entre Verdades e Promessas
44
Capítulo 42 — O Sopro da Paz
45
Capítulo 43 — Entre o Amor e os Restos da Guerra
46
Capítulo 44 — Asas de Liberdade
47
Capítulo 45 — Epílogo: Asas Abertas

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