A vida de Elisa tinha se moldado em torno de pequenos rituais. O despertador tocava às seis, invariavelmente. O som insistente era o ponto de partida de um roteiro que se repetia dia após dia, como uma peça ensaiada até a exaustão. Ela se levantava primeiro, acendia as luzes baixas da cozinha, preparava o café coado com o cuidado de quem acredita que cada detalhe pode sustentar o humor de uma manhã inteira. Duas colheres de açúcar para ela, nenhuma para Arthur, que dizia preferir o sabor “limpo” do café forte.
Pouco depois, os passos pequenos de Clara ecoavam pelo corredor. O cabelo castanho claro sempre arrepiado pelo travesseiro, o sorriso ainda sonolento, o pedido de colo como primeiro gesto do dia. Elisa a acomodava no balcão da cozinha, enquanto separava o uniforme da escola e perguntava qual cor de laço a filha queria usar. O rosa era quase sempre o eleito.
Arthur surgia logo em seguida, já vestido com a camisa social e o paletó, como se a pressa não lhe permitisse atrasos sequer dentro de casa. O celular nunca saía do bolso da calça, e os olhos, muitas vezes, estavam voltados para a tela antes mesmo de cumprimentar a família. Ainda assim, havia o beijo rápido em Elisa, o sorriso dedicado a Clara, e a frase apressada:
— Hoje o dia promete.
Era assim que ele se despedia, como se o mundo corporativo fosse um território em guerra e ele precisasse partir todos os dias para conquistar novos espaços.
Elisa assistia a tudo em silêncio. Sentia-se, ao mesmo tempo, parte e espectadora daquela cena. Havia amor — ou pelo menos o que ela acreditava ser amor —, mas também havia um vazio discreto, uma lacuna que se ampliava a cada rotina repetida.
Naquela terça-feira, após deixar Clara na escola, Elisa voltou para casa e ligou a televisão. Enquanto lavava a louça do café, ouviu o noticiário econômico anunciar mais uma fusão milionária. O nome que se destacou entre os gráficos foi o de Heitor Valentim, CEO da Valentim Holdings. A câmera mostrou a figura alta, postura impecável, olhar frio. Um homem que parecia carregar o peso do poder como quem veste uma segunda pele.
Elisa não deu grande importância. Mudou de canal, como sempre fazia quando o assunto era o mercado financeiro. Mas uma sutil inquietação ficou presa em algum canto da mente.
À noite, depois do banho de Clara e da rotina de histórias — a borboleta Dora, que tinha medo de voar alto —, Elisa desceu até a cozinha. Arthur ainda não havia chegado. A desculpa, via mensagem, foi a de sempre: reunião estendida, cliente exigente. Ela aqueceu o jantar, deixou o prato dele coberto no fogão e se sentou à mesa com uma xícara de chá.
Olhou a casa ao redor — tudo em ordem, cada objeto no lugar — e se perguntou se era isso que chamavam de felicidade. Um lar perfeito, uma filha saudável, um marido trabalhador. Mas por que, então, a sensação de estar sempre à beira de algo que ela não conseguia nomear?
Na tela do celular de Arthur, esquecida no sofá, uma notificação brilhou. O nome não era familiar. O ícone tampouco. Elisa sentiu um aperto no estômago, uma pontada que não soube explicar. Não tocou no aparelho. Regras invisíveis a impediam.
Ainda assim, a fenda estava lá. Pequena, quase imperceptível, mas real. E uma vez que a gente vê uma fenda, é impossível desver.
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Atualizado até capítulo 47
Comments
MARIA RITA ARAUJO
o mal se nós mulheres, é achar que tá tudo certo e se ilude
2025-09-07
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Sandra Camilo
acorda , vc merece mais 😡
2025-09-06
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